quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Monismo: de Benedito Spinoza a Pietro Ubaldi (Parte II)

Vivemos na era da informação. Há muito conhecimento sendo gerado e difundido pelo mundo. Ele é gerado em função de recompensas mundanas (dinheiro, promoção, titulação, prestígio, poder, vaidade, garantia de benefícios); e difundido pelos mesmos motivos, além de falta de ocupação das pessoas. Essa falta de ocupação advém da excessiva concentração do ser no mundo exterior. Com isso surge o senso de estar observando tudo à volta constantemente. E com isso, avaliando as coisas e as pessoas. Esses fatores são um sério empecilho para quem deseja descobrir aspectos mais profundas da realidade.
Ubaldi aos 45 anos - iniciando a missão.

Cristo disse que deveríamos buscar as coisas do Céu (Deus) em primeiro lugar. Todo o resto viria de acréscimo. Mas não fazemos isso: deixamos as questões mais importantes (a satisfação da Vontade de Deus e a busca por Ele) sempre por último - e nunca chegamos aos últimos afazeres! Então nada ocorre que não seja o esperado. Nada fantástico, inexplicável, maravilhoso, harmoniosamente coordenado, ocorre em nossas vidas. Esperamos o milagre fervorosamente, cumprindo rituais (sejam eles acadêmicos, profissionais, sociais ou religiosos) para que talvez ele ocorra em nosso benefício. Mas somos incapazes de criá-lo. Porque é muito trabalhoso dar um salto no desconhecido. Já falei alhures sobre essa questão [1]. Meu ponto agora é outro. 

Quem seria capaz de investir todas suas forças e mente num projeto que seguramente não trará nenhuma recompensa da parte do mundo? Investir no sentido de se doar, de corpo e alma. 

Estamos constantemente atazanados com reuniões e formalismos. Com pagamento de contas. Com processos jurídicos. Com questões burocráticas e de controle. Com medos que nos conduzem a tensões enormes - que por sua vez clamam por satisfações estapafúrdias, que gastam matéria e energia sem acrescentar um milímetro de grandeza às nossas experiências. Pois são elas o que engrandecem o espírito, isto é, nosso ser.

Tudo que levamos deste mundo é nossa essência. Ela é impactada por experiências durante a existência terrena. Se prezamos o acúmulo de coisas, sejam títulos, quantidade de fala, dinheiro, orgasmos, citações, contatos e etc., em detrimento da qualidade do aprendizado com a vida (especialmente com nossas derrotas e misérias), o que levaremos quando as traças corroerem tudo? Estaremos nus diante de nosso destino. Vazios de experiências e com um senso de tempo perdido. Essa não é a vida que eu quero. Isso no entanto não significa dar um passo cego em qualquer direção - em nome da coragem. Pois coragem não é isso, e sim avançar com determinação e senso de dever rumo a regiões desconhecidas, tremendo mas vivendo. 

Pascal: santo e gênio. Coisa rara.

Os grandes saltos evolutivos são impulsos embalados por coragem. São gritos de paixão dados por espíritos decaídos que anseiam retornar à pátria celeste. São expansões de consciência que levam o organismo biofísico aos limites, lutando contra o psiquismo que se torna diretor. Assim surgem patologias sublimes, que escondem um fenômeno profundo. É uma dor bela, digna de grandes espíritos. É o sofrimento que leva à redenção. Exige senso de infinito e eterno. Infinito porque opera na qualidade, com poucos resultados quantitativos (como reconhecimento). Eterno porque não se espera efeitos no espaço de uma vida terrena. É assim que surgem seres da envergadura da Pietro Ubaldi.

O mundo muito caminhou até chegar ao ponto em que estamos. 

Foram 4 bilhões de anos de esboços geológicos para se chegar a uma geosfera e biosfera amena;

Foram 3,8 bilhões de anos de elaboração da vida para se atingir uma criatura capaz de ter consciência dos fenômenos mais profundos do Universo, e da consciência de Deus;

Foram 6 milhões de anos do gênero Homo para se chegar a uma espécie capaz de brindar a Terra com almas da magnitude imensurável, em todos os campos, como o amor, a liderança, o pensamento, a ciência e a arte;

Foram 150 mil anos de evolução do Homo sapiens, passando por três revoluções (Y.N.Harari): cognitiva, agrícola e científica. Esta última começou a unificar o globo (pré-história da noosfera, ainda em formação, segundo T. de Chardin) e trazer à tona cada vez maiores e mais ousados impulsos rumo a uma unificação dos saberes, das pessoas, das ciências e das religiões, das correntes filosóficas e dos períodos;

Foram necessárias revoluções profundas no campo religioso, desde a noção de continuidade da vida após a morte (~80 mil a.C.), que partiu do animismo, adentrou no politeísmo (Antiguidade), se tornou monoteísta (Idade Média) e agora começa adentrar no monismo (séc. XVI até hoje).

O monismo já foi vislumbrado e proferido desde Orígenes. Muitos amadureceram seu aspecto. Spinoza trouxe-o a um nível nunca antes atingido. Mas desde sua época, poucos debruçaram sobre a questão central de Deus e o Universo. 

Nesse intermédio passamos por mais um grande ciclo: o da ciência e da tecnologia, em que o bem-estar e a democracia passaram a ser ideais a serem conquistados e efetivados. O Estado moderno nasce, e com isso toda sua formulação (Hobbes). Os avanços passam a ser exponenciais, tanto nas descobertas do mundo (física, química, astronomia, biologia, medicina, economia, sociologia, psicologia,..). As artes manifestas as sensações do espírito e se alinham ao pensamento da época (romantismo, racionalismo, naturalismo, positivismo, cubismo, modernismo, existencialismo,...). O mundo se torna um universo de passo exponencial. 

Os desenvolvimentos múltiplos geram paradoxos. Surgem desentendimentos e armas fortes para argumentar. O ego domina. O Eu sufoca. No meio de tantas obrigações (muitas inúteis), nos prendemos aos pequenos prazeres: checamos mensagens a todo minuto, conferimos investimentos, curtimos pessoas nas redes sociais, buscamos sociabilidade para falar sobre aspectos superficiais, descuidamos de nossos projetos mais íntimos, exigimos rapidez e beleza plástica, afogando nossa sensibilidade - a única capaz de perceber a beleza profunda e a velocidade da tartaruga. Velocidade que, apesar de ínfima, é preenchida de orientação e determinação [2]

Ubaldi em sua
maturidade.

Pietro Ubaldi nasceu em 1886 na cidade de Foligno, província da Umbria, numa Itália recém-unificada. De família riquíssima, tinha sua vida garantida. Nada precisaria fazer exceto seguir as regras de sua classe social e se aproveitar de suas benesses econômicas. Mas um problema colocou tudo por água abaixo: tinha uma afinidade indescritível pelo Evangelho e por seu verdadeiro autor: Cristo. 

O que parecia um salto rumo à perdição se revelou numa bênção para a humanidade - que ainda não se dá conta do tesouro deixado por um ser que decidiu viver conforme a Vontade de Deus.

Ubaldi deixou não apenas uma Obra de 24 volumes, na qual sintetiza de forma magistral (eu diria mesmo encantadora) todo o conhecimento e sentimento humano, arranhando o divino como ninguém o fizera até o momento. Ele igualmente viveu a sua Obra. Ela só se realizou graças à sua vida devotada ao Evangelho. Mas havia alguns detalhes importantes a mais.

Pessoas santas que seguiram o Evangelho há poucas, mas há. A própria rainha Isabela de Castela era uma pessoa fervorosamente devota a Deus (à seu modo, mas devota) [3]. Gênios da ciência, do pensamento e da arte, há poucos, mas também numerosos considerando seu mundo. Mas poquíssimos são aqueles que unificam as duas características: Santo e Gênio. Blaise Pascal pode ser considerado um deles. Pietro Ubaldi outro. Mas em Ubaldi ainda temos uma característica que o diferencia, abrindo talvez uma nova modalidade de seres que estão vindo à superfície desse pequeno planeta.

Em Ubaldi nasce pela primeira vez uma visão unificada do Todo (em vários aspectos, não apenas um). Surge o princípio que vêm embalando muitas pessoas - com visões cada vez mais claras do mundo ao nosso redor. O monismo começa a ganhar a cara que realmente tem. A palavra se aproxima do conceito - a letra se aproxima do espírito. Vivifica-se a razão através de uma fusão entre o incompreensível e o compreensível. Mas esse é apenas o início, como se revela na Obra. Será preciso adquiri um novo tipo de consciência (intuitivo-sintética) para compreendermos definitivamente todos os problemas de nosso tempo. Será preciso ascender em termos de inteligência, tornando o que gênios fazem ainda de forma desordenada (inspiração sem controle, inerte) um processos sistemático, controlado (inspiração ativa, consciente). Dessa forma controlamos o contato com o fenômeno mais profundo.

Spinoza havia dado um avanço ousado para sua época. Fora rejeitado por isso. Ignorado e desprezado por seus colegas de fé, compatriotas e contemporâneos. Mas hoje grandes acadêmicos estudam e percebem a grandeza de seus pensamentos -  e pessoas se encantam com suas visões de Deus. No entanto, a mentalidade mais avançada dos dias atuais (pessoas que unem sensibilidade, conhecimento, discernimento e equilíbrio) esboça os paradoxos do monismo spinoziano [4]. As pessoas mais evoluídas do mundo caminham a passos largos, mas ainda não encontram as orientações e explicações para as suas dúvidas porque a assimilação de grandes ideias demora décadas (senão séculos) para ser visualizada pelo mundo.

A visão de Spinoza demorou trezentos e cinquenta anos para ser plenamente compreendida e limitada pelo grupo que está na vanguarda da vivência e compreensão de Deus e do Universo. Quanto tempo será necessário para esse grupo assimilar Ubaldi e - incrivelmente, mas provavelmente - pontuar os paradoxos (agora muito menos graves e numerosos)?

Não encontro ainda muitos textos de pessoas que fazem um estudo profundo de Ubaldi e sua obra mundo afora. No Brasil, no entanto, temos grandes almas que já estão no curso de assimilação e de extensão dos conceitos. Pessoas como Maurício Crispim, Gilson Freire, Orlando Ribeiro, João Attilio,  Julio Damasceno, entre outros, estão tornando o Brasil o verdadeiro herdeiro inicial da Obra de Pietro Ubaldi - que aliás ofertou sua Obra oficialmente para os povos do Brasil e da América Latina [5].

Os paradoxos do monismo do século XVII são solucionados pelo monismo de Ubaldi, que plantou suas bases na faixa central do século XX (1931-1971). Vamos às questões:

1. Transcendência e imanência
Na visão de Ubaldi, Deus está em tudo que existe, existiu e jamais existirá no Universo, mas ao mesmo tempo está além desse todo universal, superando o espaço, o tempo e a nossa razão, de modo que ele transcende tudo que existe, garantindo-lhe um aspecto de mistério. Logo, a concepção de Deus se torna vastíssima, coordenando harmoniosamente Seu aspecto transcendente (Deus origem e fim de tudo, mas sempre mais do que suas criaturas) com Sua imanência (Deus animando o mundo, presente na dor de suas criaturas, ajudando-as a evoluir).

Isso resolve o infindável conflito entre presença e ausência da divindade. Deus é  infinito e eterno, mais do que o mundo (como a Igreja afirma de Sua magnanimidade) e, ao mesmo tempo, presente em todas as coisas do mundo (como Spinoza vislumbrou). Isso satisfaz simultaneamente as duas visões de mundo, sem ferir a outra. Aliás, uma reforça a outra, formando uma unidade coesa que não mais se digladia entre si - mas através de seus dois elementos manifestos e compreendidos, reforça-se cada vez mais.

Logo, a questão não é mais sobre
Deus = Universo, ou Deus = Universo
mas sim sobre
Deus e Universo, ou Deus > Universo + Deus contém Universo

Resta saber porque então a criação está num mundo imperfeito, cheia de dores e em mudança perpétua - do ponto de vista da dimensão espaço-tempo, pelo menos.

2. Teoria da Queda
Ubaldi resgata os conceitos do cristianismo de forma magistral. Indo (aparentemente) na contramão dos espíritas (mas não do espiritismo, que jamais negou a queda dos espíritos) e de sistemas evolucionistas, o grande místico da Umbria resolve a questão atribuindo a causa dos males do mundo à criatura. Isto é, nós.

Ubaldi chega a uma afirmativa inquestionável: no Sistema (o Universo Perfeito, que não é o nosso!) há apenas o Criador e as Criaturas, sendo que estas foram criadas por Deus.

O que ocorreu subsequentemente foi um processo de contração evolutiva, ou queda dimensional, que acabou por gerar o universo físico-dinâmico-psíquico em que estamos sofrendo e evoluindo. Essa queda só pode ter tido uma causa:

A) Ou Deus nos "arremessou" para esse mundo material cheio de dores (o Anti-Sistema, AS);

B) Ou a Criatura (os espíritos) fizeram algo que gerasse essa contração dimensional.

Mas Deus sendo Absolutamente Perfeito, Amor infinito, não poderia lançar seus filhos a uma realidade tão devassa. Logo, só resta imputar a culpa à criatura, ou seja, nós. O que nos leva a outro questionamento:

Se Deus é perfeito, como ele poderia ter criado filhos que caíram (ou seja, imperfeitos)? De modo que ou Deus é mau e logo não é Deus; ou Deus não tinha controle sobre as ações da criatura - e também não é Deus. De modo que as pessoas, não admitindo seu erro, imputam a Deus a causa de suas dores, classificando-o como perverso ou incompetente.

Grave erro...

3. Sobre a perfeição de Criador e das Craturas
Falamos que Deus é ABSOLUTAMENTE Perfeito. Se seus Filhos fossem tão perfeitos quanto ele, haveria uma completa identidade, e o Filho se igualaria ao Pai; e haveriam infinitos Deuses - coisa que caracterizaria uma anarquia de desordem, não um reino de ordem.

A criatura é RELATIVAMENTE perfeita. Ou seja, ela é perfeita em relação às suas qualidades características e funções divinas. Ela é uma célula perfeita, que deve cumprir a função para a qual nasceu. Se ela decidir se ocupar dos afazeres de uma célula diferente (outra natureza), ela estará invadindo um domínio que não é seu, e todo o sistema, por efeito dominó, irá colapsar - pelo menos para uma parcela de criaturas.

Percebam: a perfeição é bela e máxima, mas ela se subdivide em dois tipos: relativa e absoluta. Sem essa diferenciação Deus não seria possível.

Nós somos feitos à imagem e semelhança de Deus, e não de modo idêntico a Ele.

Semelhança implica que compartilhamos a mesma substância divina, mas não somos os agentes centrais da mesma. Se fôssemos idênticos não haveria diferenciação. Seríamos Deus mais muitos. Perde-se a unidade. E como somos forrados de defeitos, cai por água abaixo a ideia de Deus. Percebem? Devemos ver as nuanças para aceitar a Teoria.

Ubaldi narra de forma apaixonante sobre a criação original dos espíritos no Sistema (o universo perfeito, nosso verdadeira Lar). Seu livro Deus e Universo é uma síntese teológica-filosófica que aborda o que faltava abordar em A Grande Síntese. Com isso tem-se o panorama geral do fenômeno involutivo-evolutivo de nosso Universo.

Há muitos assuntos a serem tratados. É fascinante. Mas uma hora é preciso parar para descansar.

Numa próxima oportunidade pretendo começar a esmiuçar a Obra, relacionando-a ponto-a-ponto com a evolução humana e revelando a sua importância.

Deixo aqui uma bela palestras de Gilson Freire, proferida no COngresso Pietro Ubaldi.



Referências:

Um comentário:

  1. Grande Leo! Faz muito tempo que não passo por aqui!

    Que satisfação! Um post logo sobre Pietro Ubaldi!

    Obrigado, e continue escrevendo, sempre! Você tem um estilo literário muito parecido com o dele, muito agradável pela lógica das argumentações e pelo encadeamento de ideias.

    Abraço!

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