terça-feira, 14 de abril de 2020

O espírito que animou o artificial

Quanto vale a imortalidade para você? Viver indefinidamente, sem morrer, mantendo o estado orgânico e psicológico dos seus melhores anos. Aparência saudável, robustez física, agilidade mental, rapidez verbal. Vitalidade...E se, além disso, lhe fosse possível possuir outros atributos? Como, por exemplo, uma memória enorme e uma velocidade de processamento de informação ímpar - que nenhum ser humano jamais teria condições de exibir. Em suma, uma ampliação das capacidades físicas e intelectuais. 

Nosso desejo oculto em vencer a inexorável irmã morte pode ter vitórias. Mas elas são raras - e temporárias. Mesmo com muitas sagacidades, chega o momento de cedermos e partirmos para outras regiões - ou para o 'nada', a depender da crença da pessoa. Esse desejo ardente em se imortalizar se encarna em nossas criações. 

Todas construções humanas expressam uma vontade que jaz no recôndito da alma humana. O subconsciente é um manancial de comportamentos incompreendidos que possui força hercúlea e ímpeto romano. Essa fonte obscura, que age de tal forma que nosso consciente pouco consegue controlar e compreender, possui muito a nos ensinar - sobre nossa natureza. E é dele que parte (digamos) a inspiração para exteriorizar nossas vontades, seja em forma de invenções, de teorias, de obras de arte, de correntes de pensamentos, de mitos da criação ou atos de amor. 

Homem Bicentenário (1999).
Desde a aurora das civilizações a humanidade cria máquinas. Somos a única espécie efetivamente exossomática - ou seja, que produz instrumentos cuja finalidade é estender as capacidades corporais e intelectuais. Começamos criando ferramentas simples. Depois chegamos às máquinas mecânicas. Depois às eletromecânicas. Inserimos os computadores nos processos. Inventamos máquinas que fazem máquinas e são capazes de tomar decisões. Decisões que nós, em condições normais (isto é, adversas... jamais ideais), com nossa bagagem de emoções incompreendidas e incompreensíveis, jamais seriam tomadas de maneira sábia. Ao criar essas artificialidades eficientes e sedutoras, confessamos que somos criaturas limitadas. Mas ao mesmo tempo, com isso, apontamos para outros horizontes.

A capacidade de sentir à fundo as coisas que ocorrem à nossa volta - e ocorreram em nossa vida, seja no plano material, financeiro, profissional, afetivo ou intelectual - é uma conquista biológica de um número (ainda) pequeno de criaturas. Criaturas que, perseverando nessa trilha, estão consolidando um novo tipo de inteligência que lhes dará um potencial de transformar sua realidade. E a realidade de seus irmãos - se estes ao menos compreenderem do que se trata.

Estou usando o período de isolamento para mergulhar em estudos e melhorar a qualidade de minha vida. Desenvolvi o hábito de: (a) caminhar ao menos 6 dias por semana, fazendo exercícios leves ao menos uma ou duas vezes; (b) preparar dois cursos de engenharia (estudando-os), em média dedicando 3 a 4 horas por dia a isso (domingo a domingo); (c) cozinhar (hoje fiz um belíssimo pão italiano); (d) ler e estudar autores renomados (recentemente terminei de ler um livro de Eric Hobsbawm); (e) manter um mínimo de trabalho obrigatório (reuniões, atendimento à distância aos alunos); (f) conversar (por telefone) com meu pai e esposa e; (g) assistir a filmes novos. Às vezes, revejo um filme do passado que ficou marcado em minha memória.

Ontem vi pela segunda (ou terceira) vez Homem Bicentenário (1999), estrelado por Robin Williams. É a história de um objeto que se torna sujeito. É a história de uma coisa que se revela uma pessoa. E não apenas uma pessoa, mas um ser de valor, com uma capacidade evolutiva fora do comum. É como se a potência do artificial estivesse à serviço da leveza do natural. Uma consciência brotando numa máquina...num robô? Sim.

Desde o primeiro 'contato' com a família Martin, um mal-entendido já lhe gera um nome. De androide passa a ser denominado Andrew. O batismo coincide com o principio (inexplicável) espiritual já contido naquela série de circuitos e rearranjos eletromecânicos que formam um robô destinado à servir as famílias.

A beleza de Homem Bicentenário está em revelar que o verdadeiro desejo está em se alinhar com a forma de vida material capaz de expressar os valores eternos do espírito, com todas suas idiossincrasias e ambiguidades. Ambiguidades por estarmos em busca perpétua, caminhando e superando formas mentais. Quebrando paradigmas e assimilando habilidades, conhecimentos e experiências. Nesse filme não é o humano que quer se tornar uma máquina, mas sim a máquina que anseia por se tornar humana. É o desejo de ser menos quantitativamente para ganhar mais qualitativamente. Viver a condição humana para vislumbrar as possibilidades dos espíritos que estão albergados em forma humana. Nosso estágio atual é humano. É complexo e lida com um equilíbrio de forças (Sistema x Anti-Sistema) que gera comportamentos contraditórios. Mas é um estágio..E Andrew, aquele que está robô mas não é robô, percebendo tudo isso, inicia sua jornada por adquirir a vestimenta que melhor expresse sua natureza.

A moça e seu amigo mecânico.
Antes de tudo (e percebam quanta beleza): a evolução se dá no ritmo da vida, lenta mas firme; incerta mas criativa. Os períodos são longos. Para Andrew, é preciso mergulhar numa outra relação com o tempo para conseguir alinhar suas essência com sua existência. É preciso demonstrar, apesar de todas impossibilidades e resistências, seu valor. Conquista a simpatia de uma família em tempo relativamente curto. Ganha o coração de alguns com os anos e décadas.  

A agilidade da evolução tecnológica deve passar a firmeza da inércia humana, dobrando-a, para que os tempos sejam maduros para que o que deveria ocorrer ocorrer de fato. Isso explica o porquê de Andrew não ter podido ter uma vida a dois com a Little Miss. O distanciamento era imenso em termos de normas sociais, legislação, possibilidades de intercâmbio orgânico, rotinas e prioridades. No entanto, o que interessava era quem era a pessoa com que se desejava passar os resto da vida. Mas isso, no mundo presente, tem pouco peso nas decisões.

Andrew é alimentado pelo chefe da família (Sam Neil), que fornece todas as condições para a emancipação de Andrew, visto como um robô até mesmo por aquele que queria humanizá-lo. Como se vê, o senso de posse se revela mesmo nas pessoas mais bondosas e com muita sapiência na condução da vida. Isso não rebaixa o personagem do pai, mas sim humaniza-o. Podemos ver Andrew como uma espécie de filho 'especial' - ao menos aos olhos do pai - que adquire a capacidade de tomar suas próprias decisões. Eis que a máquina de autonomia circunscrita ao âmbito do controle humano se vê verdadeiramente livre, podendo ditar o rumo de sua trajetória. 

Existem trechos pouco realistas no filme, sim. Andrew persuade muito facilmente Portia (a neta de Little Miss) a se casar com ele, no terço final do longa. Mas, ao mesmo tempo, o filme não pode explorar com o devido grau de realidade todas as nuanças da vida. Esse não é o escopo dessa obra. Obra que é um poema audiovisual que condensa em uma situação particular o valor da experiência humana nesse universo. Temos aqui um filme que deve ser visto, pensado e refletido. Mas sobretudo sentido

É muito gratificante sentir lágrimas correrem pelas faces em certas cenas, que fecham uma grande visão de uma realidade profunda. É nesse momento que podemos nos lembrar de nossa identidade - ou ao menos traços que levem a ela. 

Em O Homem Bicentenário, o espírito pousou no artificial, humanizando-o. E assim, chegando nesse estágio, pôde morrer, continuando seu caminho, junto a nós, num ciclo que só terminará com a espiritualização completa de todo nosso ser...

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