domingo, 3 de fevereiro de 2019

Entre duas virtudes

Existe apenas um modo de apreender algo definitivamente: através da experiência. Podemos ler tudo sobre algo, estudar, abstrair conceitos e até mesmo refletir. Mas o que garantirá que o âmago de nossa alma se transforme de modo efetivo é passar por uma vivência íntima. Com o estudo de algo podemos apenas aprender - para apreender é imperioso entrar no campo de batalha. O Kurukshetra [1] da Bhagavad Gita. Todos nós podemos iniciar essa batalha, em nosso interior. Ela se inicia quando estamos prontos, tendo superado as piores tendências e nos livrado das ilusões mais sorrateiras do mundo (Maya). Vencê-la representa a maior conquista humana, capaz de transformar tudo.
Primeiro, contemplamos. Depois, com o espírito preenchido
de inspiração, "criamos" através de um trabalho incessante.
Apenas aquilo que macera a alma tem o poder de despertá-la. Ela se torna mais expandida a partir do uso positivo da dor. A capacidade (da alma) de lidar com complexidades aumenta na mesma proporção que converte experiências - geralmente dolorosas - em produtos acabados, tangíveis ou não. Assim adquire-se a habilidade de elaborar ideias, redigir textos, compor músicas, realizar estudos e trabalhos, dialogar habilmente, enfrentar situações de exposições, manifestar sentimentos, mudar os hábitos e - sobretudo - enxergar o significado profundo que se manifesta na superfície cotidiana. 

Duas são as virtudes a serem dominadas pelo ser. Uma foi percebida pelo Ocidente - outra pelo Oriente. A primeira é a capacidade de ação. A segunda, a arte da meditação. Uma é atividade que opera no mundo de forma dinâmica e se repercute na sociedade, de uma forma benéfica ou maléfica. A outra é contemplação do mundo interior, com a adoção de uma vida simples e de reflexão, buscando trabalhar a essência do indivíduo. Dessa forma podemos dizer que o leste trabalhou a arte da sabedoria enquanto o oeste exercitou a ciência da aplicação. Ambas são importantes para atingir o que a arquitetura criacionista denomina salvação. A questão é a dificuldade em exercitar ambas (virtude) e torná-las um binômio dinâmico capaz de construir a personalidade de forma a acompanhar o desenvolvimento do indivíduo.

A personalidade é a forma com que a nossa individualidade se manifesta nesse plano físico. São características relacionadas ao ambiente (geográfico-cultural) e às características genéticas (pai-mãe), que o espírito deve usar para moldar o organismo físico e mental. A individualidade se refere ao espírito, ou consciência, que - como o próprio nome indica - é algo indivisível e intangível. É muito importante destacar essa diferença para que não corramos o risco de nos confundirmos na hora de estabelecer comunicação sobre assuntos desse tipo.

O que comumente se vê é pessoas com aculturadas a exercitarem um dos pólos (reflexão ou ação). Mas isso é feito de modo incompleto e mecânico. Com baixa intensidade. Uma reflexão que se traduz como puro exercício para aquisição de verniz intelectual ou cultural é mal usada. Uma ação horizontal, que tende ao abuso, com fins egoístas (individualismo), é pior do que nada fazer. Logo, é preciso saber realizar a ação e a reflexão verdadeiras. Esse é o primeiro ponto.

A contemplação se dá através da busca do
nada. É com o esvaziamento da mente e a calmaria
dos sentidos que podemos conhecer nossa essência.
A partir do momento em que nossos atos começam a ser pautados por objetivos que extrapolem os limites de nosso horizonte de expectativas, podemos dizer que estamos ascendendo nesse pólo. É preciso ignorar as consequências do presente quando se sente um ideal distante conduzindo nossas atitudes, lá nos recônditos da alma. O mesmo se dá com a reflexão: quando mergulhamos no vazio, permeando nosso ser com conceitos incompreensíveis pela mente racional, precisamos fazê-lo a partir de um desejo sincero e ardente que visa a melhoria efetiva de nossa alma. Caso contrário o esforço será em vão. Eis a segunda observação.

Ter uma ou outra virtude bem desenvolvida leva a pessoa a notar a existência do outro pólo: para avançar na verticalidade mística é preciso dar as mãos ao outro pólo, cujas características são complementares. Esse aspecto dual do universo faz parte do monismo.

Nesse ponto Gilson Freire destaca que dualismo é um termo negativo, antagonismo entre finitos, que nega o monismo, apoiado apenas na característica transcendente de Deus - excluindo sua imanência. Ela enxerga apenas a competição - o que conduz à destruição. Já a dualidade é um termo positivo, no qual duas coisas (ou seres), apesar de suas diferenças, se unem, num amplexo de complementaridade que se traduz em cooperação. Sobre essas duas realidades da vida (cooperação - competição), Antônio Nobre [2] explica a função de cada uma: a cooperação é o modo de operação que o nosso planeta (e toda a vida!) adota para regular e viabilizar a evolução. A competição é usada como última alternativa, quando a colaboração não é mais possível.

A ação é transformação, atuação no meio. Seu produto deve
trazer um ganho de experiência - e um auxílio ao próximo.
O mundo infra-humano está em constante cooperação, apesar das crueldades dos predadores. Porque a inteligência dos animais é restrita a um férreo instinto que os prende a fronteiras de atuação. Dessa forma, no conjunto, cada qual buscando satisfazer suas necessidades (instintivas) acaba regulando a comunidade global de seres - e não alterando os fenômenos. Os humanos, por possuírem razão, são capazes de prever e planejar; de potenciar os meios e traçar finalidades; de transformar e comunicar; de encurtar as barreiras espaciais e temporais - sem no entanto superá-las. Acabam usando essa capacidade fenomenal de raciocinar para satisfazer os seus instintos - que são muito semelhantes aos dos animais, grupo mais próximo na escala evolutiva. São instintos mais sofisticados, que se traduzem em vontades buscadas de forma incessante. A elementar fome passa a ser desejo de propriedade. O sexo evolui para a perpetuação da família, da nação, da cultura. Conservação do indivíduo (fome) e da espécie (sexo). A primeira e segunda leis da vida, citadas por Pietro Ubaldi em seu livro História de um Homem. Mas nós humanos temos imiscuído em nosso âmago uma força que clama por conquistas que vão além das quantidades...Conquistas voltadas para nosso interior. Conquistas que não se preocupam com a fortificação das coisas externas como aparência, posição social, títulos, dinheiro, etc.

A terceira lei é aquela que não se interessa pelas coisas do mundo, e sim em fazê-lo melhorar. É a lei da evolução. Quem se alinha a essa lei? No momento, raríssimos indivíduos. É a lei do ser que segue o Evangelho, tendo-o em seu íntimo. Francisco de Assis é um exemplo de homem da 3ª lei. Santos,  chefes de estado, místicos, pensadores, artistas, cientistas.

É preciso combinar o melhor de cada ideia, conceito, ideologia, prática, especialidade, religião e filosofia. Sem o qual não seremos capazes de retornar ao Sistema* - ou seja, atingir a salvação. Cristo afirmou que é preciso, além de "amar a Deus acima de todas as coisas", também "amar o próximo como a si mesmo". 

Retornar-se-á aos mitos da criação de um modo amadurecido: na forma de visão unitária do Todo.

Referências:
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_de_Kurukshetra
[2] https://www.youtube.com/watch?v=R0z4vPOVFTc

Observações:
* Podemos resumir os conceitos ubaldianos da seguinte forma:
Sistema = 'reino' do imponderável, além do espaço-tempo e do relativo, o absoluto (o Céu dos cristãos)
Anti-Sistema = universo físico em transformação, relativo (a Terra dos cristãos, que no tempo atual é um inferno)

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