quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Monismo: de Benedito Spinoza a Pietro Ubaldi (Parte I)

Há tempos escrevi um ensaio sobre monismo [1]. Este escritos foi um primeiro passo em direção a um aprendizado que desde então vêm percorrendo uma trajetória ascendente em amplitude de domínio - e que se aprofunda em  assimilação. Ele foi uma impressão intuitiva sobre o que de fato significa em sua plenitude esse estado de consciência. Quero agora ir além disso, e falar em termos mais concretos, pois algo a mais foi apropriado pelo consciente. 

Como se sabe, o monismo já existe há muitos séculos. Diversos pensadores houveram nesse campo. Desde Orígenes (séc. III) - talvez o mais antigo de todos a esboçar essa visão de forma suficientemente clara - o termo foi, de tempos em tempos, ganhando corporeidade e força, amadurecendo à medida que o mundo trazia pensadores à altura. Assim o conceito vai sendo retomado, só que de forma mais profunda. O que muda não é o conceito em si, mas a interpretação dada a ele. Consequentemente, podemos falar em evolução de conceito - que se dá paralelamente à evolução da consciência da elite espiritual da humanidade. 
Spinoza deu um importante salto rumo à
compreensão de Deus e do Universo.

Benedito de Spinoza (séc. XVII) foi um dos grandes racionalistas e filósofos de sua época. Seguindo as ideias fincadas por René Descartes e desenvolvidas por Gottfried Leibniz, esse judeu do campo do pensamento desenvolveu a um maior grau o racionalismo de Descartes a um sentimento imanente de Deus, muito presente na Baghavad Gita e no Tao Te Ching. Pode-se dizer que Spinoza fincou uma das bases das quais Ubaldi iria partir para chegar à visão mais poderosa de Deus e o Universo.

Vamos começar pelas definições:

Monismo pode ser lido como doutrina (ismo) da unidade (mono). De um ponto de vista formal, é a crença de que tudo que existe na realidade (e que compreendemos), considerado fundamental (como os axiomas, cuja origem, por definição, somos incapazes de explicar), é a manifestação de um princípio único, mais profundo. Esse princípio foi chamado por Spinoza de substância, causa de todos fenômenos (manifestações) que nossa mente é capaz de assimilar e nosso organismo, de sentir. 

Podemos considerar o dualismo mente-corpo de Descartes como uma crença de que existe uma natureza (e portanto causa) primária, incausada, para o fenômeno do pensamento (mente) e o fenômeno corpo (físico, ou extensão). Uma bela melodia, por exemplo, pode ser explicada tanto do ponto de vista de um físico, como uma série de ondas de frequências distintas; quanto do ponto de vista de um crítico de música, que irá trazer à tona sensações despertadas pela música. Ela seria descrita tanto com termos físicos quanto mentais, mas permaneceria sendo o que ela é em sua essência: música. Podemos encarar assim essas duas visões do mesmo fenômeno como dois aspectos manifestos de uma realidade mais profunda, indescritível. 

Outro exemplo clássico: a luz. Até fins do século XIX, acreditava-se que a luz era composta de partículas pontuais que seguiam trajetórias retas. Os trabalhos de Newton e de Huygens sobre a natureza da luz trouxeram visões distintas sobre o que de fato era a luz: ora se tratava de um 'objeto' (Newton) com comportamento definido; ora se tratava de uma onda (Huygens) e portanto definível pelo arcabouço teórico da época.

Durante o século XIX surgiram estudos que foram comprovando as teorias de Huygens. Os experimentos da fenda dupla (Young) mostraram que o comportamento da luz se assemelhava ao de uma onda, devido ao fenômeno de interferência constatado. No final do século XIX (James Clerk) Maxwell explicou a luz como a propagação de ondas eletromagnéticas, usando suas famosas equações; isso foi verificado por (Heinrich) Hertz em 1887, tornando a teoria da onda amplamente aceita pela comunidade científica - o que no entanto não desqualificou por completo a visão corpuscular.

Tudo parecia resolvido. No entanto, o outro aspecto (outra visão) não provou ser falso: simplesmente não havia ninguém capaz de "defender" essa teoria acerca da luz. Assim, para quem possui uma visão mais profunda da fenomenologia universal, era evidente que surgiria um desenvolvimento no outro extremo. Esse progresso foi o primeiro passo para a unificação das duas visões - aparentemente antagônicas.

A mente possui dois aspectos. Mas será que não há algo 
mais substancial que seja manifestado de duas formas?
Em 1905 (Albert) Einstein propôs que a radiação eletromagnética era quantizada (fóton). A ideia era que, se a luz é absorvida ou emitida por um corpo, então isso deve ocorrer também nos átomos desse corpo. Quando um fóton (partícula de luz) de frequência f é absorvido por m átomo, a energia do fóton, E = h.f, é transferida da luz para o átomo, ou seja, essa energia seria o produto da frequência por uma constante h, conhecida como constante de Planck - por ter sido aquele que deu o pontapé inicial em direção a essa ideia.

A dualidade onda-partícula foi assim enunciada em 1924 pelo físico francês (Louis-Victor) de Broglie, que afirmou que os elétrons apresentavam características tanto ondulatórias quanto corpusculares - e que essas características seria manifestadas em função da observação (medição). Tudo dependia, portanto, do experimento. Daí para frente essa dualidade se consolidou, inviabilizando a negação de um time ('ondulistas') pelo outro ('corpusculistas'). 

Entretanto, permanece a questão: a luz é uma onda ou uma partícula?
E a resposta é: nem uma nem outra. 

Sua natureza é mais profunda. Permanece um mistério. E é esse mistério que o monismo de Spinoza começa a nos apontar.

Podemos estabelecer analogias entre as descrições (modelos) da música. Mas elas são incompatíveis entre si quando tentamos igualá-las, encontrando uma base comum no mesmo plano em que elas operam. Há um aspecto desconhecido que a ciência moderna ainda é incapaz de resolver. Existe a necessidade de unir-se com a evolução cultural e interpretar de modo mais profundo as escrituras sagradas. 

Spinoza percebeu que um Deus que cria algo do nada não pode ser Deus verdadeiramente, já que seus atributos apontam para o infinito e o eterno. Um Deus apartado da criação (transcendente) implica que ele não está presente na criação. E por menor e mais limitada que seja essa criação, Deus estando fora já o torna limitado (mesmo que imenso). Assim o filósofo judeu-holandês rompe tanto com o judaísmo quanto com o cristianismo - ou melhor, as comunidades cristãs e judeias o anatematizaram. Mas sua visão era coerente.

Resgata-se a imanência divina - ou seja, Deus é tudo que existe e seus princípios estão no âmago dos fenômenos, tanto micro quanto macro, do físico ao biológico ao psíquico e além. Mas como o Universo (da época) era considerado infinito e eterno, era natural que Deus (naturalmente eterno e infinito) fosse identificado com o próprio Universo, de modo que 

Deus = Universo

O que seria panteísmo: Deus em tudo e tudo em Deus, mas nada além do tudo (conhecido).

Superadas questões antigas, surgem outras. Spinoza tenta explicá-las, mas apesar de tudo acaba faltando pontes importantes entre seus pensamentos. Vejamos algumas consequências da visão dele.

Determinismo apenas?
Se Deus é absolutamente perfeito (o que é correto), para Spinoza tudo no Universo deveria ser determinado (o que é incorreto). Porque Deus não teria planos para o mundo. Sua obra é perfeita tal qual é - apesar de todas nossas dores e lágrimas e ilusões. Logo, o universo seria determinístico, o que por um lado estava alinhado com a ciência (cada vez mais dominante) da época. Ciência que iria se tornar a visão de mundo fundamental (Clássica), atingindo seu clímax conceitual em Newton - e seu ápice material no século XIX e XX. Por outro lado, o livre-arbítrio estaria relegado a uma mera fantasia teológica. Algo jogado para escanteio. E assim permaneceu por muito tempo.
Um mistério: por que Adão se esforça tão
pouco para se encontrar com Deus?
Nem o livre-arbítrio puro nem o 
determinismo puro explicam essa questão.


No entanto, nosso íntimo clama por uma capacidade de decisão. A liberdade de decisão se relaciona com a responsabilidade, que une profundamente com a natureza do trabalho - algo inerente ao ser humano. A teologia insiste no livre-arbítrio, mas não conseguiu explicá-lo de forma convincente. Mais: ainda não havia alguém capaz de unir a realidade determinística do universo com a potencialidade do livre-arbítrio do espírito. Essa questão só seria resolvida no século XX com Pietro Ubaldi.

O livre-arbítrio pode nos dar uma ideias de desordem (processo estocástico), que desagrada aqueles que desejam o progresso do mundo. Pois comumente a liberdade expandida se degenera em perversão, guerra, vaidade, corrupção e todos males. Em suma, desordem. Mas eu diria: é a nossa incapacidade de fazer uso da liberdade concedida que leva nossa espécie a sofrer dores desnecessárias. De modo que o universo é determinístico em seus aspectos compreendidos e que vão além de nosso poder de ditar suas leis - e estocástico quanto à incompreensão que temos de certos fenômenos. Eu já desenvolvi essa questão alhures, visando explicar se nosso cosmos seria um ou outro [2]

Percebam: estocástico não é sinônimo de livre-arbítrio. Porém eles se relacionam, Estocástico é algo imprevisível pontualmente, ao passo que liberdade é a capacidade de escolher entre um caminho e outro. 

Monismo ou panteísmo?
De fato, desenvolvendo à fundo a visão de Spinoza podemos identificá-lo mais com o panteísmo do que com o monismo. Mas isso se deve mais à falta de maturidade evolutiva do à má intenção. Ele não queria  intencionalmente dizer que chegou às últimas conclusões dos últimos porblemas - mas apenas apontar que não parecia haver lógica além do que apresentou. A partir desse prisma podemos considerá-lo um dos maiores pensadores monistas de todos os tempo. E talvez, quem saiba, o maior. Isto é, até o advento de um místico na Umbria. 

O advento das correntes reencarnacionistas no século XIX (com o Espiritismo de Kardec e a Teosofia de Madame Blavatsky) trouxeram à tona questões evolucionistas que se encaixavam com a questão Darwinista e os fenômenos inexplicáveis do mundo físico. A ponte era justamente em perceber a continuidade da vida em várias existências. Ou melhor, o automático movimento de aprisionamento e libertação da individualidade (espírito) num envoltório físico orgânico (corpo), criando uma vivência una em sua essência mas dupla em sua manifestação: a do mundo extra-físico e a do mundo físico. Essas visões são cada vez mais comprovadas pela medicina moderna (Deepak Chopra) e pela mecânica quântica (Amit Goswami).

Um ingrediente indispensável
Com o evolucionismo espiritualista o mundo se colocou em estado de preparação para receber uma visão mais vasta. O transformismo adentrou nas religiões, abraçando vários aspectos da realidade, se enriquecendo com isso. A visão neocriacisonista da ciência estabeleceu a dualidade do mundo física (onda-partícula), admitiu a indeterminação e constatou uma origem, e portanto limitação espacial, do Universo (sua finitude no espaço e no tempo); além disso, a relatividade de Einstein tirou tempo e espaço como grandezas absolutas, relacionou-as, e viu a luz como a entidade mais rápida do mundo material, criando a malha espaço-tempo (3D espacial + 1D conceitual de AGS*, ou realidade quadridimensional, 4D, no linguajar comum). Assim o Deus de Spinoza entra em cheque: agora que o Universo se revelou finito, como Deus pode ser o Universo? Um belo ensaio deixa claro as riquezas e limitações da visão de Spinoza [3]

Seria necessário o advento de uma outra explicação, que convencesse o âmago do ser humano - e ao mesmo tempo respeitasse as últimas descobertas da ciência.

Sobre isso falaremos na Parte II.

Referências:

Notas:
* AGS: A Grande Sìntese

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