O cinema espanhol do século XXI nos brindou diversas produções fantásticas - e sobretudo, importantes para compreendermos a complexidade das relações humanas e do mecanismo de funcionamento da estrutura de poder. E no mundo das séries, esse país da península ibérica fincou algo que jamais será esquecido. Se trata da série Isabel, sobre a ascensão e reinado da rainha de Castela (Castilla, na língua original), o reino mais importante dentre os quatro que formarão futuramente o que conhecemos como a Espanha moderna: Granada, Castela, Aragão e Navarra, os reinos independentes na época.
Isabel, fervorosamente católica - muito mais que a Igreja, o que lhe valeu o título. |
Com treze episódios por temporada, três temporadas, cada episódio, com cerca de 70 minutos cada, traz a intensidade, a violência, a ousadia, os acordos, a selvageria, o amor e a grandiloquência de uma época muito especial da História. Tudo que se passa aconteceu e é retratado da forma mais fiel possível, passando ao espectador a sensação de estar vivenciando os dramas, passo-a-passo, da princesa Isabel e seus colegas mais próximos (além de inimigos ferozes). Há muitas emoções nessa série. Série que não tem medo de mostrar a violência, as traições, as reviravoltas e atos de coragem guiados por intuições. Tudo na dose certa, no momento certo, com os personagens apropriados.
Graças a um elenco de primeira, o espectador se depara com uma verdadeira lição sobre atitudes e atos da vida - e de brinde, uma aula de História sobre o reinado que iria alçar aquele pequeno país ao topo da hierarquia do poder global, unificando-se sob a égide de uma mulher, desenvolvendo-se e financiando a expedição que iria levar à descoberta (e ocupação) das Américas pelos europeus.
A temporada 1 começa com o anúncio da morte do rei Henrique IV, irmão mais velho de Isabel. Num ato de ousadia inteligente, a princesa, ao invés de aguardar a comissão que iria se reunir para decidir quem governaria o reino de Castela: Juana, a (suposta) filha de Henrique com Joana de Avis, ou Isabel). Essa indecisão permear todos os episódios da 1ª temporada - e a seguir, tomada uma decisão de uma parte, a conflagração de um conflito que colocaria o reino de Castela e Aragão à beira da extinção.
Apesar das muitas narrativas minuciosas, alguns detalhes são apenas sugeridos, como por exemplo de quem seria a paternidade de Juana. Era sabido que Henrique IV fora casado por 12 anos antes de se unir com Joana de Avis (irmã do rei de Portugal, João II), e desse primeiro matrimônio não resultou nenhum descendente. Com Joana não foi muito diferente, o que levou o rei a ser conhecido como Henrique, o impotente. Mas sua impotência fatal não seria exatamente devido a problemas biológicos.
Isabel e Fernando: a aliança que viria a formar o reino unificado da Espanha - e torná-la a maior superpotência do mundo por muito tempo. |
O irmão mais velho de Isabel era inconstante além da saudável flexibilidade exigida para a diplomacia e a manutenção de seguidores fiéis. Mudava de planos e demorava a tomar decisões. Não era resoluto. Era contra a guerra, na maior parte das vezes, sim. Mas isso não impediu conflitos sanguinários. E à medida que a série avança o espectador se dá conta do quão fraco era o reinado do rei - que acabava sendo dominado pelos interesses de poderosos nobres e clérigos, o que nos leva aos dois grandes personagens sedentos de poder: Carrillo, Arcebispo de Toledo, e seu sobrinho Pacheco, Marquês de Vilhena, o grande vilão da história.
Carrillo é mais ponderado que seu sobrinho, porém determinado e intenso como Pacheco em suas reviravoltas e esquemas. Pacheco é mais vil, mais odioso e investe todas suas forças para conseguir o que deseja. Esses dois sustentam o poder atrás dos bastidores. Possuem exércitos, influencias poderosas, riquezas, lábia, astúcia (muita astúcia) e seguidores. Um rei que cumpre apenas o elementar se torna manipulável na mão de personagens dessa estirpe.
No início da 1ª temporada vemos uma Isabel determinada, ao lado de Gonzalo Chacón, seu preceptor e homem de confiança, ser coroada rainha de Castela, em 14 de dezembro de 1474. Logo a seguir o espectador é arremessado alguns anos antes, quando a grande rainha era apenas uma princesa relativamente inexperiente, aparentemente frágil e longe de assumir o cargo.
O que se segue é uma jornada permeada de esquemas, traições (por todos), reviravoltas (por parte dos poderosos) e indecisões (por parte dos governantes). É dificílimo não se envolver. A trama é envolvente, apaixonante. Quando Fernando, Príncipe de Aragão e Rei da Sicília, conhece Isabel, com quem deve se casar, vemos como a química do casal se dá de forma muito poética. Os atores Michelle Jenner (Isabela) e Rodolfo Sancho (Fernando), magníficos em seus papéis, conseguem transmitir a intensidade da relação íntima dos dois monarcas. Vemos que há espaço para tudo, exceto a indiferença.
A determinação lhe salvou de todas ofensivas, caracterizando um milagre |
A trilha sonora é uma maravilha à parte. Potente nos momentos de tensão; melódica nos intervalos de contração dos nervos e reflexão dos personagens; intermitente durante os momentos de suspense, banhados de indecisão e incerteza. O figurino é fiel à História. Existe um quadro muito famoso que retrata a tomada de Granada por Isabel e Fernando, quando o monarca da cidade - o último muçulmano a controlar terras em domínio europeu - entrega a chave da cidade para o casal. A cena traz o quadro à vida. E todo desenvolvimento das duas temporadas dá significado ao evento. Isso é o que caracteriza uma verdadeira narrativa audiovisual! Trazer para o âmago daquele que assiste a sensação de viver naquela época. Assistindo Isabel, nos tornamos mais realistas sobre a natureza humana. Os problemas da vida pessoal de um casal se mesclam às suas responsabilidades como governantes de seus reinos. O que já era complicado de lidar isoladamente se torna exponencialmente mais vívido.
Passados treze episódios, o mosaico vai se formando e tudo fica claro. A primeira cena ganha significado e já percebe-se que a próxima temporada virá com toda força, cheia de tensão, arquitetada por um dos mais poderosos inimigos da rainha. Mas não irei falar mais. Somente assistir poderá dar a visão.
Há muito a dizer sobre essa bela obra cinematográfica. Mas antes de tudo, parabenizo toda a equipe, que soube melhor como ninguém expressar as misérias e glórias de uma época, de um povo - e do ser humano. A melhor série que vi até o momento - e dificilmente alguma irá usurpar seu lugar tão cedo.
A trilha sonora de Federico Jusid é uma jóia à parte (ouça abaixo).
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