quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Monismo: de Benedito Spinoza a Pietro Ubaldi (Parte II)

Vivemos na era da informação. Há muito conhecimento sendo gerado e difundido pelo mundo. Ele é gerado em função de recompensas mundanas (dinheiro, promoção, titulação, prestígio, poder, vaidade, garantia de benefícios); e difundido pelos mesmos motivos, além de falta de ocupação das pessoas. Essa falta de ocupação advém da excessiva concentração do ser no mundo exterior. Com isso surge o senso de estar observando tudo à volta constantemente. E com isso, avaliando as coisas e as pessoas. Esses fatores são um sério empecilho para quem deseja descobrir aspectos mais profundas da realidade.
Ubaldi aos 45 anos - iniciando a missão.

Cristo disse que deveríamos buscar as coisas do Céu (Deus) em primeiro lugar. Todo o resto viria de acréscimo. Mas não fazemos isso: deixamos as questões mais importantes (a satisfação da Vontade de Deus e a busca por Ele) sempre por último - e nunca chegamos aos últimos afazeres! Então nada ocorre que não seja o esperado. Nada fantástico, inexplicável, maravilhoso, harmoniosamente coordenado, ocorre em nossas vidas. Esperamos o milagre fervorosamente, cumprindo rituais (sejam eles acadêmicos, profissionais, sociais ou religiosos) para que talvez ele ocorra em nosso benefício. Mas somos incapazes de criá-lo. Porque é muito trabalhoso dar um salto no desconhecido. Já falei alhures sobre essa questão [1]. Meu ponto agora é outro. 

Quem seria capaz de investir todas suas forças e mente num projeto que seguramente não trará nenhuma recompensa da parte do mundo? Investir no sentido de se doar, de corpo e alma. 

Estamos constantemente atazanados com reuniões e formalismos. Com pagamento de contas. Com processos jurídicos. Com questões burocráticas e de controle. Com medos que nos conduzem a tensões enormes - que por sua vez clamam por satisfações estapafúrdias, que gastam matéria e energia sem acrescentar um milímetro de grandeza às nossas experiências. Pois são elas o que engrandecem o espírito, isto é, nosso ser.

Tudo que levamos deste mundo é nossa essência. Ela é impactada por experiências durante a existência terrena. Se prezamos o acúmulo de coisas, sejam títulos, quantidade de fala, dinheiro, orgasmos, citações, contatos e etc., em detrimento da qualidade do aprendizado com a vida (especialmente com nossas derrotas e misérias), o que levaremos quando as traças corroerem tudo? Estaremos nus diante de nosso destino. Vazios de experiências e com um senso de tempo perdido. Essa não é a vida que eu quero. Isso no entanto não significa dar um passo cego em qualquer direção - em nome da coragem. Pois coragem não é isso, e sim avançar com determinação e senso de dever rumo a regiões desconhecidas, tremendo mas vivendo. 

Pascal: santo e gênio. Coisa rara.

Os grandes saltos evolutivos são impulsos embalados por coragem. São gritos de paixão dados por espíritos decaídos que anseiam retornar à pátria celeste. São expansões de consciência que levam o organismo biofísico aos limites, lutando contra o psiquismo que se torna diretor. Assim surgem patologias sublimes, que escondem um fenômeno profundo. É uma dor bela, digna de grandes espíritos. É o sofrimento que leva à redenção. Exige senso de infinito e eterno. Infinito porque opera na qualidade, com poucos resultados quantitativos (como reconhecimento). Eterno porque não se espera efeitos no espaço de uma vida terrena. É assim que surgem seres da envergadura da Pietro Ubaldi.

O mundo muito caminhou até chegar ao ponto em que estamos. 

Foram 4 bilhões de anos de esboços geológicos para se chegar a uma geosfera e biosfera amena;

Foram 3,8 bilhões de anos de elaboração da vida para se atingir uma criatura capaz de ter consciência dos fenômenos mais profundos do Universo, e da consciência de Deus;

Foram 6 milhões de anos do gênero Homo para se chegar a uma espécie capaz de brindar a Terra com almas da magnitude imensurável, em todos os campos, como o amor, a liderança, o pensamento, a ciência e a arte;

Foram 150 mil anos de evolução do Homo sapiens, passando por três revoluções (Y.N.Harari): cognitiva, agrícola e científica. Esta última começou a unificar o globo (pré-história da noosfera, ainda em formação, segundo T. de Chardin) e trazer à tona cada vez maiores e mais ousados impulsos rumo a uma unificação dos saberes, das pessoas, das ciências e das religiões, das correntes filosóficas e dos períodos;

Foram necessárias revoluções profundas no campo religioso, desde a noção de continuidade da vida após a morte (~80 mil a.C.), que partiu do animismo, adentrou no politeísmo (Antiguidade), se tornou monoteísta (Idade Média) e agora começa adentrar no monismo (séc. XVI até hoje).

O monismo já foi vislumbrado e proferido desde Orígenes. Muitos amadureceram seu aspecto. Spinoza trouxe-o a um nível nunca antes atingido. Mas desde sua época, poucos debruçaram sobre a questão central de Deus e o Universo. 

Nesse intermédio passamos por mais um grande ciclo: o da ciência e da tecnologia, em que o bem-estar e a democracia passaram a ser ideais a serem conquistados e efetivados. O Estado moderno nasce, e com isso toda sua formulação (Hobbes). Os avanços passam a ser exponenciais, tanto nas descobertas do mundo (física, química, astronomia, biologia, medicina, economia, sociologia, psicologia,..). As artes manifestas as sensações do espírito e se alinham ao pensamento da época (romantismo, racionalismo, naturalismo, positivismo, cubismo, modernismo, existencialismo,...). O mundo se torna um universo de passo exponencial. 

Os desenvolvimentos múltiplos geram paradoxos. Surgem desentendimentos e armas fortes para argumentar. O ego domina. O Eu sufoca. No meio de tantas obrigações (muitas inúteis), nos prendemos aos pequenos prazeres: checamos mensagens a todo minuto, conferimos investimentos, curtimos pessoas nas redes sociais, buscamos sociabilidade para falar sobre aspectos superficiais, descuidamos de nossos projetos mais íntimos, exigimos rapidez e beleza plástica, afogando nossa sensibilidade - a única capaz de perceber a beleza profunda e a velocidade da tartaruga. Velocidade que, apesar de ínfima, é preenchida de orientação e determinação [2]

Ubaldi em sua
maturidade.

Pietro Ubaldi nasceu em 1886 na cidade de Foligno, província da Umbria, numa Itália recém-unificada. De família riquíssima, tinha sua vida garantida. Nada precisaria fazer exceto seguir as regras de sua classe social e se aproveitar de suas benesses econômicas. Mas um problema colocou tudo por água abaixo: tinha uma afinidade indescritível pelo Evangelho e por seu verdadeiro autor: Cristo. 

O que parecia um salto rumo à perdição se revelou numa bênção para a humanidade - que ainda não se dá conta do tesouro deixado por um ser que decidiu viver conforme a Vontade de Deus.

Ubaldi deixou não apenas uma Obra de 24 volumes, na qual sintetiza de forma magistral (eu diria mesmo encantadora) todo o conhecimento e sentimento humano, arranhando o divino como ninguém o fizera até o momento. Ele igualmente viveu a sua Obra. Ela só se realizou graças à sua vida devotada ao Evangelho. Mas havia alguns detalhes importantes a mais.

Pessoas santas que seguiram o Evangelho há poucas, mas há. A própria rainha Isabela de Castela era uma pessoa fervorosamente devota a Deus (à seu modo, mas devota) [3]. Gênios da ciência, do pensamento e da arte, há poucos, mas também numerosos considerando seu mundo. Mas poquíssimos são aqueles que unificam as duas características: Santo e Gênio. Blaise Pascal pode ser considerado um deles. Pietro Ubaldi outro. Mas em Ubaldi ainda temos uma característica que o diferencia, abrindo talvez uma nova modalidade de seres que estão vindo à superfície desse pequeno planeta.

Em Ubaldi nasce pela primeira vez uma visão unificada do Todo (em vários aspectos, não apenas um). Surge o princípio que vêm embalando muitas pessoas - com visões cada vez mais claras do mundo ao nosso redor. O monismo começa a ganhar a cara que realmente tem. A palavra se aproxima do conceito - a letra se aproxima do espírito. Vivifica-se a razão através de uma fusão entre o incompreensível e o compreensível. Mas esse é apenas o início, como se revela na Obra. Será preciso adquiri um novo tipo de consciência (intuitivo-sintética) para compreendermos definitivamente todos os problemas de nosso tempo. Será preciso ascender em termos de inteligência, tornando o que gênios fazem ainda de forma desordenada (inspiração sem controle, inerte) um processos sistemático, controlado (inspiração ativa, consciente). Dessa forma controlamos o contato com o fenômeno mais profundo.

Spinoza havia dado um avanço ousado para sua época. Fora rejeitado por isso. Ignorado e desprezado por seus colegas de fé, compatriotas e contemporâneos. Mas hoje grandes acadêmicos estudam e percebem a grandeza de seus pensamentos -  e pessoas se encantam com suas visões de Deus. No entanto, a mentalidade mais avançada dos dias atuais (pessoas que unem sensibilidade, conhecimento, discernimento e equilíbrio) esboça os paradoxos do monismo spinoziano [4]. As pessoas mais evoluídas do mundo caminham a passos largos, mas ainda não encontram as orientações e explicações para as suas dúvidas porque a assimilação de grandes ideias demora décadas (senão séculos) para ser visualizada pelo mundo.

A visão de Spinoza demorou trezentos e cinquenta anos para ser plenamente compreendida e limitada pelo grupo que está na vanguarda da vivência e compreensão de Deus e do Universo. Quanto tempo será necessário para esse grupo assimilar Ubaldi e - incrivelmente, mas provavelmente - pontuar os paradoxos (agora muito menos graves e numerosos)?

Não encontro ainda muitos textos de pessoas que fazem um estudo profundo de Ubaldi e sua obra mundo afora. No Brasil, no entanto, temos grandes almas que já estão no curso de assimilação e de extensão dos conceitos. Pessoas como Maurício Crispim, Gilson Freire, Orlando Ribeiro, João Attilio,  Julio Damasceno, entre outros, estão tornando o Brasil o verdadeiro herdeiro inicial da Obra de Pietro Ubaldi - que aliás ofertou sua Obra oficialmente para os povos do Brasil e da América Latina [5].

Os paradoxos do monismo do século XVII são solucionados pelo monismo de Ubaldi, que plantou suas bases na faixa central do século XX (1931-1971). Vamos às questões:

1. Transcendência e imanência
Na visão de Ubaldi, Deus está em tudo que existe, existiu e jamais existirá no Universo, mas ao mesmo tempo está além desse todo universal, superando o espaço, o tempo e a nossa razão, de modo que ele transcende tudo que existe, garantindo-lhe um aspecto de mistério. Logo, a concepção de Deus se torna vastíssima, coordenando harmoniosamente Seu aspecto transcendente (Deus origem e fim de tudo, mas sempre mais do que suas criaturas) com Sua imanência (Deus animando o mundo, presente na dor de suas criaturas, ajudando-as a evoluir).

Isso resolve o infindável conflito entre presença e ausência da divindade. Deus é  infinito e eterno, mais do que o mundo (como a Igreja afirma de Sua magnanimidade) e, ao mesmo tempo, presente em todas as coisas do mundo (como Spinoza vislumbrou). Isso satisfaz simultaneamente as duas visões de mundo, sem ferir a outra. Aliás, uma reforça a outra, formando uma unidade coesa que não mais se digladia entre si - mas através de seus dois elementos manifestos e compreendidos, reforça-se cada vez mais.

Logo, a questão não é mais sobre
Deus = Universo, ou Deus = Universo
mas sim sobre
Deus e Universo, ou Deus > Universo + Deus contém Universo

Resta saber porque então a criação está num mundo imperfeito, cheia de dores e em mudança perpétua - do ponto de vista da dimensão espaço-tempo, pelo menos.

2. Teoria da Queda
Ubaldi resgata os conceitos do cristianismo de forma magistral. Indo (aparentemente) na contramão dos espíritas (mas não do espiritismo, que jamais negou a queda dos espíritos) e de sistemas evolucionistas, o grande místico da Umbria resolve a questão atribuindo a causa dos males do mundo à criatura. Isto é, nós.

Ubaldi chega a uma afirmativa inquestionável: no Sistema (o Universo Perfeito, que não é o nosso!) há apenas o Criador e as Criaturas, sendo que estas foram criadas por Deus.

O que ocorreu subsequentemente foi um processo de contração evolutiva, ou queda dimensional, que acabou por gerar o universo físico-dinâmico-psíquico em que estamos sofrendo e evoluindo. Essa queda só pode ter tido uma causa:

A) Ou Deus nos "arremessou" para esse mundo material cheio de dores (o Anti-Sistema, AS);

B) Ou a Criatura (os espíritos) fizeram algo que gerasse essa contração dimensional.

Mas Deus sendo Absolutamente Perfeito, Amor infinito, não poderia lançar seus filhos a uma realidade tão devassa. Logo, só resta imputar a culpa à criatura, ou seja, nós. O que nos leva a outro questionamento:

Se Deus é perfeito, como ele poderia ter criado filhos que caíram (ou seja, imperfeitos)? De modo que ou Deus é mau e logo não é Deus; ou Deus não tinha controle sobre as ações da criatura - e também não é Deus. De modo que as pessoas, não admitindo seu erro, imputam a Deus a causa de suas dores, classificando-o como perverso ou incompetente.

Grave erro...

3. Sobre a perfeição de Criador e das Craturas
Falamos que Deus é ABSOLUTAMENTE Perfeito. Se seus Filhos fossem tão perfeitos quanto ele, haveria uma completa identidade, e o Filho se igualaria ao Pai; e haveriam infinitos Deuses - coisa que caracterizaria uma anarquia de desordem, não um reino de ordem.

A criatura é RELATIVAMENTE perfeita. Ou seja, ela é perfeita em relação às suas qualidades características e funções divinas. Ela é uma célula perfeita, que deve cumprir a função para a qual nasceu. Se ela decidir se ocupar dos afazeres de uma célula diferente (outra natureza), ela estará invadindo um domínio que não é seu, e todo o sistema, por efeito dominó, irá colapsar - pelo menos para uma parcela de criaturas.

Percebam: a perfeição é bela e máxima, mas ela se subdivide em dois tipos: relativa e absoluta. Sem essa diferenciação Deus não seria possível.

Nós somos feitos à imagem e semelhança de Deus, e não de modo idêntico a Ele.

Semelhança implica que compartilhamos a mesma substância divina, mas não somos os agentes centrais da mesma. Se fôssemos idênticos não haveria diferenciação. Seríamos Deus mais muitos. Perde-se a unidade. E como somos forrados de defeitos, cai por água abaixo a ideia de Deus. Percebem? Devemos ver as nuanças para aceitar a Teoria.

Ubaldi narra de forma apaixonante sobre a criação original dos espíritos no Sistema (o universo perfeito, nosso verdadeira Lar). Seu livro Deus e Universo é uma síntese teológica-filosófica que aborda o que faltava abordar em A Grande Síntese. Com isso tem-se o panorama geral do fenômeno involutivo-evolutivo de nosso Universo.

Há muitos assuntos a serem tratados. É fascinante. Mas uma hora é preciso parar para descansar.

Numa próxima oportunidade pretendo começar a esmiuçar a Obra, relacionando-a ponto-a-ponto com a evolução humana e revelando a sua importância.

Deixo aqui uma bela palestras de Gilson Freire, proferida no COngresso Pietro Ubaldi.



Referências:

Monismo: de Benedito Spinoza a Pietro Ubaldi (Parte I)

Há tempos escrevi um ensaio sobre monismo [1]. Este escritos foi um primeiro passo em direção a um aprendizado que desde então vêm percorrendo uma trajetória ascendente em amplitude de domínio - e que se aprofunda em  assimilação. Ele foi uma impressão intuitiva sobre o que de fato significa em sua plenitude esse estado de consciência. Quero agora ir além disso, e falar em termos mais concretos, pois algo a mais foi apropriado pelo consciente. 

Como se sabe, o monismo já existe há muitos séculos. Diversos pensadores houveram nesse campo. Desde Orígenes (séc. III) - talvez o mais antigo de todos a esboçar essa visão de forma suficientemente clara - o termo foi, de tempos em tempos, ganhando corporeidade e força, amadurecendo à medida que o mundo trazia pensadores à altura. Assim o conceito vai sendo retomado, só que de forma mais profunda. O que muda não é o conceito em si, mas a interpretação dada a ele. Consequentemente, podemos falar em evolução de conceito - que se dá paralelamente à evolução da consciência da elite espiritual da humanidade. 
Spinoza deu um importante salto rumo à
compreensão de Deus e do Universo.

Benedito de Spinoza (séc. XVII) foi um dos grandes racionalistas e filósofos de sua época. Seguindo as ideias fincadas por René Descartes e desenvolvidas por Gottfried Leibniz, esse judeu do campo do pensamento desenvolveu a um maior grau o racionalismo de Descartes a um sentimento imanente de Deus, muito presente na Baghavad Gita e no Tao Te Ching. Pode-se dizer que Spinoza fincou uma das bases das quais Ubaldi iria partir para chegar à visão mais poderosa de Deus e o Universo.

Vamos começar pelas definições:

Monismo pode ser lido como doutrina (ismo) da unidade (mono). De um ponto de vista formal, é a crença de que tudo que existe na realidade (e que compreendemos), considerado fundamental (como os axiomas, cuja origem, por definição, somos incapazes de explicar), é a manifestação de um princípio único, mais profundo. Esse princípio foi chamado por Spinoza de substância, causa de todos fenômenos (manifestações) que nossa mente é capaz de assimilar e nosso organismo, de sentir. 

Podemos considerar o dualismo mente-corpo de Descartes como uma crença de que existe uma natureza (e portanto causa) primária, incausada, para o fenômeno do pensamento (mente) e o fenômeno corpo (físico, ou extensão). Uma bela melodia, por exemplo, pode ser explicada tanto do ponto de vista de um físico, como uma série de ondas de frequências distintas; quanto do ponto de vista de um crítico de música, que irá trazer à tona sensações despertadas pela música. Ela seria descrita tanto com termos físicos quanto mentais, mas permaneceria sendo o que ela é em sua essência: música. Podemos encarar assim essas duas visões do mesmo fenômeno como dois aspectos manifestos de uma realidade mais profunda, indescritível. 

Outro exemplo clássico: a luz. Até fins do século XIX, acreditava-se que a luz era composta de partículas pontuais que seguiam trajetórias retas. Os trabalhos de Newton e de Huygens sobre a natureza da luz trouxeram visões distintas sobre o que de fato era a luz: ora se tratava de um 'objeto' (Newton) com comportamento definido; ora se tratava de uma onda (Huygens) e portanto definível pelo arcabouço teórico da época.

Durante o século XIX surgiram estudos que foram comprovando as teorias de Huygens. Os experimentos da fenda dupla (Young) mostraram que o comportamento da luz se assemelhava ao de uma onda, devido ao fenômeno de interferência constatado. No final do século XIX (James Clerk) Maxwell explicou a luz como a propagação de ondas eletromagnéticas, usando suas famosas equações; isso foi verificado por (Heinrich) Hertz em 1887, tornando a teoria da onda amplamente aceita pela comunidade científica - o que no entanto não desqualificou por completo a visão corpuscular.

Tudo parecia resolvido. No entanto, o outro aspecto (outra visão) não provou ser falso: simplesmente não havia ninguém capaz de "defender" essa teoria acerca da luz. Assim, para quem possui uma visão mais profunda da fenomenologia universal, era evidente que surgiria um desenvolvimento no outro extremo. Esse progresso foi o primeiro passo para a unificação das duas visões - aparentemente antagônicas.

A mente possui dois aspectos. Mas será que não há algo 
mais substancial que seja manifestado de duas formas?
Em 1905 (Albert) Einstein propôs que a radiação eletromagnética era quantizada (fóton). A ideia era que, se a luz é absorvida ou emitida por um corpo, então isso deve ocorrer também nos átomos desse corpo. Quando um fóton (partícula de luz) de frequência f é absorvido por m átomo, a energia do fóton, E = h.f, é transferida da luz para o átomo, ou seja, essa energia seria o produto da frequência por uma constante h, conhecida como constante de Planck - por ter sido aquele que deu o pontapé inicial em direção a essa ideia.

A dualidade onda-partícula foi assim enunciada em 1924 pelo físico francês (Louis-Victor) de Broglie, que afirmou que os elétrons apresentavam características tanto ondulatórias quanto corpusculares - e que essas características seria manifestadas em função da observação (medição). Tudo dependia, portanto, do experimento. Daí para frente essa dualidade se consolidou, inviabilizando a negação de um time ('ondulistas') pelo outro ('corpusculistas'). 

Entretanto, permanece a questão: a luz é uma onda ou uma partícula?
E a resposta é: nem uma nem outra. 

Sua natureza é mais profunda. Permanece um mistério. E é esse mistério que o monismo de Spinoza começa a nos apontar.

Podemos estabelecer analogias entre as descrições (modelos) da música. Mas elas são incompatíveis entre si quando tentamos igualá-las, encontrando uma base comum no mesmo plano em que elas operam. Há um aspecto desconhecido que a ciência moderna ainda é incapaz de resolver. Existe a necessidade de unir-se com a evolução cultural e interpretar de modo mais profundo as escrituras sagradas. 

Spinoza percebeu que um Deus que cria algo do nada não pode ser Deus verdadeiramente, já que seus atributos apontam para o infinito e o eterno. Um Deus apartado da criação (transcendente) implica que ele não está presente na criação. E por menor e mais limitada que seja essa criação, Deus estando fora já o torna limitado (mesmo que imenso). Assim o filósofo judeu-holandês rompe tanto com o judaísmo quanto com o cristianismo - ou melhor, as comunidades cristãs e judeias o anatematizaram. Mas sua visão era coerente.

Resgata-se a imanência divina - ou seja, Deus é tudo que existe e seus princípios estão no âmago dos fenômenos, tanto micro quanto macro, do físico ao biológico ao psíquico e além. Mas como o Universo (da época) era considerado infinito e eterno, era natural que Deus (naturalmente eterno e infinito) fosse identificado com o próprio Universo, de modo que 

Deus = Universo

O que seria panteísmo: Deus em tudo e tudo em Deus, mas nada além do tudo (conhecido).

Superadas questões antigas, surgem outras. Spinoza tenta explicá-las, mas apesar de tudo acaba faltando pontes importantes entre seus pensamentos. Vejamos algumas consequências da visão dele.

Determinismo apenas?
Se Deus é absolutamente perfeito (o que é correto), para Spinoza tudo no Universo deveria ser determinado (o que é incorreto). Porque Deus não teria planos para o mundo. Sua obra é perfeita tal qual é - apesar de todas nossas dores e lágrimas e ilusões. Logo, o universo seria determinístico, o que por um lado estava alinhado com a ciência (cada vez mais dominante) da época. Ciência que iria se tornar a visão de mundo fundamental (Clássica), atingindo seu clímax conceitual em Newton - e seu ápice material no século XIX e XX. Por outro lado, o livre-arbítrio estaria relegado a uma mera fantasia teológica. Algo jogado para escanteio. E assim permaneceu por muito tempo.
Um mistério: por que Adão se esforça tão
pouco para se encontrar com Deus?
Nem o livre-arbítrio puro nem o 
determinismo puro explicam essa questão.


No entanto, nosso íntimo clama por uma capacidade de decisão. A liberdade de decisão se relaciona com a responsabilidade, que une profundamente com a natureza do trabalho - algo inerente ao ser humano. A teologia insiste no livre-arbítrio, mas não conseguiu explicá-lo de forma convincente. Mais: ainda não havia alguém capaz de unir a realidade determinística do universo com a potencialidade do livre-arbítrio do espírito. Essa questão só seria resolvida no século XX com Pietro Ubaldi.

O livre-arbítrio pode nos dar uma ideias de desordem (processo estocástico), que desagrada aqueles que desejam o progresso do mundo. Pois comumente a liberdade expandida se degenera em perversão, guerra, vaidade, corrupção e todos males. Em suma, desordem. Mas eu diria: é a nossa incapacidade de fazer uso da liberdade concedida que leva nossa espécie a sofrer dores desnecessárias. De modo que o universo é determinístico em seus aspectos compreendidos e que vão além de nosso poder de ditar suas leis - e estocástico quanto à incompreensão que temos de certos fenômenos. Eu já desenvolvi essa questão alhures, visando explicar se nosso cosmos seria um ou outro [2]

Percebam: estocástico não é sinônimo de livre-arbítrio. Porém eles se relacionam, Estocástico é algo imprevisível pontualmente, ao passo que liberdade é a capacidade de escolher entre um caminho e outro. 

Monismo ou panteísmo?
De fato, desenvolvendo à fundo a visão de Spinoza podemos identificá-lo mais com o panteísmo do que com o monismo. Mas isso se deve mais à falta de maturidade evolutiva do à má intenção. Ele não queria  intencionalmente dizer que chegou às últimas conclusões dos últimos porblemas - mas apenas apontar que não parecia haver lógica além do que apresentou. A partir desse prisma podemos considerá-lo um dos maiores pensadores monistas de todos os tempo. E talvez, quem saiba, o maior. Isto é, até o advento de um místico na Umbria. 

O advento das correntes reencarnacionistas no século XIX (com o Espiritismo de Kardec e a Teosofia de Madame Blavatsky) trouxeram à tona questões evolucionistas que se encaixavam com a questão Darwinista e os fenômenos inexplicáveis do mundo físico. A ponte era justamente em perceber a continuidade da vida em várias existências. Ou melhor, o automático movimento de aprisionamento e libertação da individualidade (espírito) num envoltório físico orgânico (corpo), criando uma vivência una em sua essência mas dupla em sua manifestação: a do mundo extra-físico e a do mundo físico. Essas visões são cada vez mais comprovadas pela medicina moderna (Deepak Chopra) e pela mecânica quântica (Amit Goswami).

Um ingrediente indispensável
Com o evolucionismo espiritualista o mundo se colocou em estado de preparação para receber uma visão mais vasta. O transformismo adentrou nas religiões, abraçando vários aspectos da realidade, se enriquecendo com isso. A visão neocriacisonista da ciência estabeleceu a dualidade do mundo física (onda-partícula), admitiu a indeterminação e constatou uma origem, e portanto limitação espacial, do Universo (sua finitude no espaço e no tempo); além disso, a relatividade de Einstein tirou tempo e espaço como grandezas absolutas, relacionou-as, e viu a luz como a entidade mais rápida do mundo material, criando a malha espaço-tempo (3D espacial + 1D conceitual de AGS*, ou realidade quadridimensional, 4D, no linguajar comum). Assim o Deus de Spinoza entra em cheque: agora que o Universo se revelou finito, como Deus pode ser o Universo? Um belo ensaio deixa claro as riquezas e limitações da visão de Spinoza [3]

Seria necessário o advento de uma outra explicação, que convencesse o âmago do ser humano - e ao mesmo tempo respeitasse as últimas descobertas da ciência.

Sobre isso falaremos na Parte II.

Referências:

Notas:
* AGS: A Grande Sìntese

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Isabel: 1ª Temporada

O cinema espanhol do século XXI nos brindou diversas produções fantásticas - e sobretudo, importantes para compreendermos a complexidade das relações humanas e do mecanismo de funcionamento da estrutura de poder. E no mundo das séries, esse país da península ibérica fincou algo que jamais será esquecido. Se trata da série Isabel, sobre a ascensão e reinado da rainha de Castela (Castilla, na língua original), o reino mais importante dentre os quatro que formarão futuramente o que conhecemos como a Espanha moderna: Granada, Castela, Aragão e Navarra, os reinos independentes na época.

Isabel, fervorosamente católica - muito mais que a Igreja,
o que lhe valeu o título.
Com treze episódios por temporada, três temporadas, cada episódio, com cerca de 70 minutos cada, traz a intensidade, a violência, a ousadia, os acordos, a selvageria, o amor e a grandiloquência de uma época muito especial da História. Tudo que se passa aconteceu e é retratado da forma mais fiel possível, passando ao espectador a sensação de estar vivenciando os dramas, passo-a-passo, da princesa Isabel e seus colegas mais próximos (além de inimigos ferozes). Há muitas emoções nessa série. Série que não tem medo de mostrar a violência, as traições, as reviravoltas e atos de coragem guiados por intuições. Tudo na dose certa, no momento certo, com os personagens apropriados.

Graças a um elenco de primeira, o espectador se depara com uma verdadeira lição sobre atitudes e atos da vida - e de brinde, uma aula de História sobre o reinado que iria alçar aquele pequeno país ao topo da hierarquia do poder global, unificando-se sob a égide de uma mulher, desenvolvendo-se e financiando a expedição que iria levar à descoberta (e ocupação) das Américas pelos europeus.

A temporada 1 começa com o anúncio da morte do rei Henrique IV, irmão mais velho de Isabel. Num ato de ousadia inteligente, a princesa, ao invés de aguardar a comissão que iria se reunir para decidir quem governaria o reino de Castela: Juana, a (suposta) filha de Henrique com Joana de Avis, ou Isabel). Essa indecisão permear todos os episódios da 1ª temporada - e a seguir, tomada uma decisão de uma parte, a conflagração de um conflito que colocaria o reino de Castela e Aragão à beira da extinção.

Apesar das muitas narrativas minuciosas, alguns detalhes são apenas sugeridos, como por exemplo de quem seria a paternidade de Juana. Era sabido que Henrique IV fora casado por 12 anos antes de se unir com Joana de Avis (irmã do rei de Portugal, João II), e desse primeiro matrimônio não resultou nenhum descendente. Com Joana não foi muito diferente, o que levou o rei a ser conhecido como Henrique, o impotente. Mas sua impotência fatal não seria exatamente devido a problemas biológicos.

Isabel e Fernando: a aliança que viria a formar o reino
unificado da Espanha - e torná-la a maior superpotência
do mundo por muito tempo.
O irmão mais velho de Isabel era inconstante além da saudável flexibilidade exigida para a diplomacia e a manutenção de seguidores fiéis. Mudava de planos e demorava a tomar decisões. Não era resoluto. Era contra a guerra, na maior parte das vezes, sim. Mas isso não impediu conflitos sanguinários. E à medida que a série avança o espectador se dá conta do quão fraco era o reinado do rei - que acabava sendo dominado pelos interesses de poderosos nobres e clérigos, o que nos leva aos dois grandes personagens sedentos de poder: Carrillo, Arcebispo de Toledo, e seu sobrinho Pacheco, Marquês de Vilhena, o grande vilão da história.

Carrillo é mais ponderado que seu sobrinho, porém determinado e intenso como Pacheco em suas reviravoltas e esquemas. Pacheco é mais vil, mais odioso e investe todas suas forças para conseguir o que deseja. Esses dois sustentam o poder atrás dos bastidores. Possuem exércitos, influencias poderosas, riquezas, lábia, astúcia (muita astúcia) e seguidores. Um rei que cumpre apenas o elementar se torna manipulável na mão de personagens dessa estirpe. 

No início da 1ª temporada vemos uma Isabel determinada, ao lado de Gonzalo Chacón, seu preceptor e homem de confiança, ser coroada rainha de Castela, em 14 de dezembro de 1474. Logo a seguir o espectador é arremessado alguns anos antes, quando a grande rainha era apenas uma princesa relativamente inexperiente, aparentemente frágil e longe de assumir o cargo. 

O que se segue é uma jornada permeada de esquemas, traições (por todos), reviravoltas (por parte dos poderosos) e indecisões (por parte dos governantes). É dificílimo não se envolver. A trama é envolvente, apaixonante. Quando Fernando, Príncipe de Aragão e Rei da Sicília, conhece Isabel, com quem deve se casar, vemos como a química do casal se dá de forma muito poética. Os atores Michelle Jenner (Isabela) e Rodolfo Sancho (Fernando), magníficos em seus papéis, conseguem transmitir a intensidade da relação íntima dos dois monarcas. Vemos que há espaço para tudo, exceto a indiferença. 

A determinação lhe salvou de
todas ofensivas, caracterizando
um milagre
A trilha sonora é uma maravilha à parte. Potente nos momentos de tensão; melódica nos intervalos de contração dos nervos e reflexão dos personagens; intermitente durante os momentos de suspense, banhados de indecisão e incerteza. O figurino é fiel à História. Existe um quadro muito famoso que retrata a tomada de Granada por Isabel e Fernando, quando o monarca da cidade - o último muçulmano a controlar terras em domínio europeu - entrega a chave da cidade para o casal. A cena traz o quadro à vida. E todo desenvolvimento das duas temporadas dá significado ao evento. Isso é o que caracteriza uma verdadeira narrativa audiovisual! Trazer para o âmago daquele que assiste a sensação de viver naquela época. Assistindo Isabel, nos tornamos mais realistas sobre a natureza humana. Os problemas da vida pessoal de um casal se mesclam às suas responsabilidades como governantes de seus reinos. O que já era complicado de lidar isoladamente se torna exponencialmente mais vívido. 

Passados treze episódios, o mosaico vai se formando e tudo fica claro. A primeira cena ganha significado e já percebe-se que a próxima temporada virá com toda força, cheia de tensão, arquitetada por um dos mais poderosos inimigos da rainha. Mas não irei falar mais. Somente assistir poderá dar a visão.

Há muito a dizer sobre essa bela obra cinematográfica. Mas antes de tudo, parabenizo toda a equipe, que soube melhor como ninguém expressar as misérias e glórias de uma época, de um povo - e do ser humano. A melhor série que vi até o momento - e dificilmente alguma irá usurpar seu lugar tão cedo.

A trilha sonora de Federico Jusid é uma jóia à parte (ouça abaixo).


Link interessante|: