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domingo, 23 de outubro de 2022

Uma memória que se reconstrói evoluindo - ou que evolui se reconstruindo

Por sugestão e insistência de minha esposa, acabamos começando a assistir uma série italiana. No começo eu resisti. Estávamos sem saber que novo ciclo cinematográfico começar. E ela intuitivamente sugeriu uma série chamada DOC: Nelle tue mani (ou, em português, DOC: Uma nova vida). Parecia ser algo mais estadunidense. Depois percebi que era uma produção italiana. A história, a profundidade dos personagens, os atores que davam vida a estes, o ritmo de desenvolvimento (dinâmico mas sintético), a construção, a trilha sonora, a ambientação,...tudo começou a me envolver. A ela também. Percebi que se tratava de algo especial. Um seriado muito bem construído que revela a genialidade e humanismo do povo italiano. Mas não apenas isso.

A série possui uma temática de apelo universal. E com a trama ocorrendo num hospital de Milão ( província da Lombardia, norte da Itália) com toda a ambientação adequada, essa temática fica mais vívida, mais palatável, mais atraente e mesmo inteligente. Os italianos possuem uma habilidade muito especial em materializar questões abstratas, profundas. Eu até diria um dom em dinamizar algo que ocorreu no passado e ocorre de forma isolada - mas que tem significado substantivo para todas pessoas.  

Vamos falar um pouco da trama.

Imagine perder doze anos de sua memória num acidente (ou melhor, num incidente). Algo causado por uma irresponsabilidade da instituição, de uma pessoa, mas que acaba sendo cobrada daquele que estava mais evidente - visto como o chefe e portanto principal responsável. Um tiro na cabeça que não mata nem causou problemas motores ou sensoriais. Mas que destruiu memórias importantíssimas de um médico num momento ascensional de sua carreira. Uma pessoa que passou por grandes dores e que estava reconstruindo sua vida, de modo radicalmente diferente. 

O que assistimos no episódio 1 é um personagem (o principal), Dr. Andrea Fanti (Luca Argentero), frio e competente no campo da medicina tradicional. Uma pessoa séria porém rígida. Um homem que não considera o sofrimento alheio e crê que escutar o paciente (ou sofrer com ele, para compreender a causa de sua doença) é perda de tempo que pode distorcer diagnósticos ou retardar o processo de melhora. Uma melhora apenas do ponto de vista exterior. 

Fica evidente que ele está numa relação com uma das médicas, a Dra. Giulia Girodano (Matilde Gioli), e que ele é divorciado há dez anos. E que sua ex-esposa é agora diretora da unidade, a Dra. Agnese Tiberi (Sara Lazzaro), que decide seguir carreira mais na linha de gestão por (segunda a mesma) não possuir o mesmo talento que Andrea. Isso irá ficando mais claro à medida que a trama se desenvolve.

Fig.1: Giulia, Andrea e Agnese (da esquerda para a direita). Pessoas que apoiam o Dr. de formas distintas.
E ele, com sua 'nova personalidade', acaba reestruturando a psique de ambas. 

Mas a questão é que o espectador não sabe à princípio as causas que levaram à separação. Não se sabe muita coisa sobre cada um dos personagens. O Dr. Fanti é um mistério. Um enigma. A história, antes do grande evento (tentativa de assassinato), correria de modo insosso, sem vida, numa progressão sem sentido para Andrea - mas igualmente para todos os personagens, ouso dizer. 

A amnésia causa impacto na vida daquele que a adquiriu, mas também na de todos os outros que trabalham com ele. Porque se trata de um ser que ocupava posição de destaque e, mais importante, que sempre foi comprometido com o que estava fazendo (e faz) - seja na vida pessoal ou profissional. 

À primeira vista esse acidente parece ser uma tragédia. Com o passar dos meses e semanas, também. Parece que o que ocorreu é desvantagem sob qualquer prisma. Doze anos jogados fora: toda uma experiência, um conhecimento, atualizações imprescindíveis num mundo em vertiginosa transformação, uma relação fragmentada e uma tragédia que desencadeou uma mudança radical no modo de ser - e consequentemente, de atuar. Porém...à medida que assistimos aos episódios, começamos a compreender tudo que ocorreu. E percebemos conquistas e derrotas se intercalando. Ascensões e quedas. Progressões e regressões. Mas quanto mais se assiste, mais se desenvolve um destino (e vários outros), que parece ser uma continuação de algo ocorrido em 2008 (ano para o qual a memória de Andrea regrediu).

Uma queda de 2020 a 2008. Um regresso. Porém, podemos afirmar com segurança: uma perda completa?

A vida vivida não se apaga na memória dos outros. Há um retorno para um período que antecede uma mudança radical de comportamento. Algo foi perdido naquela trajetória. E agora, dada a situação, parece ter surgido uma oportunidade de recuperar um modo de ser que jamais deveria ter sido abandonado.

No primeiro episódio um Dr. Fanti frio e ágil. Calculista e eficiente. Aparentemente sem sentimentos. Pouco antes de tomar um tiro na cabeça que lhe destrói doze anos de memória percebemos como a sua vida estava caminhando. Sua relação com a Dra. Giordano se firmava. E, do lado profissional, acabara de descobrir um erro médico do qual participou junto com um colega seu, Marco Sardoni (Raffaele Esposito), que não possui o mesmo dom de Andrea de lidar com as pessoas - tanto no aspecto pessoal quanto profissional. Erro que pode colocar o hospital e a carreira de ambos em sério risco. E é aí que ocorre o (quase) fatal acidente. 

Cada episódio vai trazendo revelações - tanto do personagem principal quanto de todos médicos próximos a ele. É uma progressão no tempo com acontecimentos típicos da vida (o dito 'acaso'), que ora ressaltam um ou outro personagem. Ficamos conhecendo cada vez mais à fundo a personalidade de cada um deles. Através dos diálogos e comportamentos; dos incidentes e acidentes; da vida pessoal e profissional; do comportamento conduzido pela razão, pela intuição, pela sensação e pelo sentimento. 

Há de tudo: abandono do(a) companheiro(a) por perda de algo; motivações de ter adentrado na carreira médica; conflito entre seguir regras e usar a razão versus deixar-se conduzir pela intuição; cotidiano de um hospital; responsabilidades; retorno do 'passado' para 'assombrar' pessoas com questões não resolvidas; inveja; construções e desfazimento de relacionamentos; dúvidas sobre os caminhos da vida; etc. 

Fig.2: Ricardo e Andrea - uma amizade inesperada. A história de um bom rapaz. Um acontecimento trágico 
que altera rotas. A construção de um destino através de uma tragédia (física e moral).

Através de um ambiente profissional específico vamos nos dando conta de como o ser humano 'funciona'. O que nos move? Por quê? As coisas devem ser sempre do mesmo jeito? Qual o papel dos afetos, da percepção extra-sensorial, no tratamento de pessoas? Aliás, Andrea se revela muito sábio quando lembra seus colegas se eles estão lá para tratar doenças ou indivíduos. Ele erra mais que os outros em momentos iniciais de diagnóstico. Seus caminhos parecem turvos e sem sentido. Mas nas conclusões percebemos que ele sempre acerta. É assim que trabalha o ser intuitivo: é preciso ousar, adentrando no imo do ser; esgotando todas as possibilidades e se envolvendo num grau de profundidade com o paciente que demanda um conhecimento de sua história, seus hábitos, suas inclinações e traumas. Mais do que analisar um corpo físico semi-funcional, ele disseca uma alma viva que agoniza numa existência vazia. Esse é seu drama cotidiano e sua glória definitiva. É o que o torna único, substancialmente diferenciado do seu entorno. É aquilo que atrai a Dra. Giordano desde o primeiro momento que o vê, em 2010. 

Apesar das transformações dos personagens, o espectador atento perceberá que certas coisas não mudam: o amor de Giulia por Andrea; um certo vínculo sentimental entre Agnese e Andrea; o ímpeto de Andrea em ousar criativamente ao tratar os casos; a busca incessante por um sentido na vida, em cada personagem...mesmo nos que tem o demônio mais forte que o anjo. É aí que reside a essência. E isso se percebe ao longo do tempo, assistindo os episódios e compreendendo os personagens. Assim o espectador vai formando um mosaico. Mosaico dinâmico, que no conjunto traz uma mensagem muito bela e poderosa.

Para saber mais, só assistindo. Pois um simples texto é incapaz de transmitir a profundidade de uma série bem construída, com direção, argumento, edição, trilha sonora, figurino e personagens fantásticos - animados por excelentes atores. 

Fica a dica.

Links:

https://observatoriodocinema.uol.com.br/series-e-tv/2021/11/medico-de-doc-uma-nova-vida-existe-e-e-revelado-o-que-aconteceu-com-ele

https://www.panorama.it/lifestyle/Televisione/doc-2-seconda-puntata-saurino

https://www.imdb.com/title/tt11876490/

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