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domingo, 6 de fevereiro de 2022

Três rainhas, três destinos e um fio condutor

Desde o início da pandemia, lá por Março de 2020, uma boa parte de minhas noites vem sendo permeada por séries. Não tinha o hábito de assistir seriados. Desde a adolescência via somente filmes. Estes foram melhorando de qualidade - especialmente após chegar aos 17~18 anos. Os temas eram cada vez mais profundos; os personagens, mais complexos; os roteiros, mais bem elaborados; os significados, mais inesgotáveis; as trilhas sonoras, mais sublimes. E assim fui conhecendo obras verdadeiramente eternas. Verdadeiros marcos da sétima arte. Já escrevi sobre algumas delas aqui (vejam os primeiros ensaios).

Não acompanhava séries. As referências que eu tinha não eram muito boas. Sempre que pipocava alguma na minha frente, percebia que se tratava de algo desinteressante, superficial, com pouca densidade. Parecia que obter risadas a qualquer custo, impressionar com explosões e efeitos e ritmos alucinantes de movimentos era a finalidade dos seriados (de fato, muitas séries, se não a maioria, tem isso como foco...especialmente as estadunidenses). Mas quando minha rotina - e a de meu pai - mudou comecei a descobrir novos continentes.

De L´Amica Geniale até Das Boot, passando por Isabel, Carlos Rey Emperador, Las Chicas del Cable, Tiempos de Guerra, Downton Abbey, The Cimson Field, La Templanza, Miss Fischer Murders & Mysteries, The Borgias, Consciência3, Mixte, The Bletchley Circle, Victoria, The Paradise, The Marvelous Miss Maisel, Ambição, I Segretti di Borgo Larici, Le Secret de Maison des Rocheville, Call The Midwife, Mildred Pierce, The White Queen, The White Princess, The Spanish Princess. Em sua maioria, muito boas, cheias de conteúdo, personagens bem construídos. Algumas possuem trilhas sonoras maravilhosas (algo divino). Já são quase dois anos de uma distração que enriquece a cultura, instiga, faz pensar e inspira.

Gostaria aqui de comentar sobre as três últimas, que tratam de uma história que perpassa a vida de três personagens, três rainhas, três mulheres incríveis. Mulheres de fibra, de ousadia, de sentimento e de determinação. Mulheres que representam o espírito feminino sem ceder à força das circunstâncias.

Fig.1: As três séries que tratam da vida de três rainhas inglesas. Elizabeth Woodsworth,
esposa do Rei Eduardo IV; Elizabeth (filha da outra), ou 'Lizzie', esposa de Henrique VII;
e Catarina de Aragão, filha de Fernando de Aragão e Isabela de Castela, e (primeira) esposa de Henrique VIII

Recomenda-se assistir as séries em sequência (como apresentado na Fig.1, da esquerda para a direita). Porque as histórias estão entrelaçadas e seguem a cronologia dos fatos. Daí poder-se-á compreender melhor o contexto histórico de cada uma delas e suas ligações com certos personagens. 

The White Queen começa em 1464. O rei da Inglaterra é Eduardo IV, da dinastia York, conhece Elizabeth Woodville, de outra dinastia (Lancaster). Ambos se apaixonam. Uma ligação íntima ocorre desde o início, como pode-se perceber pelos gestos e olhares de ambos. Mas esse amor sofrerá ofensivas terríveis do mundo. Ofensivas de um mundo, de uma época, de uma cultura, de uma mentalidade, que não aceita uma unição mais baseada no amor do que nos interesses políticos do reino. Porque a bela Elizabeth (Rebecca Ferguson) que além disso não possui uma posição importante. 

O encontro dos dois se deu de maneira inesperada - sua união se deu quase que imediatamente. Ocorreu quando a moça de 27 anos, acompanhada de seus dois filhos, se depara com o rei para pedir que lhe restituísse a herança de seu finado marido, John Grey, para sua família. Eduardo fica comovido pela retidão e beleza da mulher, que não apenas restitui suas posses, como a toma em casamento. Uma união rápida, sem rodeios, por amor - algo raro na época. Quem deseja saber mais a respeito, pode ler aqui [1].

Contra todas as normas sociais da corte, contra todos os conselhos de seus familiares (especialmente do Lorde Warwick), eles se casam. Um casamento mais por amor do que por interesses - algo escandaloso na época, e muito perigoso politicamente. No entanto, as coisas não serão fáceis para os dois - especialmente para Elizabeth. O vídeo abaixo faz um apanhado geral da trajetória dessa mulher incrível, que não era apenas uma moça bonita na corte, mas também rainha, feiticeira, esposa e mãe. 

Desde o momento em que a Elizabeth (Rebecca Ferguson) começa sua vida na corte, toda família do rei começa a desestabilizar o reinado. Perde-se a confiança. Alianças são desfeitas. Palavras perdem valor. Promessas são duvidosas. Pelo simples fato de não ter sido feita uma união baseada nos interesses políticos, pautados em alianças na forma de casamentos, - em que moças eram entregues a reis visando fortalecer laços entre povos - perde-se a paz num reino. 

Elizabeth nunca consegue a simpatia dos irmãos. Ela até tenta fazê-lo, sem deixar seus princípios, sem se rebaixar, como toda grande heroína. Mas os interesses, o ódio, prevalece e os esquemas não cessam.

Vida de casado não é fácil dizem. Mas imagine uma vida assim na Inglaterra do século XV, em meio a um conflito que durou trinta anos e deixou o país dividido [2], com uma pessoa que ocupava o cargo mais importante do país. As complicações, os perigos e as dores são aumentados exponencialmente. 

Não há como fugir de um grande destino quando as premissas são ousadas.

Nessa grandiosa série de época, sentimos a intensidade da paixão, as maquinações do poder, a mentalidade da época - em que as posições eram fixas, predeterminadas, sem opção de escolha...especialmente se os cargos almejados ou ocupados eram altos. Vemos a adaptação dos personagens. A resistência feroz, que mesmo assim é insuficiente contra as forças da vida, e consequentemente aponta para a necessidade de uma resiliência além do normal, além do esperado. Somente pessoas com estofo espiritual podem sair ilesos dessa tempestade de interesses. Elizabeth era uma dessas pessoas e soube lidar bem com sua realidade, seu destino.

"Deveis compreender que o equilíbrio de uma posição econômica e social é, como na física, tanto mais estável quanto mais baixo se encontrar, quanto mais próximo estiver do nível mínimo da sociedade na qual se situa. É contra os cumes que as tempestades investem. Não invejeis esses grandes perigos de quedas maiores. Quanto mais elevada é uma posição social, mais insegura e vulnerável ela se torna, mais dificuldade impõe para a sua defesa e mais facilmente tende a cair, exigindo a presença de um valor intrínseco que a sustente através de um esforço contínuo." 

A Grande Síntese, Cap. 93 (grifos meus)

Percebam, meus amigos, que as coisas estão profundamente relacionadas. Basta ler o livro da vida em profundidade. A arte expressa a beleza da realidade intrínseca que jaz no ser. Uma realidade que deseja se expressar de forma cada vez mais cristalina, intensa, atraente e certeira. 

Elizabeth deu luz a 13 filhos. Era uma mulher forte também em termos físicos - algo fundamental para a época, que exigia a geração de uma prole, de preferência meninos. Uma dessas crianças, também de nome Elizabeth (Lizzie), acabaria por se tornar a rainha da Inglaterra em 1485, casando-se com o Rei Henrique VII da dinastia Tudor. Esse casamento, um arranjo entre a crente fervorosa e radical Margarida (mão de Henrique) e Elizabeth Woodville, colocaria fim ao conflito conhecido como a Guerra das Rosas. 

Aí começa a próxima série.

The White Princess inicia-se com um casamento indesejado, forte, violento, em seu primeiro episódio. Lizzie não gostava de Henrique Tudor. Mas seu destino foi traçado pelas circunstâncias da vida.

Ao contrário de sua mãe, que ao menos pôde escolher dar primeiro passo livremente, Lizzie teve de se contentar com um casamento arranjado, com alguém que ela não queria e até chegou a detestar no início. Mas o desenrolar dos eventos e o forte envolvimento com a vida na corte acabou por torná-la uma aliada, depois amiga, depois verdadeira esposa do rei. Esse desenvolvimento da personagem também percebemos ao longo da série. 

Nessa série nos deparamos com uma mulher inicialmente sem liberdade, sem poder para mudar um mínimo sua situação. Mas com muita determinação. E ao longo dos episódios percebemos como ela acaba se reinserindo muito bem no novo meio. Ela se adapta e aprende a amar aquele que detestava. Ela encontra uma posição e um sentido, e assim ganha a força para governar e ser vista como uma pessoa importante. 

O reinado de Henrique foi permeado de medos por parte dele e de sua mãe - que rezou e arquitetou sua ascensão ao trono. Sempre há o medo de alguém reclamar seu direito ao trono. Sempre apoiadores. Sempre, sempre...E isso faz com que a crueldade seja regra. Melhor dizendo: uma norma de sobrevivência. E isso vemos nas inúmeras prisões, decapitações, restrições, impostas a pessoas inocentes. Pessoas cujas culpas eram apenas estarem numa linhagem que ameaçava tirar do poder aqueles sedentos pelo poder. Uma crueldade sem fim, sem sentido, que no entanto moldou nosso mundo moderno e persiste nos instintos do ser humano - que hoje exerce ele de forma sofisticada. Mas a natureza egoísta permanece viva. No entanto, esse é o caminho do progresso humano, quer gostemos ou não. E ele só será superado pela nossa assimilação.

"Estais presos num mecanismo sem fim, lançados num jogo de forças cujo substancial resultado, de ilusão em ilusão, é a vossa ascensão, sendo somente isso o que importa. Toda satisfação alcançada e todo passado conquistado vos parecem ilusão. O sonho reside eternamente no amanhã, pois, tão logo se transforme em saciedade, um novo sonho sempre ressurge. Assim desloca-se continuamente vossa posição na linha do progresso."

A Grande Síntese, Cap. 95 (grifos meus) 

Lizzie foi uma mulher que sofreu uma maldição da própria mãe - sem que esta desejasse isso. A mãe feiticeira lançou uma maldição aos Tudors, fazendo com que não tivessem herdeiros masculinos em sua linhagem - ou que, se houvesse, eles teriam problemas em gerar mais. E como sua filha se casou com um deles, a maldição recaiu sobre ela, que estava jungida ao esposo, inimigo da mãe dela, e a todo reino. Essa maldição se estendeu para Arthur (que morreu jovem) e Henrique VIII (que jamais teve um filho homem com sua legítima esposa Catarina de Aragão). Uma maldição que perpassa gerações.

Para quem deseja saber mais a respeito do reinado daquele que estabeleceu a dinastia Tudor, aqui uma referência boa [3].

Elizabeth de York (Lizie) cumpriu uma função histórica. Ela conquistou o coração de um dragão (seu esposo) e com isso deu tom ao reinado. 

"Elizabeth de York e Henrique VII, foram duas rosas que uniram-se dando vida à uma outra. Uma nova chama de esperança dentro de um reino desvencilhando-se da idade média, assim como das infindáveis guerras e conflitos locais." Fonte: [4]

E é interessante perceber como o amor pode nascer das mais cruéis circunstâncias:

"O casamento de Elizabeth e Henrique VII, naturalmente fora uma aliança política. No entanto, logo torna-se claro, que uma duradoura relação, de genuíno amor e afeto, desenvolveu-se entre o casal. Fonte: [4]

Esse é, a meu ver, o aspecto mais interessante dessa série. 

Para além do aprendizado histórico, da constatação das leis e mecanismos do poder, dos costumes, das estratégias e das relações entre política, religião e cultura, há a maturação interior de personagens que são lançados num turbilhão impiedoso. Aí entra a força, a coragem e a criatividade. É preciso se reinventar a cada momento, com cada golpe.

E com o reinado de Henrique VIII chegamos à série da última rainha, a princesa Catarina de Aragão. Uma estrangeira que seria rainha da Inglaterra.

The Spanish Princess, ao contrário das outras duas séries, é dividida em duas temporadas. Na primeira vemos a árdua luta de Catarina, que é oferecida pelos seus pais, os reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, ao príncipe Arthur para selar a aliança entre os dois reinos. Mas o príncipe morre, e Catarina fica numa situação periclitante. Nessa primeira parte vemos todos os dramas de uma mulher, filha dos reis mais poderosos da Europa, tia do homem que seria o ser mais poderoso dos últimos tempos (Carlos), numa posição instável, que poderia implicar em esquecimento completo. E como a atração que ela sente pelo filho mais velho do rei (e vice-versa) acaba a colocando novamente no eixo do poder.


Catarina é filha da Espanha. Ela possui a ousadia, o ímpeto, a resiliência e a paixão típicas de sua terra, de sua cultura, de sua vivência. Ela descende de uma linhagem poderosa, com mais quatro irmãos cuja história é igualmente intensa - trágica para alguns, suave para outros. Ela imprime sua personalidade ao seu reinado, mesmo sendo rainha de outro país.

Catarina é rainha da Inglaterra. Ela cumpre seu papel e abraça de corpo e alma seu destino. Ela toma as decisões e apoia o seu marido, como Lizzie o fez anteriormente. Mas ao contrário do reinado de Henrique Tudor e Elizabeth de York, o reinado de Henrique VIII e Catarina começa com um casamento cheio de amor e compreensão, mas que acaba por se tornar algo amargo, violento e triste. 

Por não conseguir lhe 'dar' um herdeiro do sexo masculino, Catarina é cada vez mais rejeitada pelo rei. Essa rejeição se torna ódio, que termina por fazer com que ela se aparte dele, vivendo uma vida em paz, criando sua filha Mary (que ele vê como inútil para a sucessão). Essa filha no entanto era inteligente e forte, capaz de governar tão bem (ou melhor) quanto qualquer homem. Se ao menos a mentalidade da época fosse mais evoluída...quantos problemas de governo não poderiam ter sido resolvidos sem desgaste inútil.


Percebemos que uma forma mental fixa - que não se justifica substancialmente - acaba por ser o elemento genético e o alimento de inúmeras mortes cruéis, desgastes, traições, climas pesados e coisas do tipo. Uma solução simples para quem percebe - impossível para quem não concebe. 

Fica evidente que uma das causas (se não a principal) para essa 'tragédia' (apenas devido à mentalidade atrasada) se deve a uma imensa pressão psicológica por parte do rei para obter um descendente homem. Isso pode ser melhor estudado aqui [4]. Fica evidente que forçar um ser a fazer algo não é o melhor método de conseguir persuadi-lo a fazê-lo. Talvez um pouco mais de compreensão, um clima mais propício, uma perspectiva diferente, tivesse evitado muitas dores.

A forma mental determina a cultura que pelo número de adeptos acaba ditando a verdade. Uma verdade relativa e em progressão. Mas é justamente devido a essa realidade rígida, com golpes inexoráveis e impiedosos, que Catarina convive. Ela sobrevive a tudo e encontra paz (apesar de tudo desfavorável a ela). Henrique vive mal e vive agredindo, prendendo, condenando (apesar de tudo favorável a ele). 

Ela é uma guerreira, forte e flexível - ele é um frustrado, fraco e rígido.

Ela sempre é fiel. Compreende sua realidade...a realidade de tudo e de todos, que comprime e exige; que recompensa em função dos valores da forma mental predominante. E compreendendo, se esforça em dar um herdeiro. Guerreia pelo rei, age pelo rei, vive pelo rei - mas este não valoriza suficientemente...e essa é sua condenação perante o Absoluto e a Eternidade.

O julgamento final pertence à História - que através das consciências sábias, irá avaliando cada vez melhor a natureza de cada ser. Seus dramas, seus conflitos internos, suas atitudes, seus atos criativos. 

"A compreensão é posterior aos acontecimentos, razão pela qual a consciência é o resultado da história. Não obstante os estrondos externos dos choques desordenados, no âmago está sempre a ordem." 

A Grande Síntese, Cap. 96 (grifos meus)

É um trio de séries que merece ser assistido, de corpo e alma. Com o olhar frio da razão e o sentimento apaixonado da fé. Como aprendizado dos fatos e assimilação dos valores substanciais. 

Vemos três mulheres belas, determinadas, fortes.

Como é maravilhoso ver as profundas relações entre os fenômenos, os estudos e as personalidades. 

Tudo tem sentido quando mergulha-se no âmago dos movimentos íntimos que determinam os acontecimentos históricos...

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