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domingo, 14 de agosto de 2016

Superação Individual-Coletiva

Boaventura de Souza Santos é sociólogo português. Leciona nas Universidades de Coimbra (Portugal) e Wisconsin-Madison (EUA). Participa ativamente do Fórum Social Mundial há anos, e agora nos fornece quinze pontos cruciais para construirmos alternativas à dominação neoliberal - ou, melhor dizendo, do egoísmo.

http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/boaventura-quinze-teses-por-uma-nova-esquerda/

O avançar do tempo leva formas mentais ao seu desenvolvimento e posterior exaustão. A exaustão delas em si não constitui problema grave. O que ameaça seriamente - especialmente agora, tempos de alta tecnologia, muita (des) informação e distração - a democracia e o consequente desenvolvimento humano é justamente a incapacidade de criarmos novas formas mentais para ajudar o sistema atual desmoronar, prejudicando a menor quantidade de vidas, e paralelamente criar um novo sistema coletivo, pautado por outras prioridades supremas que não o lucro e a competição.

Não há mais uma separação clara entre quem é quem. Devemos perceber isso antes de tudo. Isso não significa que seja feio (como dizem) denunciar atos ilícitos, mas sim que isso tenha que ser feito após o indivíduo adquirir uma visão holística da sociedade, além de perceber o seu transformismo - isto é, compreender que os ideais sempre retornam ao mundo, encarnado em grupos, correntes de pensamento e indivíduos (geralmente perseguidos, ignorados, marginalizados ou tudo isso junto), com força renovada e criatividade inexplorada.

Democracia representativa sozinha é impotente para criar uma Democracia. Deve-se criar mecanismos para o surgimento de uma democracia participativa, que vá se articulando com a representativa, de modo a dar força ao que se teoriza como (verdadeira) Democracia.

Democracia de verdade envolve o desmantelamento da estrutura autoritárias das empresas - que nada mais são do que ditaduras psico-financeiras camufladas sob vestes nobres. Envolve a participação democrática dos trabalhadores em todas decisões corporativas. Afinal de contas, quem produz deve decidir.

Grande parte das cúpulas corporativas espalham aos quatro ventos que o setor público é corrupto e o Estado deve ser diminuído ao máximo - exceto quando este deve dar isenções fiscais, suporte financeiro em tempos de crise, e outras benesses para manter os bônus dos VPs altos e suas especulações financeiras em dia. De fato, isso é uma verdade. Mas eles se esquecem de falar que muitos desastres públicos são gerados por haver uma forte influência de interesses privados nos governos (em todas esferas: federal, estadual, municipal). Se esquecem também de que o setor privado é infinitamente mais corrupto do que o público, além de ser o carro-chefe da sonegação - que é um tipo elegante de corrupção.

Para quem deseja compreender esse último argumento recomendo a leitura e reflexão do seguinte ensaio:

http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2014/01/corrupcao-e-sonegacao-problemas.html

Nossa mídia não difunde, mas se qualquer um tiver tempo (algo raro nos dias atuais) e digitar "suiçalão", "Panama papers" ou "embraer e república dominicana", "Monsanto e transgênicos" no Google, e começar a investigar à fundo, começará a perceber

Isso não é novo. Apenas a vazão dessas notícias tornou-se um pouco (mas só um pouco!) maior. Pois os desvios são muito gritantes e a sociedade, por mais adormecida que ainda esteja coletivamente, já é muito mais inteligente do que a sociedade de 20 ou 30 anos atrás. Em suma: é cada vez mais difícil enganar as massas.

Mas a mídia tem seus próprios interesses - como todo mundo. No entanto, sua influência é enorme e com isso deveria (deveria...) surgir um senso de responsabilidade perante o que se apresenta, como se apresenta, quando se apresenta, e quem é convidado a falar nas TVs e escrever nas revistas e jornais. Mas infelizmente, quando se cresce demais, os interesses monetários sobrepujam o dever pela difusão da verdade integral.

Até agora falei apenas em sociedade, mídia e política. Translademos para a questão econômico-ambiental.

Vivemos num planeta com recursos finitos. Somos mais de 7 bilhões. Economias crescem para dar a seus habitantes padrões de vida melhor - seja para evitar revoltas ou fazer frente a outros países ou propagandear o sucesso de seu sistema. No entanto, esquecem-se de que a divisão nacional sem o desenvolvimento de uma diplomacia que dê uma visão internacional, de humanidade unificada consigo mesma e com as outras espécies e o planeta, tende a desmoronar em guerras, insegurança, ineficiência, baixo desenvolvimento, pobreza (cultural, intelectiva, afetiva), além de escapar ao mais importante: a aquisição do senso unitário.

Não podemos superar os novos desafios que surgem sem mudar a mentalidade que os gerou. Isso já foi dito (e é dito) há muito tempo (por muita gente).

A expansão da consciência leva a uma nova forma mental. Esta, internalizada, transformada em voltagem (inconformidade, dor, questionamentos, constatação) por um bom tempo, se transforma em amperagem (ideias, teorias, escritos, força no falar e no agir)*. Com isso pode-se iniciar a agir de dentro para fora, atuando no mundo de forma a repudiar o que não mais serve, e exaltar as fendas que nos levarão para uma possível salvação - melhor dizendo, a continuação de nossa jornada evolutiva coletiva.

Individualmente evoluímos independentemente das circunstâncias externas. Mas a tarefa vai se tornando mais árdua à medida que as circunstâncias permaneçam contrastantes e refratárias ao nosso modo de ser. Apenas evoluindo coletivamente, nem que um pouco (o que já é muito!) podemos tornar o trabalho de nossa espécie eficiente. Não se trata de impor uma visão e sim de chegar conduzir as diversidades à unidade - sem coerção.  

Para chegarmos a uma visão unitária devemos abdicar do egoísmo de nossa formação. Senão ficaremos presos a uma forma mental que prioriza um determinado ponto de vista sobre o mundo. Criaremos sistemas de crenças ou filosóficos que se fecham em si mesmos. Uma pessoa com formação em engenharia, comumente, verá o mundo das Ciências Humanas e/ou Ecológicas como empecilhos, e a Arte como uma mera distração (no máximo!), mas jamais um meio para levar a ativar sentimentos que despertem sua busca por ascensão. O misticismo está longe, muito longe...

Depois devemos abandonar o egoísmo de classe social, sem no entanto deixar de perceber que existe uma luta de classes. O que quero dizer com isso? Primeiro, que não podemos criticar/combater o(s) outro(s) simplesmente porque ele possui x ou y a mais. Devemos sim combater o fato (muito comum) dessa pessoa ser dependente (possuído) de suas posses, levando ao mal dela mesma e das pessoas no entorno, degradando relações afetivas, familiares, sociais, no trabalho, apenas para manter sua imagem, status, nome e posses. Esse egoísmo derivado da aquisição de coisas do mundo (títulos, posses, imagem, corpo, dinheiro, etc) parece não encontrar uma assíntota no ser humano atual. É preciso desenvolvê-lo interiormente - e denunciá-lo sim, em si mesmo e nos outros, doa a quem doer.

Devemos igualmente abandonar nosso egoísmo do corpo. Isso significa não viver em função dele, mas mantê-lo saudável para que possamos desempenhar nossas funções no mundo. A moda dos jovens (e adultos e idosos) irem às academias incessantemente, buscando uma perfeição inexistente e insustentável, - que muito custa diariamente - é algo que leva todos a perderem oportunidades para coisas mais importantes. Por que isso corre? A preocupação com a imagem física. As pessoas querem ser desejadas. São dependentes do desejo alheio para se avaliarem como pessoas de sucesso/felizes ou não. Isso é um exemplo de dependência de correntes coletivas do mundo. Eu sei que é muito difícil se livrar dessa dependência, mas é algo a ser feito se o ser humano deseja se tornar verdadeiramente livre, em paz com si e com o universo, e consequentemente realizado.

A imagem social é outra chaga. Ela destrói amizades simplesmente porque alguém decide seguir sua consciência e questionar ou iniciar um contato com um excluído (por exemplo). Ela é um traço de vaidade que nos irrita constantemente, porque sempre o mundo lança tentações - um é mais falado que o outro, outro é melhor, outro ainda é mais requisitado, reconhecido, etc. Não que estas sejam ruins. Elas são naturais. O problema é que agimos como autômatos, instintivamente, usando a racionalidade apenas para sustentar instintos (por vezes baixos), e não percebemos que poderíamos resolver esses problemas se nos dedicássemos a "perder tempo" com nossas dores, escavando, constatando e descobrindo - por conta própria.

"O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido." 
Bertrand Russel (1872-1970)

Agora nos vemos diante da questão econômica e ambiental.

Não podemos crescer economicamente indefinidamente. Individual ou coletivamente. Porque isso não é compatível com a realidade física do planeta e suas espécies.

O problema é que aqueles que desejam atingir um equilíbrio podem até chegar a um modo de vida muito mias racional e harmonioso do que a média (os "normais"), mas ficam muito aquém de suas metas. Por que? Serão incompetentes? Não...Porque simplesmente para se atingir aqui, neste mundo físico atual, uma eficiência máxima, dependemos de um sistema capaz de nos propiciar os meios para viabilizarmos nossas ideias. É claro que individualmente podemos muito, mas existe essa necessidade, a meu ver, de possuirmos os meios externos para irmos além de um ponto - pelo menos se quisermos realizar isso neste mundo, encarnados.

Exemplo:
O que é fundamental para um ser humano ter um a vida digna? Alimentação, moradia num local decente (com parques, creches, médicos, escolas, trabalho próximos), segurança física e financeira (estabilidade no emprego...que geralmente não deve ser de uma entidade privada...), saúde, educaçãocultura, vestimenta, energia e liberdade. Em termos gerais. Agora, para que alguém tenha acesso a esses direitos fundamentais (que nossa civilização tem todas condições de propiciar, segundo um dos mais renomados estudiosos contemporâneos***), já é preciso (obrigatório) possuir um bom salário. Faça as contas e constate: com menos de 4 ou 5 mil reais mensais, dificilmente uma família com dois filhos conseguirá manter um convênio médico para todos, educação da creche à pós-graduação, internet, roupas limpas, higiene, automóvel, uma casa/apartamento decente e idas ao cinema (cinema bom, com programação decente), compra de livros, cursos de música ou línguas ou balé ou tudo isso junto. No entanto, pesquisem à fundo: poucos são as pessoas que conseguem encontrar empregos bem remunerados. Muito menos estáveis. Muito menos (razoavelmente) bem remunerados, estáveis e com algum sentido. Quem possui isso, está em dívida consigo mesmo e com o semelhante, e deve dedicar o máximo de suas energias e tempo em atividades sérias, para melhorar a si mesmo e o mundo em que vive.

Como se vê, viver com o necessário já exige muito dinheiro - que é cada vez mais concentrado.

De nada adianta criar riqueza se ela se concentra na mão de pouquíssimos - que nada produzem.
É inviável manter uma civilização na qual existam banqueiros que recebam milhões de dólares (ou bilhões) em bônus e rendimentos de especulações financeiras, enquanto bilhões sequer sabem o que é comer 3 vezes ao dia e não passar frio. Não se trata de nada mais do que limitar as diferenças a um patamar sustentável. 1:10 é uma diferenciação saudável. 1:40 é de suspeitar. 1:200 é estranho. 1:500 é bisonho. 1:1000 é destrutivo.

No entanto não nos damos conta de que o equilíbrio não é nem a igualização absoluta nem a liberdade absoluta (dos instintos), e sim um equilíbrio com diferenciações atingido pela libertação do egoísmo.

Devemos buscar eficiência igualmente. E mudar de paradigma. Não podemos ser obrigados a crescer para manter nosso padrão de vida. Ou melhor, não devemos ser obrigados a contribuir com o crescimento da economia para mantermos uma vida decente. 

Há algo de estranho nisso...

Por que precisamos gerar mais matéria (que acaba por se concentrar nas mãos de irresponsáveis, em sua grande maioria) para termos uma chance de mantermos um patamar de vida digno?

Nos amarramos numa lógica de crescimento que sustenta um sistema (da "roda girando sempre", a qualquer custo****). E se rompêssemos essa lógica em nossa mente, servindo de exemplo a outros? Será que isso não poderia iniciar uma frente de resistência? Será que isso não nos impediria de cairmos num abismo do qual levaríamos séculos (ou milênios) para nos recuperar?

Deve-se buscar crescimento sim. Mas em outros planos. O plano material-mental está saturado. Eles devem deixar de ser o carro-chefe para dar lugar a outro: a consciência. 

Enquanto não percebermos isso nada adiantará. Nenhum sistema nos salvará, nenhum plano de austeridade solucionará.

Só a consciência salvará.

Consciência.


Referências
*http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2015/05/voltagem-para-amperagem.html
**https://blogdaboitempo.com.br/2011/03/01/1003/
*** http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n122/0101-6628-sssoc-122-0381.pdf
**** http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2015/03/outras-rodas-devem-girar.html




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