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sábado, 15 de julho de 2017

Os Miseráveis: Queda e Salvação

Aqueles que nasceram neste século estão sentindo, inconscientemente, o que a Sétima Arte tem de menos nobre - uso a palavra no melhor sentido do temo. Ao menos no campo das grandes produções, outrora pautadas por diretrizes mais elevadas, preocupadas em transmitir aspectos profundos da vida, revelando obras literárias monumentais, ideias e pensamentos transformadores, sentimentos indescritíveis, em forma de película. Imagens e sons. Música, gestos e atitudes. Harmonicamente ordenados, caoticamente criados. Com um fim: despertar o Ser.

Quem é Jean Valjean?
Quem é o (inspetor) Javert? 

Reduzir tais nomes a personagens fictícios, individualizados, com objetivos fixos, predeterminados, é diminuir uma das obras mais sublimes da literatura mundial. Atesta uma pobreza de observação. Uma ausência de sentimento. Uma nulificação da abstração que se encarna em palavras, personagens, atitudes e destinos complexos - que no entanto possuem diretrizes simples e cristalinas. 

Jean Valjean. Nome simples, do povo. Conjunto sonoro, harmônico. Vida sofrida, vida perdida...à princípio. Nisso é o que acredita Javert, inspetor com ideia já formada das pessoas, das instituições, do mundo...Para este homem (tipo biológico) tudo já está predeterminado. A natureza (humana ou não) não muda. É inalterável. E - cima de tudo - deve ser controlada e castigada conforme normas rígidas e (aparentemente) eficazes.


Os Miseráveis. Todos nós, aqui,
neste mundo, no estágio atual.
Mas em busca da Superação.
Valjean...produto do mundo com seus métodos intransigentes. Seu paradigma engessante. Sua saciedade infindável. Valjean...alma fantástica encoberta por ilusões que o meio lhe imprimiu. Incessantemente, intensamente, insensivelmente. E assim ele, afogado por 19 anos de trabalho duro, desumano, desgastante, endurece sua alma e nulifica sua fé ao ponto de quase morrer por descrença no homem...19 anos de misérias insuportáveis por haver quebrado um vidro e pego um pão. 19 anos de sofrimento por haver matado...sua fome.

Eis que um bispo cruza seu caminho. Dois seres, duas atuações. Um age conforme a vida lhe ensinou. Outro age conforme a inspiração lhe revelou. O resultado, inesperado, inextrincável, se sente nos olhares entre as duas lógicas: uma insistente na superação, outra agonizante na perdição - mas prestes a despertar para um mundo mais vasto! É a transformação da substância em um homem, tido como um inerme (em suas capacidades) e uma ameaça (às instituições) perante os conceitos da sociedade e do poder. Estava nosso protagonista suficientemente dilacerado exteriormente, inesgotavelmente macerado interiormente, a tal ponto de somente crer numa atuação sincera, profunda e íntima num momento inesperado. Assim se dá a mecânica dos milagres. Palavras ou teorias rebuscadas em nada lhe serviriam. Nem mesmo uma atitude pensada, calculada. Era necessário uma atitude sincera e consciente. O bispo lhe deu isso. E nunca mais Valjean - o eternamente condenado - foi o mesmo. Exceto para o inspetor Javert, encarnação perfeita do braço mais brutal do poder deste mundo: a polícia.

Durante 2 horas de projeção - rápidas como um relâmpago - acompanhamos a saga de um homem orientado e outro obcecado. O primeiro encontrou o ideal de atuação, seguindo a lei Divina. O outro se perdeu no excesso das leis humanas. E assim inicia-se uma perseguição de décadas. Sem fim previsto. Sem finalidade convincente...


Victor Hugo. Viu o telefinalismo.
E passou seu sentimento através de
uma narrativa monumental, com
personagens vivos, fora de série.
Cada cena, cada gesto, cada olhar, são reveladores. E alguns destes, inspiradores! A música capta o sentimento da alma do eterno condenado pelo mundo. Do eterno ser que sofre e ama. Chora e constrói. Um eterno batalhador pela libertação de vícios. Pela redenção. Ampara os que sofrem. Contesta os que geram sofrimento gratuito. E assim constrói sua personalidade, pouca a pouco, com suor e sangue e cansaço - mas cada vez mais convicto.

Javert é um ser que colocou toda sua crença no mundo, com todos seus métodos, leis e lógicas. Tem um conceito de ordem, é verdade. De harmonia. De sociedade ideal. Infelizmente, conceito restrito no tempo, excludente das multiplicidades desejosas de ascenderem, nem que apenas um pouco. Conceito ignorante dos efeitos de longo prazo, que se propagam como ondas com o passar dos tempos, e explodem como eventos dolorosos, sem explicação, para o mundo. Mundo tão "poderoso" e "inteligente"...O contato incessante com o outro, o "delinquente", vai sendo registrado pelo consciente do inspetor, que ignora o drama da superação. Não captou que Valjean,o homem que ele tanto busca e deseja punir, morreu após se encontrar com aquele bispo humilde...

O desenrolar dos anos tece uma obra que se torna épica. Uma obra do universo interior, com suas superações e dores, em meio a um trabalho incessante pela Salvação. A experiência interior mística intensa e eletrizante transborda na atuação ética e nos projetos edificantes. Isso é o que sentimos diante da jornada de Jean Valjean. Uma jornada bela...intensa...sincera....infinita...

Billie August consegue traduzir uma monumental obra da literatura para película. Deu vida às palavras, dando mais um passo orientado na encarnação do conceito mais elevado: o da Ascensão. E assim se aproximando (e nos aproximando) um pouco mais do infinito e do eterno, além de nossas dimensões, de nosso conceito, de nossa vivência cotidiana...E assim nos aproximamos da única e verdadeira meta: Deus.






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