Nós temos imensa dificuldade em fazer auto-crítica. Tão grande é essa dificuldade que passamos a ser muito mais brandos em nossas críticas dirigidas para o exterior - de modo a não sermos forçados a lidar com a provável reação, em sentido contrário e de intensidade igual ou maior, que aponta nossos defeitos. Ao fazermos avaliações profundas e intermitentes de fatos externos somos compelidos a expor nossa realidade interior (nossas atitudes e atos, nossas visões de mundos) para o mundo, que irá avaliá-la de modo tão ou mais incisivo. A questão aí não reside necessariamente em deixar de fazer questionamentos e assumir postura crítica, mas de estar (muito) melhor preparado, intelectualmente, emocionalmente, fisicamente e (mais importante) espiritualmente para lidar com as investidas que o meio apresentar.
Todas as coisas que não estão diretamente relacionadas à nossa vida são alvos relativamente fáceis. Quem possui o intelecto luciférico altamente desenvolvido percebe isso, e se aproveita dessa característica humana para atingir seus interesses. Isso não é apenas verdade no campo da política, mas em todas instituições humanas: corporações, mídias, nações, religiões, famílias, etnias, áreas do saber, profissões, grupos etários, sexos, gêneros, classes sociais. Ataca-se no outro o defeito que em nós é pequeno. Esconde-se o defeito alheio - que em nós é grande. Aparentemente defende-se o outro por bem. Mas tudo me indica que, - lá no fundo, no remoto fundo da alma - quando estamos investindo na crítica, usando os métodos do mundo (que é o nosso, em maior ou menor grau), sempre há uma astúcia por trás do aparente bem. E no mal, sempre há uma redução de efeito visível de nossos ataques violentos, de forma a torná-los mais apresentáveis e "humanos", mais toleráveis pela sociedade "do bem" e dos "bons costumes", garantindo assim a perpetuidade dos métodos. Estamos diante das maiores profundidades da vida humana.
Essa forma mental é a que nos aprisiona nesse (triste) plano evolutivo. Usando os métodos do mundo para questioná-lo, estamos diante de uma reação de igual intensidade. Essa reação é diversa a depender do biótipo. Para a imensa maioria (o homem médio, situado no plano racional-analítico que serve os instintos), ela será difícil de ser lidada, pois tende a cercar o ser com espelhos metafísicos, forçando-o a explicar ao mundo se ele, de fato, tem autoridade para fazer apontamentos tão ousados. O fato é que não o tem, pois ele não é o que espera do mundo, e dessa forma acaba reagindo de forma idêntica, lançando esses mesmos espelhos ao redor daquele que faz as críticas diversas, para expô-lo. Como nessa batalha não há desejo de abrir sua alma para realizar autocrítica - o que poderia estimular o grupo a elevar o debate para outro nível, mais profundo e realmente transformador - perpetuam-se rebatimentos externos. Reações mais intensas, às vezes mais elegantes / elaboradas, que apresentam maior complexidade. Chega-se num ponto em que o intuitivo sente que os nós dados em torno de tema tão simples começam a exigir tamanho esforço que a eficiência cai a um nível absurdamente baixo. E a partir desse ponto abandona-se o tema, ora voltando a ele, sempre da mesma forma, com os mesmos métodos e resultados...
Francisco de Assis percebeu a brutalidade de permanecer na alta posição social. Egoísmo puro não era com ele... |
Existem outras formas de lidar com isso. Uma delas é simplesmente não tratar do tema. Reduz-se o nível de (postura) crítica, ousadia (inteligente) e sinceridade (vulcânica) a quase zero. Como resposta o mundo, a sociedade, a mídia (os instintos!) deixarão o ser em paz, podendo seguir sua vida sem golpes fortes - a não ser daqueles que nosso mundo presenteia abundantemente a todos(as). Esse é o caminho fácil, em que se foge de algo e simultaneamente acredita-se estar melhorando interiormente, - por causa da ausência de conflitos externos e camuflagem dos conflitos internos via ruídos exteriores como trabalho alienado, consumo conspícuo e dependência midiática. No entanto o problema permanece na alma e se manifesta na forma de uma dependência cada vez maior de ruídos externos. Isso é a ânsia por novidades, a necessidade enorme de exibir o seu histórico, títulos, posição (seja ela social, acadêmica, física, financeira,...todas quantidades), o ato mecânico de sempre deixar seu entorno cheio de ruídos - sejam eles humanos ou eletrônicos - e a criação de metanarrativas* a respeito de grupos específicos, formas mentais e acontecimentos históricos para satisfazer certas tendências psíquicas fortemente enraizadas. O produto dessa combinação é uma repetição cotidiana. Uma aprendizagem lentíssima, que se dá através da fixação da personalidade num patamar. Não se transforma, não se abre para o mais da qualidade que ilumina e acelera, sempre preferindo-se o menos da quantidade que inunda e engessa. Alterar esse rumo implica em alterar a si mesmo, num nível nunca antes experimentado. Deve-se estar pronto para o que vier. Mas igualmente isso só pode ser feito para quem estiver suficientemente preparado, com o estofo espiritual mínimo para iniciar a jornada. Estofo sem o qual pode-se cair numa espiral de desespero por não saber lidar com a substância interior. O que nos leva ao outro método, que nada mais é do que adquirir a capacidade de ser sinceramente consciente e ousadamente inteligente.
Quando conquistamos a habilidade de trabalhar com esses reflexos vindos de fora, absorvendo o que retorna para emitirmos algo diferente, mais elevado, menos contraditório - seja em ideias, atitudes ou ações - melhoramos o mundo externo, pois ele deve trabalhar num terreno mais sofisticado para continuar no jogo. A quantidade de Lúcifer cede um pouco de espaço à qualidade de Lógos. Começa-se a inverter o rumo de nossa nave. E com isso vem o trabalho jubiloso, muito acima do alienado. E a reflexão brota, redefinindo o conceito de necessário, e assim rejeitando o consumo alienado por melhor focar no consumo consciente. Essa força que brota de uma profunda convicção interior é o melhor modo de transformar o mundo. Mudar a forma mental. Ela inicia uma mudança em cadeia, que cresce como uma onda. Forma mental estimula a reorientação da ciência e do pensamento filosófico que plasma instituições, que forjam as bases para superar o sistema hodierno - calcado em acúmulo indefinido e segregação entre saberes. Parte-se da crença, passa-se pela fé e chega-se à experiência direta [1]. Passar de um nível a outro é tarefa titânica mas compensadora. Libertar-se da escravidão das necessidades supérfluas (luxo-lixo) é a maior potência para acabar com o que não mais serve a uma nova humanidade. Essa atitude é inexpugnável.
Mas nada de novo falei até aqui que não tenha sido dito, explicado, exemplificado, teorizado ou prosado. Agora verso o ponto diferencial.
Existe um aspecto que temos dentro de nós que contribui (e muito) para o mundo não progredir. E trata-se de algo aparentemente inocente, não-causador de males. É o nosso ato de querer ir para o local bom (de lá) que (geralmente) sustenta o ruim daqui (e do mundo), simplesmente para termos uma vida mais plena. O nosso desejo de morar num país de alta qualidade de vida é natural. Quem não gostaria disso? (eu certamente aceitaria uma boa proposta). Mas andei refletindo muito a respeito disso. Observando o porquê de eu, de você, de todos nós ansiarmos sempre por ir para um lugar melhor, e comecei a perceber um aspecto muito sombrio nisso tudo. Um aspecto que, feita a soma do conjunto dos desejos e vontades, mantem as coisas como estão e reforça a lógica do mundo, garantindo o domínio do forte sobre o fraco.
Se eu quero ir para um lugar de boa qualidade de vida porque aí posso melhor me desenvolver, sou uma pessoa sensata. Isto é o que o senso comum diz. Quero viver num meio em que possa viver melhor e me desenvolver mais. Mas ao fazer isso estou abandonando o meio que é pior (onde vivo), e que portanto mais precisaria de gente capaz para auxiliar, e parto para um meio em que já é bom e devo dar minha contribuição para ficar melhor ainda. Sinto nisso uma reprodução da lógica de concentração - de renda, oportunidades, etc. É como se todo ser humano estivesse reforçando (justificando) a política de assalto praticada pelo sistema financeiro. Na essência percebo uma semelhança assustadora. Vejamos mais a fundo.
No Butão o governo estabeleceu prioridades diferentes. Há contradições, mas muitos aspectos são bons para serem incorporados na sociedade. |
Todos seres que passaram por esse planeta e foram reconhecidos como aqueles que ajudaram a elevar o nível médio da humanidade, foram justamente aqueles que fizeram o avesso do que nós ansiamos. Partiram dos melhores meios para caírem nas situações menos favorecidas. Cristo é o máximo dos máximos dos exemplos. Francisco de Assis, Pietro Ubaldi e Albert Schweitzer [2] (o Profeta das Selvas) são exemplos supremos. Se todos ou apenas uma boa parte de nossa espécie fizesse algo minimamente parecido com o que estes exemplares raríssimos fizeram, o mundo seria um paraíso. Porque não é saindo dos lugares pobres e feios, usando toda astúcia, para entrar nos lugares ricos e bonitos, que o mundo se tornará melhor. Especialmente porque esses lugares ricos e bonitos, em larga medida, historicamente contribuíram para o empobrecimento de certas regiões; e igualmente se beneficiam de determinadas conjunturas globais para manterem seus altos padrões de vidas. Quantas empresas europeias não se encontram em lugares remotos do mundo tendo um lucro enorme à custa de populações? Isso tudo deve ser inserido num balanço global.
A Islândia (seu povo) é outro exemplo de como poderíamos nos conscientizar e controlar nossas vidas de forma mais sincera e plena. Sua revolução - não coberta pela mídia - tirou-os da crise. |
Quem é verdadeiramente rico não o ficou às custas do desequilíbrio do meio ambiente, da exploração de outros povos, nem da perpetuação e consolidação de sua posição (obtida pelas suas explorações passadas). Logo, até o presente momento, posso afirmar com segurança que nunca vi uma nação verdadeiramente rica. Algumas estão tentando caminhos diversos, com modos de desenvolvimento alternativo, como o Butão [3]. Outros se dão a nível menor, mas de forma mais complexa, através de ecovilas, como a comunidade de Tamera em Portugal [4], [5]. São novos aspectos brotando no mundo de forma ordenada, consciente e orientada. O desafio é perceber a profunda realidade e criar a partir de onde estamos, percebendo que o mundo não é um migrar unidirecional alienado, mas um transformar multidirecional virtuoso, visando a conquista de dimensões superiores. Criar o país rico aqui, verdadeiramente rico, não às custas de outros corpos, culturas, riquezas e massacres históricos, mas por meio de uma nova atitude, que brota de uma diversa concepção de vida.
Podemos fazer isso de onde estamos. Comecemos abrindo-nos para conceitos novos e experiências mais profundas.
Vencendo a lógica emborcada que construiu nosso passado e governa nosso presente estaremos adquirindo a "lógica mais lógica", não emborcada, que enriquecerá nosso passado e construirá nosso futuro. Um futuro completamente diferente.
Referências:
[1] https://osegredo.com.br/2018/01/entendendo-as-3-etapas-do-desdobramento-espiritual/
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Schweitzer
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/But%C3%A3o
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Tamera
[5] https://www.youtube.com/watch?v=IryCO3MvAiQ
Observações:
* Metanarrativa (também conhecida como meta-narrativa e grande narrativa; do francês: métarécit) é um termo literário e filosófico que significa simplificadamente a narrativa contida dentro ou além da própria narrativa. É um termo que tomou o centro dos debates ao final do século XX pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998), pois este considerava que se estabeleceria o fim das grandes narrativas. Um exemplo das grandes narrativas presentes nos discursos, segundo Lyotard seriam o iluminismo, o idealismo e o marxismo. O prefixo met(a)- tem sentido de "além de; no meio de, entre; atrás, em seguida, depois". [Wikipedia]
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