terça-feira, 5 de junho de 2018

Novos Rumos

"- Professor Vladimir Safatle, a democracia brasileira fracassou?
- Sim, com certeza. "


A democracia dita liberal e representativa que conhecemos é, como bem se sabe, limitada em vários aspectos. Ela se consolida no ocidente a partir do fim da 2ª Guerra Mundial (1945) nos países industrializados, e se instala tardiamente nas repúblicas latino-americanas a partir das décadas de 1980 / 1990. No caso brasileiro a Nova República completa 30 anos, e se inaugura de forma ambígua, pois assim como estabelece um marco progressista importante (Constituição Cidadã, 1988) se mantém ancorada nos porões do passado, não reconhecendo os crimes da ditadura - coisa que todos os países irmãos fizeram. Dessa forma inicia-se um ciclo deformado.

O Congresso nacional foi (digamos) estruturado desde o princípio desse ciclo para operar com base no financiamento. Existe uma cultura parlamentar que se concretizou ao longo dessas três décadas, operando de modo flexível. Flexível no pior sentido do termo. E assim obrigando qualquer governante que ocupasse o cargo executivo a lidar com essa barreira de interesses pulverizados, inflexíveis a qualquer mudança em seu modus operandi, exigindo uma farta compensação política em troca de votos. Aí se percebe que o dito mensalão é prática de todos aqueles que ocuparam a presidência, sem o qual jamais seriam capazes de governar (minimamente) o país. Dessa forma o que a sociedade brasileira descobriu recentemente é uma prática comum da Nova República.

Vladimir Safatle descreve em termos substanciais o fenômeno que ocorre em nosso país, na Rádio Blink, mostrando que os afetos possuem uma sua razão própria, e portanto não podem ser eliminados do campo das possibilidades (vídeo abaixo). Explicarei isso mais adiante.


A culpa não é daqueles que criaram essa manobra. "Culpa" inclusive não é uma palavra muito adequada. Usemos "problema". O problema é a estrutura do sistema político, que é podre e não permite de modo algum a implementação de projetos desenvolvimentistas, pois esse vai contra aqueles que financiam e sustentam os servos*. O máximo que se pôde fazer em termos econômicos e sociais foi feito nos últimos 15 anos, mas com grandes limitações. 

No curso que leciono** introduzo o conceito de realimentação, que nada mais é do que uma lógica (fluxo de informação) que altera o modo de um sistema responder ao meio em função de uma meta desejada (referência) e como ele age presentemente. A diferença entre ideal (referência) e real (saídas atuais) é o que irá determinar a intensidade da "política de realimentação". Ela pode ser tanto positiva quanto negativa. 

A primeira está para transformação, mudança rápida, crescimento / decaimento exponencial. 
A segunda está para estabilidade, acentuação das diferenças, atingir uma assíntota. 

Inicio com os conceitos, depois mostro como modelar em termos diagramáticos e matemáticos. Dou exemplos simples, palpáveis - ciências naturais e tecnologias. Mais adiante - parte final do curso - eu cito exemplos mais complexos, relacionando a terminologia com políticas públicas. 

Tomemos como exemplo as políticas que visam a redução de desigualdade

O que foi feito com programas assistenciais (Prouni, Bolsa Família, Fies, Minha Casa Minha Vida, etc) foi a introdução de realimentações negativas no sistema-Brasil. Mas são realimentações fracas e limitadas - mas no entanto muito importantes para eliminar a miséria! Isto é, visa puxar quem está mais em baixo para cima - mas não auxilia a puxar quem pouco produz e drena enormes recursos do planeta para baixo: a plutocrcia nacional. Isso ocorre porque não se mexeu nas realimentações positivas que reforçam e aumentam a desigualdade, seja de oportunidades, de renda e de vida:

  • Sistema Tributário.
  • Sistema Político.
  • Sistema de Saúde.
  • Sistema Educacional.
  • Sistema de Segurança.

Se o setor público não assume esses sistemas em sua integridade, as limitações se revelam em pouco tempo - conforme vimos em 2013, com a falência da política de conciliação. Os limites de lulismo são dados pela rigidez da estrutura de um sistema que se recusa a se alterar substancialmente. 

Incorporar 40 milhões de pessoas ao mercado de consumo é essencial e bom. Essencial do ponto de vista econômico - bom do ponto de vista humano, ou mesmo cristão. no sentido mais forte do termo***. Mas isso em si está muito longe de construir um país decente. É necessário mexer profundamente nos cinco sistemas acima citados, tornando-os públicos, universais e fortes.

Do primeiro e segundo (tributação e política) ter-se-ia os recursos para financiar - com folga - os três últimos. Apenas a desoneração fiscal praticada pelo último governo garantiria mais de R$ 450 bilhões [1], superior ao orçamento do SUS e do MEC. O vídeo abaixo mostra a dimensão do absurdo em termos tributários.


Não existe país desenvolvido no mundo que tenha atingido seu grau de desenvolvimento humano sem uma tributação progressiva. A taxação é justificada por inúmeras razões. Trata-se de demandar da elite arcaica e medieval do país que seja implementado (pasmem) o capitalismo desenvolvimentista que EUA, Grã-Bretanha, França, Alemanha, entre outros, aplicaram ao longo das décadas de 1940 a 1980. Nossa elite é feudal - nem sequer capitalista é. Com tamanho atraso é verdadeiramente impossível sequer discutir ideias socialistas, que apenas jovens evoluídos conseguem desenvolver [2].

Diversos dados revelam que a população norte-americana não tem ideia da distribuição de riqueza e renda em seu próprio país [3], e que ela é perversa. O vídeo de Outraspalavras mostra o caráter desigual de nosso sistema tributário. Nele, lucros e dividendos não pagam imposto. Mega-heranças (da ordem de centenas de milhões, dezenas de bilhões) pagam quantias pífias. Aplicações financeiras altas pagam muito menos do que trabalho assalariado. Uma faixa máxima de 27,5%, que atinge seu zênite já a partir de R$ 4~5 mil mensais, mostra a falta de bom senso, fazendo o trabalhador que ganha 5, 10, 15 mil pagar proporcionalmente o mesmo que aquele que ganha 200 mil 300 mil ou mais (por mês). Vários países possuem mais faixas, com tributação pesada para rendas absurdamente altas. Aquele que ganha seus R$ 18 mil mensais ou menos (cerca de 99% da país) não deveria se assustar com uma verdadeira reforma tributária, pois não seria prejudicado [4]. A isenção cresce exponencialmente quando chegamos nos 2,0%...1,0%....0,2% mais aquinhoados do país. Trata-se de uma verdadeira aberração que é invisível para muitos setore. s da classe média e dos pobres. Uma renda per capita de R$ 5 mil está muito longe de representar um privilégio, segundo a Oxfam [5].

Reduzir a pobreza é condição necessária mas não suficiente para reduzir desigualdade social. Fica cada vez mais claro que o problema é complexo e exige atuar em frentes diversas [6]. Se explicitar essas questões é considerado heresia no meio público (família, trabalho, sociedade,...), tem-se aí um atestado de que o grosso do país foi anestesiado e reproduz conceitos superficiais.

Conter a marcha do progresso tem seu preço. A vida clama por evolução.

Crime contra a humanidade não é anistiável. O Brasil não fez o julgamento nem a prisão de seus algozes dos tempos da ditadura. Nossos vizinhos fizeram. Isso demonstra o grau de atraso institucional e a miséria cultural da sociedade. Existem bolhas de exceção, claro, mas não constituem massa crítica. Isso é, o número da qualidade não é suficiente para fazer frente à ignorância da quantidade. Essa mudança (conscientização) é lenta. Por isso não se pode esperar muito da média humana - mas apontar os caminhos vagarosamente, via atitude, cursos, escritos, forma de vida, relacionamentos, entre outras coisas, é imperativo categórico.

É preciso se libertar das visões fixas. Adentrar na era do
dinamismo em busca de formas de vida mais adequadas
à espécie. É preciso viver de forma orientada e coerente.
Acima da razão, a intuição. Pascal, santo e gênio,
percebeu isso.
O medo é outra questão central. Ele paralisa as pessoas, deixando-as completamente impotentes face aos desafios que surgem. Permitir que a inércia das convenções multimilenares domine nossa vida é morrer espiritualmente. Uma população deve buscar o progresso porque dificilmente os poderes estabelecidos farão o que se deve de boa vontade. Todos países que possuem um grau mínimo de civilização (apenas em suas fronteiras, claro) passaram por um longo processo, pautado por uma série de violências. Essas foram (infelizmente), o fato-chave que permitiu a consolidação do desenvolvimento humano efetivo. Da Roma Antiga ao Estados de Bem-Estar do século XX, foi assim [7]. Não se trata de invocar a brutalidade, mas constatar que a morbidez espiritual humana leva a situações catastróficas. Eventos que a própria civilização diz se horrorizar, mas que se empenha em construir, de forma lenta e gradual. Por que isso ocorre? Porque não temos visão de longo prazo. Visão sistêmica. Já discorri sobre o pensamento sistêmico aqui [8]. É importante saber do que se trata antes de avaliar (traduzindo: leia, estude, reflita e sinta...antes de pensar coisas).

Poderia ficar aqui discorrendo sobre a questão da saúde, mas um artigo ilustra muito bem as questões que devemos colocar em pauta [9]. O setor público é essencial tanto para garantir eficiência econômica quanto direitos humanos. Como se vê pelo gráfico do artigo [9], não se trata de um ou outro, mas sim ambos. EUA, com seus convênios médicos mafiosos e sua riqueza enorme mal aproveitada, é ponto fora da curva - em sentido negativo, vale lembrar. 

Se discutir um sistema público de saúde, educação, segurança é comunista, então recomendo o estudo dos estados liberais da Europa Ocidental e EUA das décadas de 40, 50 e 60. Foram altamente comunistas segundo esse conceito. Precisamos nos situar na fenomenologia universal antes de emitir opiniões. 

Safatle explicita questões muito profundas que sempre senti ao longo de minha vida - por isso meu encanto com suas palavras. Trata-se de sintonia intuitiva em contanto com uma verdade mais próxima ao absoluto - e não de uma seita de seguidores interesseira,presa no relativo, com uma visão restrita e limitada.

A democracia admite uma dissociação entre lei e justiça. Porque a justiça é do Ser humano, e portanto está em constante mudança (evolução) em seus pontos mais iluminados da civilização. Por outro passo, a lei é a institucionalização de justiças passadas, sendo engessada (letra) que demanda constantes reconstruções para se adequar ao grau evolutivo da espécie que faz uso dela. Possuir um sistema eficiente demanda demolições e reconstruções periódicas de suas instituições. Isso passa pela reformulação dos conceitos. Por exemplo, convido o leitor a se aprofundar no conceito de "trabalho" (o que é exatamente?). Domenico De Masi pode ajudar nessa questão [10].

Falar em nome da justiça mesmo contra o direito é uma ideia ainda muito avançada para nossos tempos. Mas é imperioso que as pessoas corram atrás dessa (digamos) 'atualização interior'.

A violência política não trata da destruição do outro, mas da resistência a autoridade. John Locke, um filósofo liberal, justificava o uso de métodos violentos contra um poder que não mais atende as necessidades do povo - e da vida. Mesmo o protestantismo admite a insurreição popular contra governos que não representam interesses coletivos. Hoje em dia podemos estender isso para o campo ecológico. Porque trata-se de uma violência institucionalizada, como a que vem se desenvolvendo no Brasil, onde se naturaliza a grotesca desigualdade social. Isso é inadmissível em qualquer sociedade democrática, porque fere o próprio conceito de democracia. 

A polarização é um processo natural quando se dá a exaustão de um modelo. Mantê-lo artificialmente só dá força a esse desequilíbrio. O problema do Brasil é que apenas um dos lados (extrema direita) se organizou - de certo modo - e assim consegue colocar pautas que vão capturando uma vasta gama de grupos. O outro extremo (esquerda radical) não está sendo capaz de forjar pautas e balancear esse dinamismo de grande envergadura que se abre desde 2013. É aí que entra a questão dos seres mais evoluídos, que desde a mais tenra idade já começam a atuar de modo intenso, orientado e profissional [11]. Esse desequilíbrio gera um impasse à medida que persiste, pois fica-se cada vez mais difícil fazer o contraponto num meio em que apenas um extremo está se ampliando e intensificando.

Esse dualismo é natural em momentos em que modelos de conciliação se esgotaram. Não é mais possível ter acordos formais que colocam panos quentes em formas de vida alternativas e questionadoras. Não é mais possível fingir que diferenças entre pessoas e grupos não existam.  Elas devem ser explicitadas (a) e trabalhadas (b). A imaturidade humana em lidar com essas questões está atrasando a nossa evolução. Dores enormes virão para queles que não se preparam. 

"Existe uma racionalidade nas paixões."
"Elas expressam adesões a formas de vida que são distintas."
"Não existe uma gramática comum dentro da sociedade." 
[Safatle, Vladimir]

Isso nos remete a (Blaise) Pascal. O caminho da argumentação é limitado e já há estudos que comprovam isso [12]. Nós não temos uma base racional-sistematizadora-analítica capaz de forjar uma gramática universal. A própria razão não é calcada em universalidade conceitual, mas em segregação para atender interesses específicos de áreas do saber, teorias, profissões, grupos, nações, religiões e etnias. Quem prova que Deus existe é ateu. Deus não se prova. Deus se Sente e se Vive.

"Uma sociedade que tem medo da divisão é uma sociedade doente."  
[Safatle, Vladimir]

É preciso criar espaço que permita as pessoas falarem de suas divergências. Eu percebo essa limitação em todos ambientes - com vários graus de intensidade. Crio alternativas onde é possível: no Lar, com parte pequena da família, com cursos de extensão, neste blog e - acima de tudo - na atitude de resistência a uma vida limitadíssima que se apresenta e se impõe ao mundo.

É preciso tomar novos rumos. Mas isso parte do íntimo do ser. 

Observações:
* Os parlamentares, com honrosas exceções
** Iniciação à Ciência de Sistemas (ICS)
*** Por cristão me refiro ao espírito fraterno que todo humano possui, e não à ordem religiosa formada, com suas hierarquias, formalismos e dogmas.

Referências:
[1]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/09/1678317-dilma-deu-r-458-bilhoes-em-desoneracoes.shtml
[2] https://www.youtube.com/watch?v=p9hbj8Z1Ttk
[3] https://extranewsfeed.com/taxation-is-justified-bbd0108254d2
[4] http://justificando.cartacapital.com.br/2018/01/02/quando-cobramos-dos-mais-ricos-nao-estamos-falando-de-voce/
[5]https://www.oxfam.org.br/?gclid=EAIaIQobChMIrNGzv8682wIVkgqRCh1zBwnEEAAYASAAEgLHmvD_BwE
[6]http://justificando.cartacapital.com.br/2017/10/14/basta-reduzir-pobreza-para-combater-desigualdade-social/
[7] http://www.bbc.com/portuguese/geral-42723741
[8] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com/2018/03/pensamento-sistemico-ponte-entre.html
[9]https://www.google.com.br/search?q=Universal+healthcare+means+freedom%2C+not+slavery&oq=Universal+healthcare+means+freedom%2C+not+slavery&aqs=chrome..69i57.347j0j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[10] https://www.youtube.com/watch?v=MSEUPqHnv14
[11] https://www.youtube.com/channel/UC0fGGprihDIlQ3ykWvcb9hg
[12] https://www.cartacapital.com.br/revista/948/cientistas-franceses-contradizem-descartes-o-pai-do-racionalismo

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