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sexta-feira, 11 de maio de 2018

O Beijo de Judas

Todas as histórias que lemos, ouvimos e assistimos possuem um seu significado profundo. O que muda é a forma, que se molda ao grau de despertamento daqueles que a reproduzem e - especialmente - recebem. Assim funciona a técnica de introduzir valores universais e sobre-humanos às crianças e jovens, aos alunos, aos discípulos, aos povos e aos grupos. É dessa forma que se garante a perpetuação do ideal na forma de ideia. Essa ideia pode ser resgatada por aqueles que resgatam esses conceitos remotos e o relacionam à vida profunda que passam a ver ao seu redor. 

A grande maioria que lê o Evangelho o faz superficialmente, de forma mecânica. Passa pelas palavras e extrai algum significado. Entende a superfície de um oceano de profundidade abissal. Se prende à lógica da razão e do cálculo, formando uma opinião ao encaixar os relatos. Mas diante da suprema tarefa de ascensão mística, que se inicia com um despertar da consciência, não se trata de formar opinião, e sim de adquirir capacidade de visão. É aí - e somente aí - que reside a força titânica que doma a mente e reduz a sede dos sentidos. A percepção de uma lógica mais profunda, que não se prende à vantagem imediata nem calcula ganhos e perdas (do ut des), estabelece a condição sine qua non para a elaboração de jornadas nunca antes tentadas. Atitude completamente diversa. As palavras são atravessadas pela visão do espírito, que a partir da forma (letra) consegue arranhar o significado profundo (espírito). Assim lê-se a alma dos textos - porque vê-se o fenômeno da evolução.

Um senhor do Destino. O outro, servo do destino.
Um senhor do tempo - outro escravo do tempo.
Judas precisava de Cristo tanto quanto Cristo precisava de Judas. Um precisava do outro para cumprir seu destino. O primeiro era pequeno, destino gozoso, de curto prazo. O outro era grande, destino glorioso, de prazo longo, eterno. 

A parcela do mundo (Judas) que seguia a luz (Cristo) e só via a forma dela (seus atos), sem captar a essência (significado), se revolta ao perceber que não seria feita uma tomada de poder à força. E assim nasce o inconformismo e a traição. Mas o bem, personificado pelo Mestre, sabia que o único modo de cumprir sua missão era receber o golpe da traição, com toda sua força, 100% ciente das consequências. Não se desejava ganhar no mundo e do mundo - mas sim superar a si mesmo e lançar um clarão que se perpetuaria pelos milênios, servindo de guia para a civilização. 

O Amor do Cristo é a força do ideal que se propaga pelos séculos sob várias formas. É uma substância animada de ímpeto construtor que ora atua na frente científica, ora na cultural, ora na artística, ora na administração, ora na política, ora nos direitos. Ela se plasma conforme a época, resgatando conceitos e aflorando ideias capazes de se sustentarem de forma mais elaborada, resiliente e progressiva. É uma evolução em todos aspectos. Um furacão que varre as formas inúteis e erode os solos áridos. Assim a humanidade fica cada vez mais límpida, de mente esvaziada para ser capaz de receber a silenciosa voz do Alto. Voz silenciosamente trovejante. 

Cristo sabia de sua função e da função de Judas. Este nada sabia da missão de seu Mestre - tampouco da sua...

Como se vê, o bem age de forma ilógica sob o ponto de vista terreno. Mas sobrevive e cresce ao longo dos séculos. O significado se torna cada vez mais claro. A glória da evolução brinda todo o ser com a liberdade física, psíquica e espiritual. Uma esfera reforça a outra, na ida e na volta, criando espirais oscilatórias cada vez mais vastas, que veem as pequenas mazelas da vida terrena como um pequeno detalhe na bela arquitetura cósmica. Assim se dão as ascensões humanas.

O universo é um todo orgânico que respira. Ele é uma manifestação de um imponderável. E nós, como produtos elaborados a partir de sua matéria bruta, começamos a entrever significados infinitos contidos nas finitudes do cotidiano. Percebemos que existe um porvir. E assim começamos nos desprender de certas coisas mundanas, dando o seu devido valor a cada uma delas (dai a César o que é de César - e a Deus o que é de Deus). Assim brota a compreensão do todo.

O bem também faz uso das coisas. Mas o faz de forma consciente. O faz permitindo que o ambiente aja conforme lhe convenha - pois sabe que se uma forma ou de outra irá desferir o mesmo tipo de golpe. Dessa forma a traição de Judas nada mais foi do que o ato final que permitiu Cristo resplandecer numa vida superior, livre do pesado invólucro corporal que tanto lhe desafiou nos 33 anos de sua passagem neste mundo involuído - mas em vias de evolução. Tudo se encaixa perfeitamente quando tomamos o acontecimento como um momento da eternidade. No fundo trata-se de perspectiva: o mal opera em prazo curto, tem pressa alucinante, pois sabe que está enclausurado no espaço-tempo e deve se consumir dentro dos seu limites; o bem não se preocupa com derrotas momentâneas e aparências, operando silenciosamente e focando além dos limites dos sentidos e dos conceitos humanos. São dois mundos que não se conversam. Realidades irreconciliáveis. Um está no zênite - o outro está caminhando dolorosamente para esse destino. O Alto compreende o baixo, mas este vê aquele como enigmático. Se se sente incomodado, cerca e destrói a forma material, mera manifestação do espírito. Nessa destruição que reside a força do imponderável. Seu interesse não é o julgamento dos outros, mas garantir a perpetuação da onda evolutiva. Onda que arrasta a todos, cedo ou tarde, levantando ideias e despertando sentimentos antes inacessíveis. A revolução começa biologicamente, na natureza do ser, que passa a viver de forma mais coerente com os ideais que são teorizados pelas ideologias. Estas somente se sustentam com uma natureza minimamente boa, consolidada e firme em sua convicção.

Todos nós, consciente ou inconscientemente, iremos passar por um "beijo de judas" para ascender. É aparentemente o único caminho para a ascensão. Saber identificar qual as nossas reais necessidades evolutivas - como Cristo o fez - é a tarefa mais sublime que alguém pode fazer em sua vida. Com essa firme orientação, estaremos norteados para todas nossas atividades mundanas, preenchendo-as de valor.

Assim se dão as ascensões humanas. 

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