sexta-feira, 17 de abril de 2020

Renascer exige morrer

As barreiras que se impõem inexoravelmente àqueles que decidem adentrar em matagais conceituais densos, cheios de armadilhas, - e obviamente sem o apoio da compreensão humana - são variadas. Elas crescem à medida que se avança. Todos morrem nesse caminho. Uns antes, outros mais adiante. O desgaste é iminente. A demanda por criatividade, permanente. Continuar em certas trajetórias demanda mais do que coragem, mais do que inteligência. Exige uma ousadia inteligente temperada com uma pitada de fé. 

Fé vem do latim fides, que significa "fidelidade", qualidade de quem é fiel (a algo/alguém). É, segundo Huberto Rohden, a capacidade de sintonizar com uma fonte que transcenda a capacidade cognitiva, isto é, estar ligado de alguma forma a algo que vá além do mundo tangível, compreendido em larga medida através da objetividade - um dos pilares do pensamento racional-analítico. Para os romanos "fé" significa a materialização da palavra proferida, ou seja, uma declaração cumprida, concretizada.  

É preciso enfrentar a ignorância e abraçar a fé.
Photo de Andrey Zvyagintsev (Unsplash).

Fé não é crença. Enquanto a primeira é dar um salto da razão rumo às misteriosas sobras do porvir, a última é acreditar em algo que lhe foi narrado por terceiros. A primeira é um ímpeto de coragem em busca de criatividade. A segundo é um freio da liberdade que gera uma repetição e engessamento de comportamentos.

Levando isso em consideração, possuir uma pitada de fé é ter um grau mínimo de sintonização com algo absolutamente belo, bom além do compreensível, e infinitamente forte

Vamos por partes..

1. O que é absolutamente belo? 
Ou seja, belo sob todos os pontos de vista, em todas as épocas, para todas as culturas e em qualquer lugar. Apenas algo que não esteja sujeito às vicissitudes desse universo imperfeito (mas em evolução!). Algo que não esteja sujeito às suas leis, apesar destas revelarem características desse objeto desconhecido (belo), de forma que esse conceito esteja na multiplicidade das leis, e estas sejam manifestações relativas dessa grande beleza.

2. O que é bom além do compreensível? 
Traduzindo: um algo que possui uma capacidade natural de beneficiar a tudo e a todos, em todos os momentos, da forma mais inteligente possível, dando musicalidade à marcha evolutiva do universo, da vida e da consciência. Resposta: Apenas algo que respeite as imperfeições de um universo atrasado. Para isso o acasalamento desse bom perfeito (além do compreensível) com as bondades relativas (e consequentemente, maldades relativas) deve se dar de forma a degradar a manifestação do primeiro em prol da elevação do segundo. 

Perceba: o que é infinito, quando se mescla ordenadamente com o finito, deve gerar como produto alguma coisa tangível (mesmo que não para todas formas de vida), compreensível (mesmo que não para certos níveis de consciência) e portanto reconhecível para indivíduos e sociedades que atingiram o grau requerido para assimilar um novo fenômeno - seja este físico, dinâmico ou psíquico.

A simbiose do além (para todos) com o aquém (de uns ou de outros) é o fenômeno responsável pela famigerada evolução.  Ela que dá a característica  de espiral à nossa trajetória. 

A Trajetória dos Movimentos Fenomênicos.
Quando algo novo desce a este mundo, inicia-se uma batalha titânica entre forças consolidadas do Anti-Sistema (AS) com os resplendores tangíveis que revelam um pouco a mais do Sistema (S)*. Tudo que não pode ser minimamente capturado pelo intelecto assusta e gera medo. Aquilo que não pode ser sentido é considerado quimera, alucinação. A primeira reação é ignorar. Depois, à medida que a "doença" se manifesta, as reações começam a ficar mais claras, adquirindo agressividade. Mas por mais percalços que sofra, a nova encarnação morre e renasce, morre e renasce, em vários corpos, assumindo formas diferentes, que exprimem o conceito central de forma cada vez mais elegante, lógica e atraente...Este é o fenômeno evolutivo em sua tradução mais pura (até o momento). Pietro Ubaldi nos brindou com a mais completa síntese do conhecimento e do amor. 

3. O que é infinitamente forte?
Ou seja, há de fato algo que possa resistir a qualquer evento, processo, fenômeno, permanecendo sempre igual? Se sim, é por ser perfeito. Logo, o infinitamente forte deve ser perfeito. Como inexiste perfeição em nosso universo (AS), esse algo infinitamente forte só pode pertencer a outro universo, que é perfeito como esse algo (S).

A ideia que fazemos de Deus está vinculada às nossas características. Expandimos nossas virtudes ao máximo concebível para elencar os atributos de Deus. Damos forma à Ele (como se ele tivesse forma...). Damos características humanas (raiva, ciúme, sensação de ofensa), já rebaixando-o. Á medida que o ser evoluiu, a noção de Deus vai ficando cada vez mais clara. Desmaterializa-se. Cai o antropocentrismo. Compreende-se enfim que Ele é, no fundo, extremamente obediente à Sua Lei - pois ele É A Lei.

Mas como?, pergunta você. Se ele é Todo-Poderoso, poderia derrogar a qualquer momento suas leis para auxiliar os justos. Certo? Errado.
Ok, Oliva...você está delirando. Até acho seus ensaios inspiradores e (ao mesmo tempo) fortemente embasados na lógica e com forte respeito à toda(s) ciência(s) (além de poéticos). Mas aqui você foi longe demais...

De modo algum. Porque a Lei é Sua natureza. Se a Lei é intrínseca a Deus, como pode Ela ser imperfeita. Tudo que provêm de Deus é Perfeito. Logo, Sua Lei também o É, o que nos leva à conclusão que não precisa ser remendada ou derrogada por Ele. Sim..Quando essa visão preencheu meu Ser, alguns anos atrás, senti uma felicidade transbordante e inexprimível. E Ubaldi explica em detalhes essa questão, que é impossível àquele bem-intencionado não se preencher de alegria - e passar a permear toda sua vida cotidiana com esse princípio. Uma conquista do espírito!

Gerei este texto para iniciar o ritual fúnebre pelo qual a humanidade deve passar - e iniciar por conta. É a morte de uma forma mental que não mais satisfaz os anseios nascentes de uma nova humanidade. 

Para renascer é necessário morrer.

Sem destruição não há criação. 
Sem perda não há ganho. 
Sem morte não há vida.

Ao menos aqui, no Anti-Sistema...reino da dualidade preenchido pelo espaço-tempo e pautado pelo relativo. Reino em movimento perpétuo.

Mas não há de se temer a morte, pois ela traz em si as condições para novas formas brotarem. 

Necessitamos de um novo modelo de civilização. E para isso é mister conquistarmos uma nova consciência. 

É preciso sentir a urgência dos tempos. A beleza dos gestos simples. A potência da vida simples. A emoção do estudo apaixonado e da pesquisa ousada. É preciso ir além de tudo - respeitando o bom já consolidado pelas instituições. É preciso manifestar todas as nossas intenções e ideias, boas e ruins, complicadas ou não, para realizarmos essa limpeza emocional e mental. Ficaremos mais leves e prontos para zarpar rumo a novos continentes, cujas belezas já poderão ser vistas com os olhos sendo gerados neste momento.

É preciso perceber a riqueza gerada pela eficiência. É preciso perceber que a maturação íntima lhe dará uma capacidade de penetração muito maior nas selvas da cultura, da ciência, do pensamento, da sociedade e da arte, do que a busca desenfreada por atualizar-se, por informar-se, por participar de tudo possível a todo momento - pensando em posições e garantias.

É preciso compreender que a ciência e tecnologia de hoje já é capaz de resolver problemas fundamentais que sempre assolaram a humanidade. Fome, doenças, guerras, violência, poluição, desentendimento,...tudo pode ser eliminado. Basta adquirir consciência de que há suficiente recursos e oportunidades para que todos possam se realizar ao grau máximo. Jacque Fresco percebeu isso - e muitos outros(as). O vídeo abaixo, Building an Abundant Future, da Singularity University, dá uma ideia.

É preciso dar um salto de fé rumo ao abismo que se apresenta.

Quem fala já deu um salto desses (pequeno...mas efetivo).

E diz: vale a pena...

Observações
* É recomendável conhecer a Obra de Pietro Ubaldi para absorver por completo o significado que o autor deseja passar.

terça-feira, 14 de abril de 2020

O espírito que animou o artificial

Quanto vale a imortalidade para você? Viver indefinidamente, sem morrer, mantendo o estado orgânico e psicológico dos seus melhores anos. Aparência saudável, robustez física, agilidade mental, rapidez verbal. Vitalidade...E se, além disso, lhe fosse possível possuir outros atributos? Como, por exemplo, uma memória enorme e uma velocidade de processamento de informação ímpar - que nenhum ser humano jamais teria condições de exibir. Em suma, uma ampliação das capacidades físicas e intelectuais. 

Nosso desejo oculto em vencer a inexorável irmã morte pode ter vitórias. Mas elas são raras - e temporárias. Mesmo com muitas sagacidades, chega o momento de cedermos e partirmos para outras regiões - ou para o 'nada', a depender da crença da pessoa. Esse desejo ardente em se imortalizar se encarna em nossas criações. 

Todas construções humanas expressam uma vontade que jaz no recôndito da alma humana. O subconsciente é um manancial de comportamentos incompreendidos que possui força hercúlea e ímpeto romano. Essa fonte obscura, que age de tal forma que nosso consciente pouco consegue controlar e compreender, possui muito a nos ensinar - sobre nossa natureza. E é dele que parte (digamos) a inspiração para exteriorizar nossas vontades, seja em forma de invenções, de teorias, de obras de arte, de correntes de pensamentos, de mitos da criação ou atos de amor. 

Homem Bicentenário (1999).
Desde a aurora das civilizações a humanidade cria máquinas. Somos a única espécie efetivamente exossomática - ou seja, que produz instrumentos cuja finalidade é estender as capacidades corporais e intelectuais. Começamos criando ferramentas simples. Depois chegamos às máquinas mecânicas. Depois às eletromecânicas. Inserimos os computadores nos processos. Inventamos máquinas que fazem máquinas e são capazes de tomar decisões. Decisões que nós, em condições normais (isto é, adversas... jamais ideais), com nossa bagagem de emoções incompreendidas e incompreensíveis, jamais seriam tomadas de maneira sábia. Ao criar essas artificialidades eficientes e sedutoras, confessamos que somos criaturas limitadas. Mas ao mesmo tempo, com isso, apontamos para outros horizontes.

A capacidade de sentir à fundo as coisas que ocorrem à nossa volta - e ocorreram em nossa vida, seja no plano material, financeiro, profissional, afetivo ou intelectual - é uma conquista biológica de um número (ainda) pequeno de criaturas. Criaturas que, perseverando nessa trilha, estão consolidando um novo tipo de inteligência que lhes dará um potencial de transformar sua realidade. E a realidade de seus irmãos - se estes ao menos compreenderem do que se trata.

Estou usando o período de isolamento para mergulhar em estudos e melhorar a qualidade de minha vida. Desenvolvi o hábito de: (a) caminhar ao menos 6 dias por semana, fazendo exercícios leves ao menos uma ou duas vezes; (b) preparar dois cursos de engenharia (estudando-os), em média dedicando 3 a 4 horas por dia a isso (domingo a domingo); (c) cozinhar (hoje fiz um belíssimo pão italiano); (d) ler e estudar autores renomados (recentemente terminei de ler um livro de Eric Hobsbawm); (e) manter um mínimo de trabalho obrigatório (reuniões, atendimento à distância aos alunos); (f) conversar (por telefone) com meu pai e esposa e; (g) assistir a filmes novos. Às vezes, revejo um filme do passado que ficou marcado em minha memória.

Ontem vi pela segunda (ou terceira) vez Homem Bicentenário (1999), estrelado por Robin Williams. É a história de um objeto que se torna sujeito. É a história de uma coisa que se revela uma pessoa. E não apenas uma pessoa, mas um ser de valor, com uma capacidade evolutiva fora do comum. É como se a potência do artificial estivesse à serviço da leveza do natural. Uma consciência brotando numa máquina...num robô? Sim.

Desde o primeiro 'contato' com a família Martin, um mal-entendido já lhe gera um nome. De androide passa a ser denominado Andrew. O batismo coincide com o principio (inexplicável) espiritual já contido naquela série de circuitos e rearranjos eletromecânicos que formam um robô destinado à servir as famílias.

A beleza de Homem Bicentenário está em revelar que o verdadeiro desejo está em se alinhar com a forma de vida material capaz de expressar os valores eternos do espírito, com todas suas idiossincrasias e ambiguidades. Ambiguidades por estarmos em busca perpétua, caminhando e superando formas mentais. Quebrando paradigmas e assimilando habilidades, conhecimentos e experiências. Nesse filme não é o humano que quer se tornar uma máquina, mas sim a máquina que anseia por se tornar humana. É o desejo de ser menos quantitativamente para ganhar mais qualitativamente. Viver a condição humana para vislumbrar as possibilidades dos espíritos que estão albergados em forma humana. Nosso estágio atual é humano. É complexo e lida com um equilíbrio de forças (Sistema x Anti-Sistema) que gera comportamentos contraditórios. Mas é um estágio..E Andrew, aquele que está robô mas não é robô, percebendo tudo isso, inicia sua jornada por adquirir a vestimenta que melhor expresse sua natureza.

A moça e seu amigo mecânico.
Antes de tudo (e percebam quanta beleza): a evolução se dá no ritmo da vida, lenta mas firme; incerta mas criativa. Os períodos são longos. Para Andrew, é preciso mergulhar numa outra relação com o tempo para conseguir alinhar suas essência com sua existência. É preciso demonstrar, apesar de todas impossibilidades e resistências, seu valor. Conquista a simpatia de uma família em tempo relativamente curto. Ganha o coração de alguns com os anos e décadas.  

A agilidade da evolução tecnológica deve passar a firmeza da inércia humana, dobrando-a, para que os tempos sejam maduros para que o que deveria ocorrer ocorrer de fato. Isso explica o porquê de Andrew não ter podido ter uma vida a dois com a Little Miss. O distanciamento era imenso em termos de normas sociais, legislação, possibilidades de intercâmbio orgânico, rotinas e prioridades. No entanto, o que interessava era quem era a pessoa com que se desejava passar os resto da vida. Mas isso, no mundo presente, tem pouco peso nas decisões.

Andrew é alimentado pelo chefe da família (Sam Neil), que fornece todas as condições para a emancipação de Andrew, visto como um robô até mesmo por aquele que queria humanizá-lo. Como se vê, o senso de posse se revela mesmo nas pessoas mais bondosas e com muita sapiência na condução da vida. Isso não rebaixa o personagem do pai, mas sim humaniza-o. Podemos ver Andrew como uma espécie de filho 'especial' - ao menos aos olhos do pai - que adquire a capacidade de tomar suas próprias decisões. Eis que a máquina de autonomia circunscrita ao âmbito do controle humano se vê verdadeiramente livre, podendo ditar o rumo de sua trajetória. 

Existem trechos pouco realistas no filme, sim. Andrew persuade muito facilmente Portia (a neta de Little Miss) a se casar com ele, no terço final do longa. Mas, ao mesmo tempo, o filme não pode explorar com o devido grau de realidade todas as nuanças da vida. Esse não é o escopo dessa obra. Obra que é um poema audiovisual que condensa em uma situação particular o valor da experiência humana nesse universo. Temos aqui um filme que deve ser visto, pensado e refletido. Mas sobretudo sentido

É muito gratificante sentir lágrimas correrem pelas faces em certas cenas, que fecham uma grande visão de uma realidade profunda. É nesse momento que podemos nos lembrar de nossa identidade - ou ao menos traços que levem a ela. 

Em O Homem Bicentenário, o espírito pousou no artificial, humanizando-o. E assim, chegando nesse estágio, pôde morrer, continuando seu caminho, junto a nós, num ciclo que só terminará com a espiritualização completa de todo nosso ser...