Os verdadeiros passos da humanidade não se dão no campo espacial. A quantidade de matéria movimentada; a energia dispendida; a intensidade da força e dos gritos; a movimentação de formas evanescentes (desprovida de finalidade); as quantias envolvidas; as vidas ceifadas impiedosamente...Nada disso é régua para medir o desenvolvimento humano - apesar de que muitos progressos eternos, cravados na alma individual e coletiva, exigem, para um estado de consciência ainda involuído, animal-humano, dores externas.
Os verdadeiros saltos evolutivos podem envolver exteriorização, com atos que enchem os olhos do público, ensurdecem os ouvintes, impactam os sensórios seres (nós). Através de uma árdua conquista material, abrem-se as portas para a gênese do espírito. Eleva-se a alma quando se desce além dos limites; quando se sobe além dos limites; quando são entoados hinos de glória permeados de sutilezas harmonicamente orquestradas; quando se ultrapassa barreiras (tidas como insuperáveis); quando se cria um jeito novo de fazer; quando se gera mais com menos. O produto de nosso esforço fica gravado no íntimo da psique, entidade imortal sedenta de atitudes concretas cada vez mais morais e moralizantes. Para obter esse ganho deve-se arriscar a vida individual - e desgastar o seu princípio. É o que A Grande Síntese denomina de degradação biológica.
Uma trajetória reveladora do universo interior. |
Os feitos da humanidade impressionam cada um de acordo com sua formação, sua vivência, sua constituição genética. Todas elas, do campo físico, passando pelo dinâmico, pelo biológico, até culminar no psiquismo, são esforços válidos se devidamente assimilados em sua real essência. A experiência adquirida pelo espírito fica registrada - os meios para adquiri-la caducam, assim como os reconhecimentos e prêmios se apagam com o tempo, dimensão que carreia tudo que não é imaterial. Apenas o que se registra no absoluto é eterno. Estas qualidades se manifestam em novas formas, no relativo, adquirindo beleza cada vez maior, sutilizando o corpo, a fala, a matéria, as atitudes e todo ambiente influenciado pelo ser renovado.
Os marcos da humanidade se dão na arte, através da estética que encanta; na ciência, através das formulações que coordenam a visão da natureza (humana e infra-humana); na filosofia, através das ideias que aprofundam o conjugam; na religião, através das crenças que dão sentido à existência; da tecnologia, através dos rearranjos criativos que se apoiam nos saberes e dependem de uma dose de fé. Essas conquistas evoluem com o tempo. Elas se tornam cada vez mais complexas em seus meios (para serem atingidas) e resultados (a serem assimilados). Mais sutis, com impactos de mais longo prazo e amplitude mais excelsa. Conquista esta cada vez mais produto de uma coletividade. Coletividade organizada em forma de nação, com seu Estado, que a conduz; e com sua sociedade, que se transforma e influencia esse grande organismo, com suas instituições.
O filme First Man (Primeiro Homem, 2018) trata de uma conquista específica: a chegada do homem (da humanidade) à Lua, em 1969. Uma dentre muitas no longo filme de ascensão humano. Especial em seu momento. Eterna em seu átimo, quando toda humanidade vibrava (negativamente ou positivamente) com as tecnologias que nos fizeram ir mais longe, escapando do campo gravitacional terrestre.
Através de uma introdução um tanto tensa e direta, somos arremessados a um mundo diverso. Um piloto engenheiro chamado Neil atinge os cumes da estratosfera, até perder os controles de sua aeronave, vindo a cair em sequência. O ano é 1961. A espaçonave é propriedade da NASA (mais conhecida como Agência Espacial Norte americana). O sobrenome do piloto, Armstrong.
O olhar de quem sofreu e continua buscando. |
Num registro muito bem filmado, o espectador faz um tour de force na década de sessenta, sentindo em seu âmago as dificuldades enfrentadas pela equipe responsável em colocar um ser humano no satélite natural da Terra. Não apenas isso, mas igualmente o drama interior de todos os envolvidos. Nesse quesito, os astronautas estavam na linha de frente em termos de riscos à suas vidas e integridade psicológica. Vemos esse drama se desenrolar por uma década. Década essa intensa (em tensões psíquicas) e breve. Breve porque envolvente. Envolvente porque revela algo muito mais profundo do que a mera conquista de um astro vizinho. Um drama que se desenrola através da vida do seleto grupo que participou de várias missões dos dois programas espaciais - primeiro Gemini, depois Apollo - cujo produto final, após um longo processo de destilação psíquica-nervosa, tecnológica e financeira, culminou na chegada do homem à Lua.
Trata-se de um verdadeiro salto em termos de impulso tecnológico - que nas décadas seguintes pulverizou suas inovações, possibilitando o surgimento de várias tecnologias que se tornaram comum no âmbito social. Mas o âmago da questão reside na personalidade de Neil, o primeiro homem a pisar num astro. Vemos nas cenas subsequentes às perdas (primeiro, da filha, depois, de colegas astronautas) uma alma que arde: deseja adentrar no reino, atravessando o véu mortal que levou seus colegas e desafia as mais brilhantes mentes. Entrar num terreno pantanoso, infestado de incertezas - porém cheio de potencialidades. Os limites só expandem quando batemos com força neles, desafiando-os de maneira mais sagaz, mais criativa, com golpes certeiros e elegantes, contornando assim o que era visto como incontornável. Penetrando no que outrora era tido como impenetrável. Eis a aventura do mundo da ciência e da tecnologia, mas igualmente da arte, da religião e da filosofia, nos campos da expressão deslumbrante, da reflexão abissal do sentimento cálido - respectivamente.
O olhar fixo, penetrante, impenetrável e determinado de Neil, que encara a Lua, quando o foguete Saturno, contendo a Apollo 11, ruge através de seus motores hercúleos, prontos para dar o impulso, é a expressão mais clara da determinação destemida e consciente. Comum a todo ser humano que tenha chegado a certo ponto, através de um longo processo permeado de dores. Da mesma forma, esse olhar ressurge quando, prestes a pousar na superfície do mar de tranquilidade, com o combustível quase findando, e necessitando de um pouso suave num local minimamente seguro (um sério problema no campo da otimização de sistemas dinâmicos), a missão está em seu auge. O clímax se dá na hora de maior incerteza, de maior distância (espacial e, sobretudo, conceptual). Era o momento certo porque havia o tipo certo. Tipo que sofreu as dores necessárias; que escalou a imensa, áspera e capciosa muralha que separa o conhecido do desconhecido; que persistiu apesar de tudo. Perseverança: eis a palavra que melhor exprime a causa de grandes conquistas.
A 'conquista' da Lua não é um feito de um país, de uma instituição, de um homem. É o marco culminante de um longo processo de criatividade incessante e dor assimilada, até a medula. É um pequeno passo para o homem (dimensão espacial), mas um grande salto para a humanidade (dimensão conceptual).
O astro é vizinho. A distância Terra-Lua, em termos astronômicos, é insignificante - poderia ser um milhão de vezes maior, mas continuaria a ser igualmente ínfima comparada à vastidão do Universo. Mas do ponto de vista de conquista humana (relativa ao passado), de possibilitar a alavancagem de outros rumos (criação de um mundo melhor), de estabelecer outras metas (superação da natureza inferior)...trata-se de um salto verdadeiramente grande.
O ato físico foi pequeno - o seu significado, gigantesco.
Esse é o aspecto que faz o filme valer a pena. Narrar a multimilenar ascensão do ser (interior) com uma de suas mais célebres conquistas (exterior).
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