quarta-feira, 20 de junho de 2018

Abrigo: Direito humano. Luta persistente.

Continuo desenvolvendo os aspectos específicos dos cinco fundamentos da vida humana - conhecidos como 5 A's [1]. Já desenvolvi o tema do vegetarianismo e veganismo, que é a expansão da plenitude da saúde através da nutrição (alimento). Agora posso ascender ao quarto A, adentrando na questão do abrigo, indispensável à manutenção da espécie, e ao desenvolvimento profissional e pessoal. 

A moradia é um dos alicerces da civilização. Isso sempre foi uma verdade. Constata-se o fato observando que a espécie humana sempre buscou abrigo para conseguir obter um nível de segurança, seja contra os elementos (chuva, vendavais, enchentes, frios, calor, etc), contra predadores (animais ferozes) ou 'inimigos' (infelizmente, outros humanos), e possibilitar a concentração e reprodução. Tão indispensável é e tem se tornado ao longo do desenvolvimento econômico, social e cultural, que em 1948 ONU (Organização das Nações Unidas) lança a Declaração Universal dos Direitos Humanos [2], que aponta para o direito à propriedade privada e habitação:

"Artigo XVII 1. 
Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros."

"Artigo XXV 1. 
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle."
(grifos meus)

Ter abrigo é fundamental ao ser humano. É o que permitiu o
advento das cidades, da civilização, com todas suas
possibilidades. É conforto que deve ser usado com função
evolutiva - que se relaciona, em larga medida, com o social.
É óbvio que nossa "civilização" não assegura esses direitos à espécie humana. Mesmo porque muitos governos agem como se houvessem cidadãos e não-cidadãos. A estes últimos são negados os Direitos Humanos, isto é, os direitos fundamentais que a ONU aponta como indispensáveis à vida e seu desenvolvimento no nível humano. São os mendigos, sem-teto, aqueles que vivem nas periferias, os excluídos, os que passam fome, não possuem condições de estudo, trabalham em regimes semi-escravos e são vistos por muitos da sociedade como indesejáveis. Os nossos sistemas, com suas lógicas, se provaram incapazes de resolver esses problemas. Em grande parte devido ao baixo grau de consciência de imensa maioria dos seres humanos, insensíveis às questões mais importantes do mundo como democracia, direitos e deveres, ciência e tecnologia, jurisprudência, legislação, questões éticas, ecologia, afetos, sociedade, cultura e (especialmente) espiritualidade. Poucos (que podem) gastam seu tempo e energia além das obrigações mundanas para construir uma visão de mundo mais completa, madura e capaz de forjar projetos de vida concretos (a prática), que causam algum impacto. Mas o fator que causa mais atrito na evolução coletiva é a insensibilidade ao outro.

Quando nos acercamos de um assunto que não faz parte de nossa vida tendemos a imprimir opiniões relativas, restritas à nossa formação, à nossa classe, ao nosso meio cultural. Ela é relativa. Incapaz de sentir o que aquilo pode representar para quem está vivendo na pele aquilo. Vejamos o tema moradia.

Quando observamos movimentos sociais na mídia, a cobertura dada geralmente é parcial, ressaltando aspectos negativos - sem necessariamente apontar culpados, mas sugerindo que muitos males advém desses tipos de organizações. Quem está habituado dificilmente irá perceber. Se começar a notar algo, resistirá em aceitar algo que rasgue seu limitado campo de possibilidades. Sua noção do que é 'certo' e 'errado'. Daquilo que está além de seu campo de concepção. A relação entre direito e justiça é um exemplo claro.


Eleanor Roosevelt segurando a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Um pequeno passo para a implementação.
Um grande passo para a consciência coletiva.
Estamos apenas no início...
Na Rádio Blink 182, Safatle [3] explica o porquê de, em certos momentos históricos, a justiça se destacar do direito. Lei e justiça se desacoplam em particulares momentos históricos. A primeira, baseada na força e na tradição, na racionalidade e nos formalismos, é forte e resiste com o apoio da maioria, permeada de receios. A segunda vislumbra o porvir, sente a falta de bom senso dos modos de organização. Ela se apoia na coragem, na iniciativa, nos impulsos, na inteligência não- sistematizável, indomada, mas com uma pitada de sentido - se percebido em seu mais amplo aspecto. É fraca mas persistente, buscando alavancas de apoio na sinceridade e perseverança. Ela intui, e por isso não desiste com as derrotas momentâneas. Sofre no presente para garantir o futuro - ao passo que a lei consolida e goza o poder no presente, mas não se adapta ao transformismo da vida e da consciência coletiva. Deve-se levar em conta essa dissociação especial, da qual a História está pontuada com exemplos formidáveis, tanto na esfera coletiva quanto individual, se quisermos investigar com sinceridade (busca pela verdade) a questão da moradia no país - e no mundo.

Movimentos sociais que clamam por moradia não surgem por esporte. Se alguém acredita que um  grupo humano está disposto a se organizar, ocupar, ser ameaçada (e por vezes agredida) pelo aparato policial, e persistir numa luta apenas por capricho, para ganhar destaque na mídia, dinheiro, garantir sua "boquinha grátis" ou simplesmente atrapalhar vida de terceiros, não conhece bem a natureza humana. Tudo isso daria muito trabalho para pouco retorno. As pessoas não ocupam - terrenos que não cumprem função social, dia-se de passagem - porque gostam. Culpam por falta de alternativa. Palavras de Guilherme Boulos [4]. Quem deseja conhecê-lo melhor, sugiro que assistam as referências [5] e [6].

Lutar por um direito humano fundamental (moradia) é um direito, caso os meios formais se provem ineficientes ou inúteis.

A legislação que prevê desapropriação de terras improdutivas, que não pagam imposto - como o ITR [7] - não é implementada pelo poder público. Diversas outras leis não são cumpridas, o que leva à aparição de enormes propriedades abandonadas, cujos donos não pagam imposto, mantendo-as assim apenas a título de especularem em cima do terreno. Dessa forma constroem-se bolsões improdutivos nas grandes (e médias) cidades, que não são alvos da desapropriação legal simplesmente porque as engrenagens da lei não são acionadas contra aqueles que possuem poder sobre elas. Há ainda um outro agravante: a lógica daqueles que descumprem a lei visando ganhos permeia o modus operandi das instituições publicas brasileiras, de forma que essas são pouco ou nada sensíveis à lei quando se trata de certas questões.

Diante da indiferença absurda do Estado face ao rentismo improdutivo, como esperar eficiência econômica? Mas a questão só fica crítica quando colocamos no tabuleiro a exploração e consequente exclusão que completa o ciclo de degradação de massas humanas. 

A redução de empregos, o achatamento dos salários, a (des-)orientação das atividades econômicas visando aumentar os retornos financeiros e a ânsia desesperada de gerar maior consumo - a título de extrair mais dos indivíduos - colima em famílias que chegam à beira do colapso familiar e social, comprometendo mais de metade da renda com o aluguel (de um imóvel em más condições, geralmente). Após buscar incessantemente algum bico e ser rejeitado e humilhado no processo, e com  um cansaço que beira o colapso físico e psíquico, o chefe de família chega ao seguinte ponto: ou paga o aluguel e nega a comida à prole - ou dá o mínimo de comida à família e vai para a rua, onde todos ficarão sujeitos a todo tipo de violência - conforme a polícia militar bem demonstra com sua atitude e atos. 

O poder público não age, pois é refém da lógica financeira hodierna. Uma visão de mundo em que mamon [8] é objeto de culto universal. A família deseja apenas (sobre)viver em paz. O pai, a mãe, a última coisa que desejam, é se lançar no barro e na luta social porque gera um esforço tremendo. Eles recorrem quando esgotam-se todas alternativas, e o terror de virar morador de rua, de passar fome, de ser despejado, se torna concreto.

Indo mais à fundo iremos perceber que a questão é muito mais complexa do que a grande mídia e nossos círculos sociais apresentam [9]. O que está em jogo é uma lógica sistêmica apodrecida, que retroalimenta a situação, agravando os conflitos  - com uma polícia adestrada a eliminar quem reclama direitos sociais, pacificamente; valorizando áreas (leia-se: custo de vida) sem fornecer aos moradores pobres condições de acompanhar esse aumento espetacular dos custos; e desinformando as pessoas através da mídia, apresentando o que convém. Notícias baseadas em eventos. Nada de investigação das tendências (comportamentos) e da lógica de funcionamento do Estado brasileiro (estrutura). A quem este serve de fato? 


Guilherme Boulos vive com o pé no barro desde que
iniciou sua atuação pela justiça social, aos 15 anos.
Desde então percebeu que não basta o saber -
precisamos viver com os pobres, sofrer com eles,
para ser uma liderança de fato. 
Sem-teto é um termo muito mais amplo. Não é apenas morar na rua. Esse é o caso mais extremo, produto de uma sociedade focada na ilusão das fofocas, do consumismo, da competição. Da insensibilidade aos mais necessitados. Aqueles que vivem de co-habitação, ou que não possuem condições de pagar os aluguéis, comprometendo alimentação, saúde, transporte, educação básica e itens essenciais (ex: higiene) para honrar suas contas, também são sem-teto. Aqueles que tem um teto mas não possuem água, luz, gás, saneamento; aqueles que não possuem rede de transporte próxima; aqueles que vivem em regiões inseguras - inclusive devido às violentas incursões policiais; aqueles que aumentam de 10 para 14 horas suas jornadas devido ao isolamento total (periferia da periferia). Todos esses casos se somam aos dos sem-teto. Pessoas que somam quase um terço do país [9]. Massa excluída de uma vida plena.

Não é possível se debruçar em questões de ordem mais elevada se a todo momento existe a sombra do despejo; a perda de tempo com atividades básicas; o medo de ser abordado pela polícia simplesmente por morar em lugar x, ter vestimenta y e ser de raça z. Isso é uma violação aguda dos direitos humanos. Mas isso só irá mudar com a conscientização. 

Enquanto nos vermos como pessoas distantes, desconectadas dessa realidade, a injustiça irá prevalecer. Pois ela se fixa no terreno do mundo devido às neutralidades da maioria. Somos indiferentes àquilo que não nos arranha. Em situações na qual somos colocados em evidência - sem o desejarmos- fingimos nos preocupar. Isso é triste, mas ao mesmo tempo é o que nos permitirá ascender de nível consciencial.

Porque o que atinge o outro pode um dia nos atingir.

A História nos mostra que o que era considerado impossível ocorreu. O improvável se plasma, tornando-se comum e atuante antes que possamos fugir ou nos proteger.

A extrema pobreza avança. Os bancos continuam faturando
com um rentismo único, que só é possível em regimes
feudais, como o brasileiro.
E os dados revelam que a pobreza extrema cresce no país [10] - assim como a violência contra os moradores de rua [11]. Isso deixa as pessoas que tem algo - dentre o povo - e a classe média apavorados. Especialmente estes, que vivem segundo a lógica da pressão-propriedade-patrimônio. A brutalidade estatal é tão violenta que inibe qualquer possibilidade de questionamento. Isso produz um esvaziamento da democracia e a cooptação de setores da sociedade para um extremo: o fascismo.

Safatle, no programa Voz Ativa, diz que a pior coisa a ser feita em momentos de polarização é não operar no outro extremo [12]. Pois é isso o que vemos no Brasil atualmente.

Sabrina Fernandes, no seu canal Tese Onze [13], Doutora em Economia e Sociologia Política pela Carleton University (Canada), desmistifica narrativas construídas e espalhadas pela mídia - e reproduzida inconscientemente por muitas pessoas de "bem". Não destrói o conceito de propriedade privada, mas a enquadra numa ordem maior, onde deve cumprir uma função superior. Aliás, o sistema que está acabando com a propriedade privada é o próprio capitalismo-neoliberal, cuja última crise foi responsável pela aumento exponencial do número de famílias sem teto (nos EUA e no mundo), privando-as do direito de possuir um lar. Paradoxo incrível: o sistema que afirma defender o direito à propriedade extingue-a de roldão, ou deixa as pessoas no limite de perdê-la. Essa regra de perda e risco iminente de perda / queda do padrão de vida é verdade para 99% do mundo (pobres e classe média). Quem ganha? A elite, que em larga medida quer manter os privilégios.


A formação do Brasil de hoje já parte de uma divisão e loteamento de terras para a exploração desenfreada de recursos, visando extração - não desenvolvimento econômico local. A propagação dessa lógica por períodos longos é o que reforça a inércia dos utopistas e a naturalização de barbaridades pelas próprias massas que sangram, choram e se extinguem aos poucos. Mas é preciso perceber o que ocorreu e por que se mantém o estado das coisas. É dever de quem tem alguma condição usá-la para fins superiores, que não a reprodução de fofocas e mesmices cotidianas. É mister se transformar, nem que isso cause febres, dores e rejeições. Ou evoluímos ou entramos em débito com o banco de Deus.

A primeira atitude a fazer é mudar nossa percepção das coisas. De pouco em pouco. De experiência em experiência, iremos nos conscientizando de uma realidade mais profunda, em que atuam leis mais poderosas do que aquelas que conhecemos - e respeitamos. Leis não assimiladas pela sistematização analítica - mas sentidas pela vivência profunda, geralmente advinda com experiência da dor. São as verdadeiras maturações apocalípticas que alguns seres humanos vivem, saindo de um túnel de experiências dolorosas como místicos, heróis, santos ou gênios. É a reação adequada (inteligente) às dores que forjam as almas mais fantásticas.

Verdadeiras locomotivas da humanidade, se heróis.
Faróis telescópicos, se gênios.
Antenas potentíssimas, se santos.

Não precisamos ainda nos tornar isso. Basta que compreendamos cada vez melhor a função de cada evoluído. Que sejamos capazes de ver que é a intuição que forja uma razão sadia - pois uma razão jamais será capaz por si só de edificar uma grande alma, repleta de sentimento, coragem e visão. Sofre-se no cotidiano para elevar-se no decorrer das eras.

Olhar para a questão da moradia de forma mais ampla, rasgando a alma (conceitos), expandindo-a, é o que ajudará toda humanidade a superar esse princípio de exclusão.

Pois de nada adianta erradicar a exclusão por fora se o seu princípio se encontra operante em nossa alma. Precisamos de estofo espiritual para vitaminar nossos movimentos coletivos.

Essa é a questão. Esse é o princípio. Esse é o caminho. 

Referências:
[1] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com/2015/11/ar-agua-alimento-abrigo-afeto.html
[2] http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
[3] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com/2018/06/novos-rumos.html
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_Boulos
[5] https://www.youtube.com/results?search_query=boulos+roda+viva
[6] https://www.youtube.com/watch?v=QdRm0MGriE0
[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Imposto_territorial_rural
[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mamon
[9] https://outraspalavras.net/brasil/direito-a-cidade-luta-proibida/
[10] https://www.cartacapital.com.br/economia/o-que-explica-o-aumento-da-pobreza-extrema-no-brasil
[11] http://justificando.cartacapital.com.br/2016/08/15/denuncias-de-violencia-a-moradores-de-rua-crescem-60-no-rio-diz-defensoria/
[12] https://www.youtube.com/watch?v=6UJ-ziAYsYI
[13] https://www.youtube.com/watch?v=dDobL2NAv_E

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