sábado, 7 de maio de 2022

La Otra Mirada - quando as mulheres entram em cena

"O progresso da arte reside em manifestar, com evidência cada vez mais límpida e com maior profundidade, a beleza do pensamento divino na lei que governa o universo."

A GRANDE SÍNTESE, Cap. 100 - A Arte

As melhores séries (e filmes) são aquelas que tratam da questão humana. Porque é a que mais precisamos absorver para desvendarmos o mistério dentro de nós. Sejam histórias reis ou fictícias, o importante é que elas estejam vinculadas aos aspectos mais próprios da condição humana. Questões que nos diferenciam no mundo mineral, vegetal e animal. 

Humanos: equidistantes entre o micro e o macro nas escalas de tempo e de espaço. Seres contraditórios, capazes de barbaridades horrendas mas, ao mesmo tempo, com criatividade insuperável e capacidade dos gestos mais belos. Uma personalidade e um corpo que é um misto de anjo e demônio. Seres com  rotinas equidistantes do Reino Divino e dos abismos infernais. Seres capazes de muito (fazer) sofrer e amar. Seres em busca da coerência e da paz; de unificação das diferenças; de coordenação das especializações; de síntese do saber e de vivência dos mais elevados conceitos. 

A Arte, expressão mais sublime no Divino no plano humano, é a fronteira das capacidades expressivas de nossa espécie. É elogio ao amor, conflitos emocionais profundos e criatividade em expressar o pensamento diretor do universo. Através de formas, histórias, fenômenos e transformações. Nos tempos modernos, os meios audiovisuais foram atingiram uma capacidade de permear muitos lares. Há muito conteúdo bom sendo produzido nos dias atuais - apesar de uma decadência horrenda que se manifesta sem medo ou vergonha. Quem está desperto (ou despertando) sabe captar esse conteúdo. Sabe valorizá-lo porque compreende seu significado. Sente a obra e depois enxerga em seu quotidiano as questões tratadas. Vive a ideia porque sente sua importância.

Novamente a Espanha parece estar na dianteira quando se trata de temáticas humanas. Além de nos brindar com as magníficas séries históricas Isabel e Carlos, Rey Emperador, agora temos La Otra Mirada.


A série orbita em torno de uma academia para senhoritas (leia-se, escola para moças de famílias abastadas de Sevilha) e as quatro professoras principais - uma delas, Manuela, a nova diretora da academia.

O primeiro episódio nos dá ideia de um suspense. Observamos uma festa de figuras importantes na cidade de Lisboa. Muitos aristocratas, homens importantes com seus cargos políticos e/ou negócios. Algumas mulheres - importantes apenas por estarem acompanhadas de seus maridos. Mas uma delas, desacompanhada, se faz importante não pelo seu vínculo com um homem, mas pelo que ela é. Essa é Teresa. Uma mulher que, apesar de posteriormente descobrirmos ser filha de alguém muito importante, conquista sua posição por si mesma. 

Um assassinato ocorre e Teresa é a primeira suspeita. Ela foge para Sevilha, na Espanha, encontrando um local adequado para esquecer (e pensar) sobre o que ocorreu. Esse local é a academia para senhoritas, cuja direção acabara de mudar: de  uma mãe conservadora e alinhada com os métodos do mundo, para uma filha progressista e em busca de novas maneiras de fazer as coisas. E graças a essa fortuita transição Teresa consegue ser contratada para dar aulas de Artes para as moças.

À medida que o ano de 1921 transcorre, observamos os costumes dessa época na Espanha. Um século atrás - enormes diferenças sociais e culturais. Diferenças tão ou mais impactantes do que as tecnológicas. 

Um mundo em transformação do ponto de vista da ciência, mas também dos costumes e da forma de perceber a realidade. Na série vemos o embate entre o velho que não quer morrer e o novo que anseia por nascer - e florescer. Esse embate - uma grande batalha - se inicia assim que o elemento catalisador (Teresa) entra nas engrenagens escolares. Manuela se identificou com essa mulher mais experiente do que ela (=mais idade) e decidiu dar uma chance para ela. Isso apesar de todas outras candidatas terem as formações exigidas e a experiência requerida. Mas o que acabou falando mais alto na hora da decisão foi essa intuição da nova diretora pelas possibilidades de transformação. E eis que Teresa entra no grupo composto por quatro mulheres muito diferentes em suas vidas pessoais, mas profundamente irmanadas em suais dificuldades existenciais.

Fig.1: Luísa, Manuela, Teresa e Angela (da esquerda para a direita).

Junto a esse par de mulheres temos Luisa, uma mulher mais madura cujo marido faleceu e tem um filho que não quer saber de nada exceto nada fazer da vida; e Angela, mulher casada com cinco filhos que se vê em conflito consigo mesma quando conhece uma outra mulher, mãe de uma das alunas, colocando em cheque sua vida familiar. 

Ao longo da série os personagens vão se moldando às circunstâncias e influenciando o ambiente. Cada episódio traz uma temática, sendo todas elas centradas num eixo comum: a posição de subserviência das mulheres na Espanha do início do século XX. Como se trata de uma escola com moças que estão começando sua vida social e profissional, com uma diretora ainda inexperiente porém muito apaixonada e com visão de futuro, basta uma centelha para que toda essa comunidade passe a marchar numa direção diferente. Essa centelha é justamente Teresa, que 'cai' lá. Não por acaso, mas por destino. 

As moças, assim como suas professoras, são diversificadas em seus costumes, inclinações afetivas, aptidões cognitivas e tendências evolutivas. São o futuro a ser projetado a partir de um passado cristalizado por costumes cada vez mais rudimentares e engessantes; e um presente tempestuoso e desafiador, cheio de incertezas e possibilidades. 

Fig.2: Candela, Macarena, Maria Jesus, Margarita, Robertta e Flávia (da esquerda para a direita). 

A série é fenomenal. Uma demonstração de que os espanhóis, com sua TVE, sabem produzir verdadeiras preciosidades audiovisuais, tratando de temas humanos com um toque se sentimento e uma percepção madura da realidade histórica, cultural e do mundo profissional. Isso tudo sem deixar de conseguir nos brindar com cenas engraçadas, emocionantes e que nos fazem repensar diversos costumes. 

A evolução de cada personagem é evidente quando passamos de episódio em episódio - especialmente os mais marcantes. E da primeira para a segunda temporada. Um grande evento irá marcar o fim de uma; e outro, relacionado a ele, irá marcar o início e desenvolvimento da segunda. Isso trará novas questões.

É dificílimo não se envolver com os julgamentos que a sociedade (e mesmo parte de suas colegas inicialmente) fazem de Roberta; ou com os dramas de Flávia, cuja vida é comprimida em função de interesses comerciais (fusão de famílias donas de um negócio comum); ou com Maria Jesus, que em sua ingenuidade se deixa levar por pessoas de má fé. 

Temos Candela, companheira de quarto de Flávia, que está perdida nas disciplinas, não obtendo desempenho bom em nenhuma, mas com uma vontade muito grande de se tornar bióloga. E Margarida, companheira de quarto de Roberta, que é meticulosa, eficiente, mas demasiada ansiosa e centrada em si (ao menos inicialmente), mas que amplia sua percepção a partir de uma pessoa que deseja ajudar. 

Há também a Macarena, uma moça com características ligeiramente diferentes, centrada em aspectos da realidade mais masculinos, que se identifica com Inés, a nova estudante que aparecerá na segunda temporada. 

Cada moça é um mundo. Cada uma apresenta um potencial, um conjunto de possibilidades, um modo de vislumbrar, de pensar, de sentir e de agir. Atitudes ímpares em suas manifestações femininas - idênticas em seu anseio por descobrir sua verdadeira natureza...de atingir uma felicidade mais plena. 

Cada moça pode ser traduzida por um poema singelo. Ou por uma sonata de dramas interiores expressos por uma cantata de atitudes determinadas (por crenças e valores) e determinantes (de destinos). 

Não direi mais nada. Mais do que ler a minha sensação da série, é preciso assisti-la com os próprios olhos e senti-la com o próprio coração.

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