Me
lembro muito bem. Era o começo de 2007. Eu estava na metade final da
faculdade e aproveitando mais uma (daquelas maravilhosas e longas)
férias de verão. E dessa vez o que marcou esse início de ano foi
um grande filme. Grande em duração e significado. Um filme
subdividido em quatro séries de uma hora e meia cada. Um filme
insubstituível cuja temática foi abordada da forma mais adequada
possível, mesclando realidade e utopia na dose certa. “O Grito de
uma vida” é o nome desse filme. Dessa obra. Dessa realização
ímpar na História do Cinema. E eu explicarei o porquê de todos
esses elogios.
Nessa
época minha mente estava em fase de maturação profunda. Era um
período de reflexões acerca do que eu queria e poderia ser
futuramente. Pensava muito em questões que estavam (foram) enterrdas
nas mentes de pessoas. Questões pouco utilitárias, e no entanto com
implicações profundas na vida cotidiana. Dentre elas estava a
dúvida do que era de fato a luta dos trabalhadores ao longo da
história.
O que
mais me agradou em “O Grito de uma Vida” foi a abordagem sábia
de um dos temas mais controversos do nosso tempo: a luta da classe
trabalhadora por justiça. Nesse quesito, a minissérie consegue
fugir da abordagem comum, e inicia a narrativa focando na vida
específica de um rapaz, Robert Panaud (Francis Renaud), membro de
uma família cujos chefes de família foram, por tradição – ou
melhor, por necessidade – operários da indústria de aço na
França.
150 anos
de história dos Panaud são revividos em 'flashbacks' picados
durante a projeção. Paralelamente corre a vida de Robert, desde sua
infância até a idade adulta. E observando os dias desse rapaz
constata-se o poder gravitacional da indústria na vida das pessoas
que dependem – forçosamente, na maioria dos casos – dela para
obter os recursos mínimos para sua subsistência. E todas vertentes
da vida, se são afetadas, tem como uma das causas a situação na
indústria. Isso significa que foi criada uma relação (forçada) de
dependência entre seres humanos e fábrica. Uma relação que no
longo prazo não traz ganhos para ninguém e só gera lutas e
insatisfações da (numerosa) parcela oprimida.
Desde
fins do século XIX a tragédia marca a vida dos Panaud. Célestin,
avô do protagonista, tem um trágico fim. Fim causado
fundamentalmente por pressões incutidas nos operários pelos
dirigentes ao longo dos anos. Dia após dia. Ano após ano. E é
possível perceber que se trata de uma batalha perpétua pela
sobrevivência e pela justiça – o que são a mesma coisa para o
caso dos trabalhadores.
E mesmo
com essa vida carente de recursos, conseguidos à custa de muitas
horas, muito suor e muita saúde, observamos as diversas vertentes da
vida de Robert e de seus familiares e amigos. Seu gosto pela música
o leva a participar da orquestra da fábrica, e com isso se aproximar
de uma colega descendente de italianos, Graziella (Marina Golovine),
pela qual se apaixona e casa.
“O
Grito...” mostra todas nuâncias da vida no escritória e na
comunidade e dá espaço para que todos personagens justifiquem seus
atos e pontos de vista, permitindo que a luta (eterna) da classe
trabalhadora – e de todos seres humanos explorados – seja melhor
compreendida em sua essência.
Robert e Graziella: pouco tempo livre. |
Tomando
como exemplo o Senhor Lessage, antigo colega do pai de Panaud que
seguiu um caminho diferente: enquanto este decidiu se manter fiel a
seus colegas, evitando dilemas morais como ter que escolher quem será
demitido ou como podem ser cortados os custos, se mantendo portanto
operário e sem promoções, aquele se alinhou mais à chefia e
acabou ocupando um cargo mais alto na fábrica. No entanto, pagou o
preço de se afastar de seus colegas, e desde então carrega um peso
na consciência que tenta maquiar a todo custo com sua expressão
séria e “racional”. Todos dias, com todo mundo. No entanto, –
e aí que reside a grandeza de “O Grito...” – Lessage, num
momento crítico, decide atuar em favor de seus semelhantes,
demonstrando uma firmeza singular perante seus 'superiores' [sempre
aspas nesses casos], quando se vê diante de uma questão fundamental
de justiça trabalhista. E nesse ponto vemos que muitas pessoas nas
mesmas condições sociais agem como inimigos entre si (desunidas)
por motivos de imposição de força daqueles que controlam a
economia, ou por verem a ascensão profissional – à custa de
princípios morais – como o meio de promoverem o bem da sociedade.
O
discorrer da vida de Robert, com as memórias de seus antepassados e
o crescimento de seu filho, é permeada com dilemas comuns a todos.
Não vemos apenas um rapaz que é compelido a entrar no mundo da
indústria aos 15 anos por falta de oportunidades. O que se vê é um
ser humano com ideais e possibilidades, que ama e quer compreender o
mundo e luta contra todas injustiças. Sua vida é a constatação de
que as condições sociais precárias das famílias servem de
matéria-prima para os industriais obterem meios de aumentarem seus
lucros indefinidamente mas sem finalidade. E as desculpas para essa
produtividade vão desde a 'necessidade de vencer o inimigo', 'a
sobrevivência da fábrica', 'o 'progresso' da
comunidade',...Justificativas ocas que são prontamente desmascaradas
ao observarmos a realidade retratada do front de guerra (a fábrica).
E ao ouvirmos os discursos calcados de lógica e bom senso de Ferrari
(François Morel), o sindicalista. Discursos cuja veracidade logo é
comprovada ao observarmos como as coisas são e foram na vida dos
trabalhadores daquela fábrica.
Logo no
início da projeção, quando o jovem Robert estréia seu primeiro
dia na fábrica, ele passa diante do portão de entrada. E não
poderia ser mais claro: para quem viu muitos filmes da Segunda
Guerra, o portão lembra a entrada de um campo de concentração. O
formato, o material, e até as dimensões, fazem o espectador
estranhar aquilo. Somada às fumaças saindo das chaminés, aos
controles sistemáticos, e a falta de finalidade de tudo aquilo,
temos aí uma mensagem que ao contrário de ocultar verdades, procurá
revelá-las (por mais chocante que possa ser essas verdades).
Em suma,
“O Grito de uma Vida” é a DESMISTIFICAÇÃO do que foi, é, e
continuará sendo, a luta dos trabalhadores e da sociedade.
Trata-se
de uma análise profunda e não-maniqueísta de uma das realidades
mais marcantes de nossos tempos.
Trecho do filme (em francês):
http://www.youtube.com/watch?v=tbuS353hOxU
Ficha completa:
http://www.imdb.com/title/tt0459240/?ref_=fn_al_tt_2
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