domingo, 10 de julho de 2022

Símbolo e expressão de uma Era

Acabo de concluir a série Titanic: blood and steel (Titanic: Sangue e Aço, em tradução literal). Série de doze episódios que varrem a concepção e construção do maior navio de passageiros de sua época e classe. Um gigante de mais de 45 mil toneladas, com dimensões que beiram o inimaginável para sua época. Época da segunda explosão do grande processo conhecido como Revolução Industrial, em que o carvão, o aço, o petróleo, a eletricidade e as comunicações à distância se tornaram os suprassumos do início do século XX.

A trama se passa entre os anos 1909, início de sua construção, e (abril de) 1912, sua partida do porto de Belfast. O foco da série é o desenvolvimento do navio. Sua gênese, seu processo de construção e a vida das pessoas envolvidas. Nessa série não vemos um produto acabado e aparentemente perfeito (como os homens de negócios gostam de mostrar as coisas que desejam vender), mas um contexto real, tenso e cheio de questões envolvidas. Questões que superam os limites da técnica. Além disso, sente-se o conflito titânico entre o primor técnico - que clama pela segurança e preservação de vidas - e a ânsia pelos lucros - que impõe a fantasia e o corte de custos para satisfazer os imperativos do crescimento econômico, paradigma de nossa civilização. Um confronto que, em seu aspecto mais profundo, revela a batalha entre Sistema e Anti-Sistema. 

Uma co-produção entre Irlanda e Itália. Nada mais apropriado e lógico: o navio foi construído em Belfast (Irlanda), com mão de obra irlandesa (católicos e protestantes) e italiana, em sua maioria. A questão trabalhista é muito forte e bem estacada no filme. É evidente o conflito entre classes sociais, opiniões políticas e visões de mundo. 

No filme católicos e protestantes são como água e óleo. O conflito é tenso. Domina no topo da pirâmide social a minoria protestante. Há junto a isso a questão da independência que irá levar à rebelião de 1916. 

Estamos no início de 1909 e o magnata J.P. Morgan requisita um novo navio para uma de suas empresas de transporte (a White Star). Os britânicos, por sua experiência naval, ficam a cargo disso. E para isso serão usados trabalhadores de várias nacionalidades - e materiais de várias regiões. O estaleiro encarregado do desafio de produzir o maior navio de sua época (e classe) é a Harland and Wolff, dirigida por William James Pirrie (Derek Jacobi). Um jovem engenheiro, com doutorado na área de  materiais, chamado Mark Muir (antes Mark Malone, conforme será revelado), interpretado por Kevin Zegers, se lança ao desafio de contribuir para o projeto à medida que o navio é construído. Trata-se de um desafio do ponto de vista da engenharia: ninguém sabia sobre os riscos de navegação de uma estrutura flutuante tão grande. As dimensões aumentam e com isso adentra-se em terreno inexplorado, cheio de incertezas e (com elas) problemas. 

A série se passa em Belfast e trata do período de construção do navio. Estamos no momento de concepção e elaboração do produto. Ou seja, do pensamento (Espírito, ou Princípio Absoluto) que acaba mobilizando vontade(s), isto é, dinamismo, métodos e processos (energia, ou Pai, Verbo criador) para materializar a obra colossal - que é o Titanic (matéria, ou Filho, Criação final). É muito interessante estabelecer essa analogia entre as coisas do mundo e as grandes visões das revelações, pois nos dá uma ideia do quão fascinantes podem ser as coisas de nossas vidas. Basta para isso termos uma visão profunda da fenomenologia universal. Além disso, há também a relação entre as abordagens do antes (causa, gênese, problemas na construção) e do depois (efeito, manifestação, operação e obra vistosa).

O filme de 1997 de James Cameron trata da breve e intensa vida do navio, com alguns personagens marcantes que transmitem aspectos sobre a natureza humana e a incessante busca pela realização dos ideais. Já a série foca em todo o significado do navio, como por exemplo: das condições cheias de atritos para sua construção; da vida árdua das pessoas que o construíram; da cisão política e religiosa do ambiente; do conflito entre a engenharia, com seu primor técnico e preocupação pelas vidas, e os imperativos financeiros, impiedosos diante de qualquer norma ou princípio que vá contra sua voracidade pelos lucros e pelas aparências; do encontro de almas afins num mundo conturbado cheio de incertezas, jogo de forças e astúcias; e dos destinos das pessoas. 

A trilha sonora de Maurizio De Angelis transmite a força da empreitada e a paixão pela superação técnica. O sentimento aflora nas cenas que delimitam marcos, como por exemplo o lançamento do casco, a estrutura principal do navio, nas águas do porto de Belfast.


À medida que assistimos os episódios, nos envolvemos com a rotina dos funcionários da empresa, com o quotidiano dos trabalhadores (pagos por rebite), muitos irlandeses e italianos, e com o contexto local. Na série o conflito trabalhista é muito evidente e bem tratado, assim como a intensa divisão entre pessoas de mesma classe social por questões religiosas. É nesse turbilhão de obrigações, dilemas e sonhos, que Mark conhece Sofia Silvestri - uma imigrante italiana, funcionária dos escritórios responsável por tarefas administrativas, interpretada por Alessandra Mastronardi.

Uma relação que se inicia como uma simples encontros formais entre um engenheiro que estuda as propriedades mecânicas do aço usado na construção e uma moça que é convidada a fazer desenho das microestruturas da peça. E que vai ganhando novos ares à medida que os diálogos (sobre coisas do  trabalho) entre os dois vão ganhando um significado mais profundo. Como eu digo (pois percebo), é quando nós transmitimos nossa visão às coisas que você fazemos que a comunicação real ocorre e a vida acontece. Quem vê em profundidade percebe isso de forma muito clara. 

Um aspecto muito interessante da série é que ela revela que nem tudo é preto ou branco. Existem personagens que não são exatamente o reflexo perfeito de seu meio, classe social, grau de estudo e credo. É a complexidade humana sendo transmitida através da arte. Lord Pirrie não pensa como os outros magnatas, vendo seus trabalhadores como inimigos indignos de terem condições mais decentes - e voz. Ao mesmo tempo ele também fraqueja diante de seus valores quando se adequa aos métodos do mundo em prol de um 'bem maior'. Algo que decepciona seu sobrinho, o contador Thomas Andrews, e Mark.

Vemos como a cisão dualística impede o pleno progresso das coisas muito claramente à medida que o passado de Mark é descoberto pelos membros da empresa. Há muitas reviravoltas. Mas o mais interessante é perceber como a Lei acaba agindo de modos muitos sutis e certeiros através de ferramentas humanas (que a desconhecem por completo). Mas sobre isso nada será revelado aqui - é preciso assistir a série com a lente monista. 

É isso.

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