"Inicio logo o argumento, estabelecendo a pergunta: existe em nossa vida um destino? E, se existe, até que ponto tem ele o poder de enlaçar nossos atos? Existe nestes uma zona de fatalidade? E até que ponto esta exclui nossa responsabilidade? Devo presumir, como já admito, o princípio de causalidade; mas pergunto: até que ponto o efeito é ligado a causa de modo a excluir o livre-arbítrio?"
Trecho de palestra proferida pelo Prof. Pietro Ubaldi no Brasil, 1951. [1]
Ao se aposentar como professor, aos 65 anos, Ubaldi fez uma visita ao Brasil. Foi convidado por um grupo de pessoas ilustres que encabeçavam o movimento espírita. Nomes importantes que divulgavam uma nova visão de mundo. Com as contribuições de Chico Xavier, o espiritismo ganhava novo impulso nessas terras. Alguns espíritas, percebendo a oportunidade de ganhar um aliado importante, fizeram esse convite - esperando ter um elemento importante que orbitasse em torno de seu sistema; outros, mais bem intencionados, estavam mais interessados em aprender com o profeta da Umbria. Os primeiros acabaram por perceber que se tratava de um homem e uma obra que ia além de suas abordagens, com conceitos revolucionários - revolucionários porque mergulhavam na raíz, fazendo uma leitura da Teologia casada com a mais moderna Ciência. Viram que iriam acabar eles orbitando em torno de um novo sistema. Sistema mais vasto, abrangendo todos momentos da Lei de Deus, unificando e explicando os saberes, os sentimentos e as narrativas mais díspares. Para esses, era unificação demais.
Mas antes de se estabelecer no Brasil com sua família (esposa, filha e duas netas), o professor permaneceu em terras sul-americanas por cinco meses: de julho a dezembro de 1951. Nesse período conheceu inúmeras pessoas interessadas em conhecer o pensador. Muitos não percebiam o quão importante era o sistema filosófico em elaboração: apenas se maravilhavam com a figura do homem. Uns poucos, porém, já percebiam a importância capital da vinda desse homem aqui. Ubaldi percorreu todo o Brasil, realizou inúmeras conferências e palestras, difundindo as ideias que captava das mais altas correntes noúricas. Deve ter sido um momento fantástico. Aqueles que presenciaram são verdadeiramente abençoados. São os primeiros do povo a terem recebido a mensagem do monismo de Pietro Ubaldi.
A palestra cujo título coincide com o deste ensaio deixarei disponibilizada integralmente no ensaio subsequente. Aqui irei discorrer um pouco sobre a questão abordada pelo professor.
Muitos acreditam que o destino é uma fatalidade. Não há livre-arbítrio - apenas um férreo determinismo. Um determinismo que pode ser prazeroso e alegre, cruel e sofrido ou mediano. Mas esse pensamento nos deixa de reboque no grande organismo: seríamos meros autómatos que, independente de nossas intenções e atos, sofreremos as consequências boas ou más. Nesse universo o culpado pode triunfar e jamais pagar pelos seus males - e o inocente e esforçado pode viver eternamente na amargura e queda, sem nunca melhorar de condição. Isso é o que muitos veem na vida: banqueiros e empresários e governantes e famosos e astutos sempre abusando do poder mas jamais pagando por esse abuso. No máximo, se o sujeito não foi suficientemente astuto, alguma penalidade pequena. Aos que tentam implantar bases de mudanças efetivas, se entrelaçando aos poderes para influenciar concretamente, em algum momento podem se tornar bodes (expiatórios) e sofrer com isso. E nisso muitos se perguntam se há de fato alguma justiça no cosmos.
Para os que creem no livre-arbítrio, o ser seria capaz de tudo fazer, tudo mudar. Não haveria nada fixo, determinado. Somos criaturas irmãs com a substância do Pai. Criaturas relativamente perfeitas. Mas essa liberdade total também vai contra a noção que temos de justiça divina. Porque não sabemos usá-la. E por isso sempre agimos de forma equivocada, sem compreensão dos efeitos. Isso ocorre porque não conhecemos a Lei em sua totalidade: descobrimos, ao longo de muitos séculos (e mesmo milênios) alguns aspectos dela (inúmeras leis no campo das ciências naturais e humanas, e modelos dos mais diversos tipos para apoiar decisões e rumos). No campo moral, ainda somos cegos e vamos por tentativas e erros.
Existe uma ciência moral que permite um cálculo exato de consequências para cada indivíduo e coletividade. Não se trata de um cálculo com nossas ferramentas convencionais - apesar delas poderem auxiliar na compreensão do fenômeno. É uma questão de percepção. De sentimento. De intuição. Quando esse novo grau de consciência for conquistado, caminharemos de forma mais suave na vida - como indivíduo, família, povo e civilização.
Então podemos afirmar com segurança de que, para satisfazer os requisitos de justiça divina e de rigor lógico-científico, determinismo e livre-arbítrio devem co-existir. Não apenas isso, mas também devem se relacionar profundamente com os acontecimentos de nossas vidas. Aí entra a questão do imponderável em nosso destino.
Antes de continuar, uma observação.
Eu me dedico a desenvolver essas ideias com uma vontade imensa. É um ímpeto que não posso frear; uma obrigação a qual não posso renunciar; um dever que não devo abandonar. Porque aqui não apenas compreendo intelectualmente a ideia de imponderável e destino - um imponderável que, em certas ocasiões, pode gerar no plano físico o que denominamos milagre. Mas compreendo experimentalmente, por meio da vida, na prática. Isso me ocorreu em mais de uma ocasião, da qual já falei aqui algumas vezes. Com isso as palavras ganham força além daquela para a qual elas foram projetadas a dar. Há um aspecto que transcende o texto. O conjunto está imbuído de um quid. Não se trata de exercitar o estilo, mas de revelar um princípio.
Dito isso, prossigamos.
Nossa personalidade é resultado de um conjunto de forças cristalizadas (no forte subconsciente) e atuantes (no dinâmico consciente). A resultante dessas forças nos dá nossa posição e nosso rumo: onde estamos e para onde rumamos. Esses dois elementos nos dá uma ideia de como estamos no momento.
Tendo passado por incontáveis reencarnações, é de se esperar que o subconsciente tenha um manancial de emoções, automatismos, instintos fortíssimos, que acabam por influenciar a nossa vida de modo determinante (daí parte do determinismo). Não temos controle consciente de nossos (ainda muitos) vícios e (ainda poucas) virtudes. Temos hábitos cuja origem nos escapa. Mas sempre agimos de acordo com nossos instintos, revestindo-os com um verniz de racionalidade: argumentações para nos defender e justificar comportamentos; cálculos de interesse; conhecimentos e teorias; fatos.
O nosso consciente (razão) está ainda muito escravo de nosso subconsciente (instintos). Mas percebemos que isso não é uma situação permanente, mas uma fase pela qual passamos.
À medida que concluímos ciclos (do micro ao macro) adquirimos experiência. O conjunto de aprendizados fica registrado e é assimilado pela nossa mente. As emoções são trabalhadas. E com isso vamos adquirindo novos hábitos. Quando esses novos hábitos se cristalizam, podemos atuar em outras frentes, tentando novas empreitadas. Tudo isso demora anos e décadas e séculos. Se o vício a ser superado é forte ou a virtude a ser conquistada é elevada, o trabalho pode perpassar vidas. Mas somos seres em transformação e vamos nos conhecendo cada vez melhor à medida que caminhamos no oceano do Anti-Sistema.
O imponderável atua a todo momento. Esse imponderável é um princípio que se manifesta através dos fenômenos da vida. São as forças do Sistema coordenando, em linha gerais, os elementos decaídos (nós) que lutam para reconquistar aquela perfeição perdida. O imponderável é elegante na atuação e poderoso nos efeitos: ele não é bruto - ele conduz; ele não quer aparecer - ele atua no íntimo. Trata-se do método da convicção. Isso no entanto não significa que o imponderável deixe de desencadear reações terríveis a certas pessoas, povos e civilizações. Significa apenas que seus métodos são muito mais sutis e efetivos do que os nossos.
Para quem deseja se aprofundar na questão do imponderável e milagre, recomendo um ensaio passado [2].
Quando um ser gera um pensamento (princípio) e começa a trabalhá-lo (desenvolver ideias), gera-se uma vontade que se traduz em ações. O ser começa a movimentar um jogo de forças dentro de seu alcance para realizar um plano de vida - que julga o mais adequado para ele. Essa ação começa a se concretizar em obras (fatos). Assim nós construímos nosso próprio destino, mesmo que não sejamos capazes de estabelecer de modo claro a relações entre princípio, meio e fim.
Princípio = Pensamento = Ideia = Espírito
Meio = Vontade = Ação = Energia
Fim = Obra = Fatos = Matéria
Por percebermos apenas os efeitos finais deixamos de ver ordem em nossas vidas. Isso irá mudar assim que conquistarmos uma nova forma mental.
A partir do ponto em que a visão se dilata até atingir a gênese dos movimentos fenomênicos, a percepção do Todo será cristalina. As causas, hoje ocultas, serão percebidas. Com isso será possível relacionar cada acontecimento, cada evento, cada fato. Os comportamentos serão justificados. As estruturas estarão evidentes. Os modelos mentais ficarão expostos à consciência e não será mais possível exercer o método da astúcia - pois todos perceberão o quão prejudicial ele é para tudo e todos. Nesse momento despontará a nova civilização.
A Ciência começa a ter uma percepção de que o imponderável existe - e tem muito a nos ensinar (ver o vídeo abaixo).
Referências:
[1] O Problema do Destino e do Imponderável. Pietro Ubaldi. Palestra, 1951.
[2] Miracolo non ci aspectta - si crea. Leonardo Oliva. Ensaio, 2018.
[3] Aprender com o imponderável: Luis Carlos Menezes at TEDxUSP
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