domingo, 10 de junho de 2018

Liberdade dá Sergurança

Há muito tempo falei sobre o aparente dilema liberdade-segurança, tão bem colocado por Zygmunt Bauman em sua extensa obra sobre o mundo líquido. Concordei com a relação conflitante entre as duas grandezas tão ansiadas pelo ser humano, mas coloquei uma observação: esse conflito não é permanente, e tende a evoluir para uma relação cada vez mais expandida, na qual os dois anseios humanos tendem a ser cada vez maiores - apesar de manterem uma variação inversamente proporcional um ao outro. 

Safatle discorre sobre essa questão no programa Voz Ativa [vídeo abaixo], dizendo indiretamente que Bauman não está absolutamente correto, mas que ter mais liberdade te dará mais segurança.



Tendo visto essa realidade (liberdade-segurança) sob dois aspectos (Bauman-Safatle), posso começar a construir uma imagem um pouco mais próxima dessa relação dinâmica entre ambas. Rohden trata do tema também, dizendo que devemos ser livremente seguros e seguramente livres - isto é, não há qualquer contradição entre ter 100% de segurança e 100% de liberdade. Isso derrubaria a tese de Bauman (com suas relações do tipo 40-60, 70-30, 50-50, 100-0, 0-100,...) e iria mais longe do que o Safatle colocou. 

Por quê mais longe?

Quando foi afirmado que mais liberdade dá mais segurança, Vladimir observou a questão do ponto de vista social (externo), partindo do pressuposto que o indivíduo fará essencialmente o melhor uso possível do livre-arbítrio se lhe for dada condições de deliberar sobre assuntos que digam respeito à sua vida, direta ou indiretamente. Mas em muitos casos essa capacidade é limitada pelo campo de visão do indivíduo. O que ele considera 'bom' o é apenas até certo ponto. Não quero por isso chancelar o discurso daqueles que apoiam avidamente o elitismo dos 'especialistas', que devem decidir o que é melhor para a sociedade sem jamais consultá-la. Digo apenas que devemos perceber que a condição de libertação é a conscientização.

Bertrand Russell (1872-1970). Uma
mente que chegou na fronteira da razão,
apontando para uma realidade mais
interessante. 
Quando estamos ancorados a automatismos que sabemos, conscientemente, não serem bons, - apesar de inscritos na legalidade jurídica e cultural - tendemos a construir um autopoliciamento mental que sempre nos alerta da necessidade de frearmos. Assim passamos a ser tolerantes com as regras e leis do mundo que inibem a liberdade. Mas se essas restrições não houvessem para alguns indivíduos, eles fariam bom uso desse campo aberto. Vejamos um caso prático.

Se observarmos a jornada de trabalho no mundo e confrontarmos essa imposição legal com a eficiência da economia e o bem-estar das pessoas, iremos constatar a inutilidade de tantas horas perdidas ao longo do ano [1]. Antes do Domenico De Masi, Bertrand Russell já havia se aprofundado na questão com  obra Elogio ao Ócio [2]. Discorre em poucas páginas sobre a irracionalidade de se aplicar uma jornada longa, que nem sequer do ponto de vista produtivo é utilitária se mantida indefinidamente. No entanto muitos creem que 'mente vazia é oficina do diabo'.

De fato, o ser humano ocioso tende a se degradar com o tempo. A questão é definir o que é exatamente a 'mente vazia' do famoso ditado. Será deixar de ficar 10~12 horas num escritório? Ou num balcão de mercado? Ou na rua vendendo chips de operadoras? Ou em diversos cargos burocráticos, repetitivos ou que ameaçam formas de vida? Porque existem inúmeras ocupações remuneradas (algumas muito bem inclusive) que não criam nenhum valor útil, ao passo que pessoas que preenchem sua vida com significado acabam não sendo reconhecidas pelo sistema econômico, sendo relegadas ou ao desemprego ou à baixa remuneração - além de serem motivos de chacota de parte da sociedade. Pense nos cientistas humanos, sociais, pesquisadores de institutos, professores(as) da maioria das redes, artistas, filósofos, operários competentes, entre outros. Seu valor não se reflete nas políticas de carreira, vagas, reajustes, reconhecimentos (oficial ou não), salário, voz política, entre outras questões.

Dessa maneira devemos separar os vocábulos 'emprego' e 'trabalho'.

O primeiro é uma ocupação remunerada e juridicamente reconhecida pelas instituições (e, em larga medida, sociedade), que cada vez mais é repudiado pelo íntimo humano, que não se realiza com um horizonte de expectativas tão limitado. O segundo é criação de valor, cansativo porém dinâmico e alegre, que dá sensação de tempo que voa, sem foco no externo, mas mergulho em concentração e intensidade de execução. Em muitos casos não é reconhecido - se é, há poucas vagas.

A intuição, como um relâmpago, vem
impetuosamente. Seu efeito posterior
é o som do trovão, que abala com sua
força. O som filho de uma visão possui
a força da criação.
Pode-se criar - e muito - fora do contexto 'emprego'. Quando-se está deitado num sofá, é possível a mente estar a mil, relacionando conceitos, eventos, pensando em soluções para questões práticas ou simplesmente tentando entrar num estado de meditação, esvaziando a mente para a recepção de algo. Quando se está em casa de pijama (ou num parque, num bistrô ou coisa do tipo) pode-se estar pesquisando, resolvendo problemas de uma tese, elaborando um curso, redigindo um texto, criando uma avaliação, cozinhando uma nova receita, ouvindo música, conversando intimamente, assistindo um filme, refletindo, lendo, consertando algo, tentando criar algo novo, nunca visto. Esses valores criativos devem vir à tona. Às vezes aí é que se encontra a verdadeira vida. A criação plena, intensa, incessante e livre. Uma criação que obedece leis férreas, leis interiores, mas necessita de liberdade externa das instituições. Necessita que a sociedade compreenda, deixando o criador ou criadora em paz, com certo conforto, para que possa impor a si mesmo uma condição de busca. Desordenadamente tenta-se criar uma ordem diversa, própria, que se enquadre no seu momento pessoal e saiba manifestar potencialidades latentes. Desse ponto de vista liberdade é segurança. Liberdade razoável - de tempo e financeira - dá a segurança de poder, com sua consciência, ensaiar novas formas de vida - ou ao menos refletir profundamente sobre elas. O mundo inconscientemente anseia por isso, e olha de modo singular para aqueles que vivem segundo outros princípios, sem medo de criar núcleos de criação - oásis de paz mergulhos em mares ruidosos.

Como se criam esses núcleos? De vários modos.

O primeiro passo é valorizar todo ato pequeno, por mais insignificante e impotente que pareça. Se a intenção for sincera e a perseverança profunda, o resultado é certo.

O segundo é fazer uso de toda experiência - especialmente as mais desagradáveis - para extrair significados mais profundos da existência, e reforçar o estofo moral. Não sentir medo de uma atitude que parte do íntimo é essencial.

As construções que ecoam pela história e cumprem uma função de valor substancial tem sua gênese em inquietações agudas, que geram comportamentos diferenciados e conduzem o ser por caminhos que por sua natureza se destacam da mentalidade comum. Esse voo assusta, pois gera distanciamento. Mas logo se percebe que não se deve abortar a decolagem.

Sem terreno sólido para se apoiar, perde-se a compreensão humana, e com isso busca-se um ponto de apoio - acima, no imponderável. Não se vê nada, mas sente-se algo. Assim se constrói um novo modo de caminhar na vida. O centro de gravidade se desloca para planos mais altos. Vê-se a longo prazo e considera-se as relações antes desconhecidas. Isso dá mais segurança nesse voo livre.

É preciso desenvolver uma sensibilidade psíquico-emocional controlada para sentir a liberdade da vida simples. A maior (e única) riqueza está além da potência, da velocidade, das posses e dos reconhecimentos terrenos. Ela é um 'nada' que cria tudo que valorizamos. Ela é imperecível, intransferível e inviolável. Dificilmente descritível - facilmente percebida. Os semblantes radiantes dão uma ideia do mundo novo.

Deseja-se menos, percebe-se mais.
Informa-se menos, investiga-se mais.
Distrai-se menos, concentra-se mais.

Sente-se seguro com a nova visão, os novos conceitos. Muitas muletas são abandonadas. Religiosas, financeiras, emocionais, políticas. Usa-se o necessário. Fins passam a ser meios. Surge novo objetivo. Meta mais alta e poderosa.

O conhecimento da verdade liberta. Essa é a verdadeira liberdade - aquela provinda do contato com a verdade. Esse tipo de liberdade dará toda segurança ao ser. Assim, ousará inteligentemente.

E assim cumprirá sua função.

Referências:
[1] https://outraspalavras.net/capa/a-sociedade-dos-empregos-de-merda/
[2] 1935, In Praise of Idleness, London: George Allen & Unwin.

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