domingo, 30 de março de 2014

Trecho do livro "O Elogio ao Ócio"*, de Bertrand Russell**, páginas 29 a 31 (parte 2)


Parte 2
"Se o assalariado comum trabalhasse quatro horas por dia, haveria bastante para todos, e não haveria desemprego – supondo-se uma quantidade bastante modesta de bom senso organizacional. Essa ideia choca as pessoas abastadas, que estão convencidas de que os pobres não saberiam o que fazer com tanto lazer. Nos Estados Unidos, os homens costumam trabalhar longas horas, mesmo quando já desfrutam uma ótima situação, e ficam sinceramente indignados com a ideia do lazer para os trabalhadores, a não ser na forma do castigo cruel do desemprego. Na verdade, eles rejeitam o lazer até para os seus filhos. De um modo muito estranho, ao mesmo tempo que desejam que seus filhos trabalhem tanto que não tenham tempo de se civilizarem, esses homens não se importam que suas esposas e filhas não se dediquem a trabalho algum.

A inutilidade esnobe, que nas sociedades aristocráticas se estende a ambos os sexos, numa plutocracia é limitada às mulheres. Isto porém não torna a inutilidade mais de acordo com o bom senso."


Interpretação
Se o assalariado comum trabalhasse quatro horas por dia, haveria bastante para todos, e não haveria desemprego”

Essa afirmação não é solitária e encontra muitos adeptos. J.M. Keynes – Prêmio Nobel da economia do Século XX e teorizador do Estado de Bem-Estar social – foi (e ainda é) um dos maiores defensores da redução da jornada para a solução de diversas chagas sociais, culturais e ambientais. [leiam o discurso “Perspectivas Econômicas para nossos Netos”, de 1930, proferido por Keynes em Madrid]. 



Aparentemente radical ou utópica – porém nunca implementável – para a grande maioria da humanidade, essa proposta é analisada detalhadamente por Russell num capítulo específico de seu livro, explicando o porquê da necessidade de redução de jornada.

Não pretendo entrar em detalhes porque não conheço a fundo o pensamento desse grande acadêmico e humanista, mas posso esboçar algumas ideias e desmistificar os lugares-comuns adotados pelos “realistas” e “práticos” que abundam no mundo.

O primeiro ponto é o seguinte: graças a mecanização e a automação, há cada vez menor necessidade de manter as pessoas presas em trabalhos repetitivos e perigosos. Isso inculsive se aplica aos trabalhadores de escritório, com ensino superior e/ou pós-graduação. O único (e mais evidente) motivo para manter as pessoas presas GRANDE PARTE de seus dias numa tarefa que não requer tanto está no fato de que atrelou-se a SOBREVIVÊNCIA do trabalhador ao LUCRO da empresa.

LUCRO → 
SOBREVIVÊNCIA DO “GRUPO” →
GARANTIA DE EMPREGO →
 POSSIBILIDADE DE VIVER DIGNAMENTE

Dessa forma, uma pequena redução da (dita) produtividade causaria uma perda de competividade da empresa, e com isso suas vendas decairiam e a receita seria diminuida – gerando corte de vagas. Esse argumento, aparentemente coerente e pleno de razão, contém uma série de erros.
 
O primeiro erro é que esse tipo de análise desconsidera a NÃO-LINEARIDADE da produtividade. Ou seja, ficar mais horas dentro de um lugar não irá gerar mais. Especialmente se o trabalho for do tipo criativo – como desenvolvimento, pesquisa, artes, ensino, decoração, etc.
 
Segundo erro: a análise desconsidera a MULTIDIMENSIONALIDADE humana. Cada vez mais os jovens afirmam e seguem a filosofia de não se prender a uma atividade a vida inteira. E consciente ou inconscientemente, seguem o rumo do progresso – que, apesar de alguma desorientação em alguns campos, é o melhor que pode-se ter atualmente. Reduz-se o tempo na fábrica para que a pessoa possa exercer outras POTENCIALIDADES e VERTENTES de sua vida. Algumas delas são a:

Afeitividade
Sociabilidade
Atividades físicas
Viagens
Estudos diversos (línguas, música, artes, filosofia, espiritualidade...)
Cultura e Lazer (esportes, teatro, shows, concertos, cinema,...)

Essas áreas são FUNDAMENTAIS para o desenvolvimento de um ser humano. E demandam tempo. São inclusive geradoras de RIQUEZAS INTANGÍVEIS. Ter pouco tempo e praticamente uma ninharia de energia para se dedicar a elas é, a meu ver, a causa primária da INEFICIÊNCIA que impera na maioria dos meios de trabalho.

Não é possível esperar que um ser humano dê o máximo de si sem que sua vida afetiva, social, sua saúde e suas necessidades básicas estejam em ordem.

O terceiro erro é que conseguiu-se inculcar (a fundo) na mente de muitas pessoas a ideia de que a finalidade de tudo é a geração de lucro e o crescimento econômico 'ad infinitum'. Qualquer pessoa de bom senso percebe a incoerência desse objetivo. E – pior de tudo – infelizmente estamos profundamente atrelados a essa lógica.

A humanidade vem construindo um edifício com fundações frouxas (desde o fim do Estado de Bem-Estar, na década de 70, 80,...). Um modelo de vida tão atraente quanto inacessível é apresentado a muitos. E para quem consegue atingi-lo, logo logo percebe que a felicidade ganha é temporária. E que essa felicidade é insustentável. Internamente e globalmente – daí a razão de ser temporária.

A finalidade do ser humano não deve ser o ganho.

A economia deve servir a sociedade. Não o contrário. As suas tem suas finalidades e são essenciais. Mas os fins e os meios não estão em seus devidos lugares nas mentes de muitos a muitas. Isso deve ser mudado.

(continua...)

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