terça-feira, 30 de agosto de 2016

Necessitamos de um Choque de Realidade

"Necessitamos de um Choque de Realidade" diz, Ladislau Dowbor [1], no último parágrafo de seu mais recente artigo em Outraspalavras [2]. Toda pessoa que adquire bom senso começa a perceber claramente isso. Começa a se dar conta de que, se não mudarmos radicalmente nosso modo de conceber a vida, não teremos uma (vida) para levar - muito menos nossos filhos e netos. Essa concepção se traduz na finalidade que vemos nas relações afetivas, no "trabalho"*, no consumo, na Arte, na Ciência. Conceber a vida como um mero acúmulo de bens e/ou sensações, de títulos, de 'papers' publicados e coisas do tipo empobrece o campo das possibilidades. 

Negar o Além, A Utopia, baseado em experiências passadas, nos imobiliza a tal grau que nos assumimos como impotentes diante de uma Era que exige tudo menos impotência. Uma Era que demanda criatividade no campo das Humanidades; uma Era que aponta para uma necessidade de reconhecimento à Terra; uma Era que exige integração entre saberes, pessoas e instituições; uma Era que demanda o desmoronamento do que não serve mais, a começar pela dissolução da forma mental que sustenta um sistema fechado em si mesmo. Um sistema que exclui o planeta, a vida vegetal e animal - e mesmo humana! - e reduz ao monetarismo tudo que pode, mercantilizando terrenos aceitos no íntimo humano como os Direitos Universais. Me refiro à Saúde, Educação, Moradia, Previdência, Cultura, Segurança, Saneamento, Transporte, Água, Alimento e Informação (de verdade!). Já falei sobre isso anteriormente [3], e sempre o repito, de outra forma, pois trata-se de tema não-abandonável.

Para aqueles que ainda vêem os ideais de Justiça Social como algo a ser combatido por terem "matado milhões de pessoas" (de onde vieram esses dados?), mostro-lhes uma realidade que é evidente, está diagnosticada, e causa sérios impactos na vida das pessoas e do planeta: a máfia imobiliária. Aponto para o caso de São Paulo [4], capital próxima da minha cidade que vêm se tornando referência em exclusão.

É bom lembrar que a História da Humanidade sempre teve assassinatos em massa. Sob várias formas. O problema é vermos apenas os mortos por fuzil de um regime ou outro, enquanto esquecemos de buscar as causas que levaram a consolidação desses regimes - sejam elas internas ou externas. E também por não vermos como brutalidade os milhões mortos por fome (num planeta que ainda produz abundância), doenças (que poderiam ser facilmente erradicadas), depressão, conflitos étnicos (advindos por pressões econômicas), entre outros. São 500 milhões de pessoas sofrendo tortura diária por falta do necessário, segundo Jean Ziegler:

"A maioria dos seres humanos que não têm o suficiente para comer,segundo o autor, localiza-se nas comunidades rurais pobres dos países do hemisfério sul. É histórica a condição de miséria e fome dos camponeses e, atualmente, eles correspondem a aproximadamente 500 milhões vivendo em condição de extrema pobreza." [5]

O capitalismo, em seu desenvolvimento, apresentou possibilidades de elevar a humanidade a novos patamares. Me refiro à Era de Ouro (1945-1973), do Estado de Bem-Estar Social. Após a Crise do Petróleo poderíamos ter iniciado uma translação para um Modelo de Desenvolvimento que, além de garantir as estruturas de Assistência Social, de Proteção ao trabalhador e de Serviços Públicos, ampliasse-as para os países de capitalismo periférico (América Latina, África e Ásia), além de reformulá-las, de modo a preparar a humanidade para novos tempos. Isso implicaria em integrar o modelo político-social com a questão Ambiental-energética. E igualmente em iniciar a criar uma cultura que aponte para a elaboração de novos planos de vida, pautados por horizontes mais vastos que demandam menos recursos - porque capazes de ativar riquezas interiores, não-tangíveis no espectro presente. Isso não ocorreu. Na contramão do desenvolvimento humano, iniciou-se um movimento conhecido como Neoliberalismo, cujos resultados estão se tornando mais claros a cada ano - em todas esferas da vida.

Outra questão crucial é "trabalho", "lazer" e "estudo".

O desacoplamento entre "trabalho" e "emprego" é essencial para iniciarmos um debate sério e honesto a respeito de legislação trabalhista, redução de jornada, saúde, informação e cultura. Apesar de estarem relacionados, eles não são a mesma coisa.

"A maioria das pessoas associa as palavras trabalho e emprego como se fossem a mesma coisa, não são. Apesar de estarem ligadas, essas palavras possuem significados diferentes. O trabalho é mais antigo que o emprego, o trabalho existe desde o momento que o homem começou a transformar a natureza e o ambiente ao seu redor, desde o momento que o homem começou a fazer utensílios e ferramentas. Por outro lado, o emprego é algo recente na história da humanidade. O emprego é um conceito que surgiu por volta da Revolução Industrial, é uma relação entre homens que vendem sua força de trabalho por algum valor, alguma remuneração, e homens que compram essa força de trabalho pagando algo em troca, algo como um salário." [6] 

De fato, estudando História (alguém ainda faz isso?) pode-se perceber a inexistência do conceito "emprego" antes do século XVIII. A partir da Revolução Industrial passou-se a acoplar-se Trabalho e Emprego, de tal forma que, se a atividade que você exercesse não estivesse inserida no circuito econômico (que cada vez menos se identifica com o circuito humano), ela não seria remunerada, e portanto nada restaria a não ser morrer de fome, virando um farrapo humano. Não quero por isso dizer que não tenha havido grandes progressos científicos, tecnológicos e mesmo sociais. Mas estes últimos tiveram de vir por pressão dos trabalhadores, que culminou no Estado de Bem-Estar (para pequena parcela da população do globo!) durante as 3 décadas que se seguiram à 2a Guerra. Quanto à ciência e tecnologia, acredito que sua importância é enorme, mas deveria ser mais corretamente orientada.

Trabalho é qualquer atividade que engrandeça o espírito, despertando a consciência e exercitando habilidades. E que - de preferência - sirva a interesses sociais. Uma vez que à medida que a humanidade progride em sua jornada, mais se reconhece a necessidade de colaboração. A grande questão é: essa "colaboração" vem sendo fartamente abusada por determinados grupos (em especial), que fazem uso de conceitos belos para colocar seus subordinados à serviço de seus interesses. A lógica ocorre em todas grandes esferas: religiosa, estatal e corporativa.


Mas o que eu realmente gostaria apontar é para o último Café Filosófico apresentado pelo professor Vladimir Safatle, da USP.



Para aqueles que tem tempo e cuja consciência já começa a aflorar, recomendo fortemente assistir ao vídeo. Nele o professor revela características que apontam para o monismo**. A metade inicial da palestra pouco revela, com esboços teóricos difíceis de serem captados pelo grande público. No entanto, a partir de um ponto, começa-se a descer às consequências práticas daquilo exposto. A filosofia e a natureza humana atual se tornam molas propulsoras (ou congeladoras) dos movimentos e organizações (ou não) políticos e sociais.

Uma ideia precisa fracassar várias vezes para que ela possa produzir o que ela realmente é capaz de oferecer ao mundo. 


Ubaldi descreve em A Descida dos Ideais o que Safatle já sente intensamente. Este começa a compreender tudo. Aquele já vislumbrou o Infinito - e viveu-o no mundo.


O Ideal vem e volta ao mundo, sob a forma de ideias adaptadas ao atual estágio evolutivo deste. Essas ideias geram em correntes de pensamento, que culminam em movimentos concretos - inicialmente tímidos, futuramente vigorosos. A partir daí abre-se uma série de possibilidades antes inexistentes que apontam para alternativas à lógica atual. A questão é: a forma mental dominante, que sustenta, conscientemente ou não (geralmente não) o sistema dominante, com suas instituições controladas e limitadas, se incomoda com distúrbios profundos. Trata-se do egoísmo. Este, presente em todos nós, faz de tudo para satisfazer sua vontade, que é extrair o máximo - em todos termos - para satisfazer-se em projetos sem utilidades benéficas a longo prazo - inclusive para o próprio.

O Ideal é o Real Absoluto. O real relativo é o mundo como o grosso da humanidade o concebe. Dessa forma, aqueles reconhecidos como realistas podem ser os maiores utópicos, enquanto os utópicos sinceros podem ser os maiores realistas [7]. Isso é lógico e se explica por vivermos num universo emborcado.

Acreditar que seguir as normas estabelecidas indefinidamente, num sistema incompleto e contraditório em seu desenvolvimento final, possa levar ao bem-estar geral, é perigoso justamente por ser puramente racional. 

O afeto também é um tipo de razão. Só que uma razão mais elaborada, de difícil parametrização, de difícil descrição, de difícil compreensão. É uma razão superior à própria razão. Porque ela parte do interior do ser. Ela é, por excelência, o que se conhece por intuição. Você SENTE a Verdade. A partir daí começa o Verdadeiro Trabalho: traduzir esse sentimento para algo que o mundo possa assimilar. Degradar a visão para que a humanidade comece a caminhar em direção à mesma. Degradar da forma mais potente possível, minimizando a possibilidade de distorções por agentes mal-intencionados.

"Não existe verdade só pra você". É exatamente o universalismo que preenche as obras dos grandes iluminados de todos os tempos: Rohden, Ubaldi, Pascal, Spinoza, Hermes Trimegisto,Sócrates, Buda, Cristo,...todos apontavam...apontam, para a mesma REALIDADE.

A Verdade é uma só. Caso contrário ela seria fragmentada e inútil para a Vida. A questão é: temos de absorver os contrapontos - jamais eliminá-los. Caso haja um embate entre A e B, ambos devem ter seus egos luciféricos destruídos para que seus Eus Crísticos sejam realizados e integrados.

Se às vezes eu "ataco" algum pensamento, ou alguma pessoa (que o incorpora) no campo das ideias (jamais no plano físico, econômico, financeiro ou afetivo), não estou atacando sua substância , e sim a incapacidade de sua forma em descrever a realidade e viver em harmonia com ela. E ao mesmo tempo me abro, convidando-a a apontar, sinceramente e logicamente, as possíveis contradições de minha concepção da vida.

Existe uma diferença muito sutil, que devemos reconhecer urgentemente. Assim seremos capazes de nos observar melhor, e atuar de modo muito mais eficaz na vida. É a sensibilidade predominando sobre a atuação. É a sensibilidade profunda orientando a ação, potenciando-a, tornando-a mais completa e portanto harmônica. Assim passamos de seres sociáveis para seres com sensibilidade social [8].

A Antiguidade teve seus Profetas. O mundo contemporâneo também tem os seus. Esses profetas dos dias atuais - como os antigos - apontam para uma necessidade urgente que temos mas não sabemos: a necessidade de um choque de Realidade. Podemos chegar a esse choque por conta própria, iniciando projetos que jamais sonharíamos em implementar. Projetos visando arriscar nosso eu humano para propagar nosso Eu Divino, e assim plasmar uma base de unificação sob a qual todos os seres humanos bem-intencionados, sinceros, lógicos e coerentes até o último grau em sua busca, possam se apoiar e fazer a mesma coisa.

Iremos todos convergir para o mesmo ponto, mantendo nossas individualidades, mas desenvolvendo-as ao máximo, tornando-as tudo que ela podem ser. E assim operaremos em prol da Unidade.

Do Politeísmo ao Monoteísmo.

E deste ao Monismo**.


Referências
[1] DOWBOR, Ladislau. http://dowbor.org/
[2] http://outraspalavras.net/destaques/cronica-em-meio-a-grande-crise-global/
[3] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2016/04/declaracao-universal-dos-direitos.html
[4] http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/sao-paulo-nas-maos-de-uma-oligarquia-imobiliaria/
[5] http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n122/0101-6628-sssoc-122-0381.pdf
[6] https://www.ime.usp.br/~is/ddt/mac333/projetos/fim-dos-empregos/empregoEtrabalho.htm
[7] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2014/08/dois-tipos-de-utopia.html
[8] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2014/02/sensibilidade-social-versus.html

Notas
* explicarei logo em seguida o porquê das aspas
** http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2015/06/monismo.html

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