Nós fugimos das situações desconfortáveis a todo momento. Não sem razão. Elas são horríveis e poucos frutos nos trazem. Aquilo que nos incomoda e ofende, mas que suportamos, dia após dia, de várias formas, é justamente o que nos fornece os meios mínimos para sobrevivência. Ou seja, fugimos daquilo que podemos e suportamos o que devemos.
Mas talvez esse fugir "do que podemos" seja mais trágico do que suportar "o que devemos". Porque talvez a solução do seu, do meu, do nosso problema esteja justamente nos becos e bocas abandonados e empoeiradas de nosso mundo movimentado por fora - e desconhecido por dentro.
Nosso ego detesta ser ferido. Ele se ofende com tudo. E continua assim, ano após ano. Década após década. Existência após existência...E graças a isso desenvolvemos um dinamismo horizontal impressionante. Mudamos de forma a todo momento. Decidimos que aquele curso não era o que queríamos; aquele trabalho não era para nós; aquele relacionamento era uma ilusão; aquela seita; aquela igreja; aquela forma de conceber o mundo; aquele corpo tão buscado uma hora demandará tanto esforços que viveremos em função dele; aquelas posses, antes tão atrativas e importantes, não nos libertaram de nossa sensação de vazio. E por aí vai. Ad infinitum. Mas em nenhum momento percebemos o jogo de força que nos arrasta e qual é a finalidade da existência.
A cada fim de ciclo nos vem a impressão de ter dado uma volta completa sem sentido. Partimos de um ponto, voltamos a ele. No entanto alguma coisa mudou - dentro de nós! Nas abissais profundezas do nosso SER. Não o corpo físico, nem a mente, nem as posses ou os títulos. Algo mudou profundamente. Algo difícil de ser assimilado, mas tanto mais evidente quanto mais energia, emoções e conhecimentos empreendemos na empreitada "fracassada". Um desperdício relativo à nossa concepção de mundo. Um passo rumo ao auto-descobrimento sob a ótica do Absoluto.
Só saberemos o que é algo quando vivenciarmos aquilo.
Podemos estudar algo, ler sobre um evento, uma descrição de algo ou alguém ou um fenômeno, uma bula, uma descrição de experimento, uma partitura. Mas só saberemos realmente quando vivenciarmos a teoria. Digo mais: não apenas isso, mas sermos passíveis de sensibilização através do fenômeno. Porque de nada adianta se banhar de Realidade e não ter a sensibilidade necessária para percebê-la.
Adão (Adi-Aham) tocando o Grande Anônimo (Deus). Mil nomes para Aquele sem nome. |
Quando o ego chega próximo ao zero o nosso SER espiritual indivisível tem a chance de iniciar um processo de expansão. Ele está no zênite em termos de oportunidade. A oportunidade Real. O "único" pré-requisito: se conscientizar profundamente da nossa potência interior. É só isso e tudo isso. Porque parece simples - e é. Mas chegar a esse estado de consciência dilatada, de aguda sensibilidade psíquico-nervosa, demanda um mergulho para dentro de si. Um mergulho cuja profundidade é abissal e apavora. Não estamos pontos para nos afogar na Essência universal da Vida, julgando isso um suicídio. No entanto podemos nos preparar.
Já escrevi sobre o sentido dos relacionamentos [1]. E acrescento que não existe - nem jamais existirá - uma fusão completa de almas. O que podemos observar (ou vivenciar) é uma identificação de fascinação. Ambos estão orientados para uma meta infinita e compreendem a realidade finita. E percebendo o transformismo, se tornam serenos e compreendem um ao outro, demonstrando paciência e sacrificando coisas do ego. Se desprendem do peso para ascender, juntos. Dois seres olhando para o mesmo sentido, próximos e conscientes.
Redução perante o mundo não é queda, apesar de ser desagradável. Precisamos do mínimo mas não precisamos* o quanto ele realmente deve ser. E graças a essa falta de auto-conhecimento, gastamos muito tempo, muita energia e muitas emoções e mentalizações em externalidades que nos aprisionam. E de brinde acabamos dificultando a vida de pessoas à nossa volta. Direta ou indiretamente. Demoramos muito tempo para admitir essa caça incessante de ilusões - se é que admitimos. Esse comportamento é a real causa das misérias do mundo. E só pode ser superada com um mergulho interior, e posteriores diálogos profundos. Por vezes enérgicos, mas bem orientados.
Muda-se a mentalidade, liberta-se dos vícios, eliminam-se os defeitos aos poucos.
Por ciclos e tentativas.
Quando o interior, após árduo trabalho estiver maduro, pode-se iniciar um ensaio no mundo. Isso não deve ser na forma social, mas preferencialmente por meios indiretos. Passar idéias por teorias, melodias e poesias. Conversas reservadas, com pessoas que demonstram bondade e estão prontas para alçar voos mais altos. As maiores verdades são paradoxais. Porque estão além da lógica do intelecto. Elas são supra-lógicas, e por isso mesmo consideradas ilógicas pela forma mental predominante. Basta ler as Parábolas de Jesus, o Cristo. Incompreensíveis sob uma ótica intelectual-analítica; fascinantes quando sentidas pela intuição espiritual.
Para superarmos nós mesmos devemos permitir que a luz cósmica nos rasgue. Assim, diante dela, até os mais arrogantes e orgulhosos e egoístas se tornarão impressionantemente humildes e desinteressados do mundo.
Poeticamente belos e filosoficamente sinceros.
[1] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2014/09/fenomenologia-dos-relacionamentos.html
* precisar no sentido de tornar certo ou rigoroso
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