quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O Caminho do Meio

O Príncipe Siddhartha Gautama, que ficou conhecido como Buda (desperto), legou à humanidade lições de valor inestimável. Sua busca pela iluminação se traduz em viver de acordo com princípios superiores, focando todos os pensamentos, atitudes e ações, no longo prazo. Isto é, na edificação da alma. Ao mesmo tempo, não se esqueceu do corpo e da mente - entidades abaixo da alma em termos de indestrutibilidade. Por que? 

Buda possui ensinamentos que podem potencializar
nossa vida cotidiana, sentida e vivida. Só precisamos
nos sensibilizar para eles...
O monismo é a primeiro nível de consciência que não vê matéria e espírito como entidades distintas, com origens diferentes. Ambos são formas de manifestação da substância (divina), una, indestrutível, íntegra e boa. O que distingue ambas é que o espírito é uma forma (muito) mais sutil da substância em relação à matéria, manifestação grosseira e capturável pelos nossos cinco sentidos. O liame que estabelece uma relação íntima entre essas duas aparentes antíteses multimilenares é a energia, traduzido pelo dinamismo do universo. Tudo é um vir-a-ser (divenire). 

Nossas obras são inacabadas. Nossas teses, cursos, carreiras, relacionamentos, textos, linhas de pensamento e demonstrações de sentimento...Os projetos de vida verdadeiramente significativos, permeados de valor e impulsionados por forças desconhecidas, jamais cessam. Sempre estão em curso, ressuscitando ideias em nome do ideal - jamais ultrapassado. Buda trouxe à luz esse grande aspecto da vida. Característica fundamental de nosso universo material. A transformação se dá em vários níveis e modalidades, que acaba assumindo escalas de tempo e formas diversas. Do reino físico-químico às formas de vida orgânicas simples e complexas; destas ao psiquismo rudimentar, que se manifesta pela primeira vez no homem como razão; desta para os saltos vertiginosos, alcançando a estratosfera do saber e da vivência, através dos gênios e santos; deste para além, demandando uma vida cada vez mais significativa, próxima a um princípio diretor que tudo engloba, tudo coordena, tudo ama: Deus. Neste estágio um amplexo abarca cada instante da vida do ser, tornando-o um espécime diferenciado ao grau mais alto.


Nosso jovem príncipe começou a se inquietar com a questão da vida e da morte, da dor, do sofrimento e da finitude humana desde cedo. Aos 19 anos começou e perquirir sobre o sentido de tudo isso. Por que existe a dor? Por que todos morrem? Por que essa finitude que delimita um destino fatal, a despeito de todos esforços humanos em eternizar a forma, o corpo, as teorias? Nascido na riqueza e vivendo na riqueza, com todas garantias e glórias terrenas, esse homem sentiu as limitações de tudo, e como processo natural começou a maturação interior sobre essas questões. Queria uma explicação - que o mundo não tinha formulado. Assim, aos 29 anos Siddhartha, príncipe bem casado, com uma bela esposa e filho recém-nascido, abandona seu palácio e se lança ao mundo. Por escolha própria se atirou ao desconhecido, sabendo apenas o que não queria. 

Podemos separar a vida do príncipe em duas partes antes de atingir a iluminação e se tornar um Buda.

A primeira delas foi a vida no palácio, de forma consciente (19 aos 29 anos). Aí ele, na flor da idade, dispõe de todos confortos e autoridade, toda beleza e garantias. A segunda ocorre após o abandono do lar, caracterizada pela vida ascética, negando tudo que o mundo oferecia, passando fome, dormindo ao relento e sem posse alguma, nem sequer vestimenta decente. Essa fase é mais curta, porém muito intensa e de grande valor (dos 29 aos 35 anos). Nela o (ex-)príncipe saboreia o outro pólo da vida, se tornando um pária, sem família, maltrapilho, sujo, fedido, esfomeado, recusando tudo que provêm do mundo, que é Maya (a grande ilusão) [1].

Em meios a tantas privações, meditação profunda. A dedicação para as coisas intangíveis era total. Em busca do imperecível, íntegro e infinito, Gautama se dedicava o máximo possível à entrar num estado de interiorização. Mas sempre era impedido de atingir o ponto máximo (nirvana).

"De acordo com os textos mais antigos,[40] após ter alcançado o estado meditativo de jhana, Gautama estava no caminho certo para a iluminação. Mas o seu ascetismo extremo não funcionou e Gautama descobriu o que os Budistas chamaram de o Caminho do Meio, o caminho para a moderação, afastado dos extremismos da autoindulgência e da automortificação. Em um famoso incidente, depois ter ficado extremamente fraco devido à fome, é dito que ele aceitou leite e pudim de arroz de uma garota chamada Sujata. Tal era a aparência pálida de Siddhārtha, que Sujata teria acreditado, erroneamente, que ele seria um espírito que lhe realizaria um desejo." [2] (grifos meus)

Aí ele solucionou o grande "x" da questão: os extremos não possuem a solução. Se ele pudesse traduzir o que viu, de relance, provavelmente afirmaria que estava tentando atingir o infinito e eterno através de um outro pólo do mundo. Essa é uma mentalidade separatista, negadora de todos aspectos de um grupo de finitos (ex: riqueza) - e adoradora total de todos aspectos de outro grupo de finitos (ex: miséria), caracterizado por um grau de consciência dualista. Não. Seria necessário transcender esse separatismo, abraçando o divino de tudo e todos, e rejeitando o mundano - de tudo e de todos. Eis o monismo!

Equilíbrio. Nem recusar (ascético) nem abusar (tipo médio).
Mas usar corretamente (evoluído).
Todo mundo possui uma verdade em seus discursos, ações, atitudes, valores. Até mesmo nossos piores inimigos possuem um ponto de vista a favor da vida (e vice-versa). Para ver isso é preciso se desprender do nosso Ego humano (binômio corpo-mente), colocando-nos em sintonia com o nosso Eu divino (binômio alma-espírito). Nada é mais difícil do que realizar esse salto. Mas o que é mais interessante: podemos caminhar para esse estado de consciência através dos trabalhos que realizamos no mundo. Isso inclui sociabilização, vida profissional, estudos, afetos, obrigações, etc. Perceber isso é começar a compreender o que é o Caminho do Meio [3].

Eu já li algumas obras a respeito dessa jornada. No entanto é preciso vivenciá-la. Para isso é mister observar sua vida (dobrar-se sobre si mesmo) e perceber que aspectos de sua conduta (intenções) estão em sintonia com o Nobre Caminho Óctuplo [4] - os meios para chegar a esse equilíbrio. 

Quais são esses meios?
  • Compreensão correta - compreender as coisas em sua intimidade, real significado.
  • Pensamento correto - evitar causar o mal tanto nas ações quanto no pensamento.
  • Fala correta - Pronunciar apenas o necessário, quando requisitado. Não fofocar nem mentir. Ter discurso construtivo e conciliador.
  • Ação correta - Evitar a destruição da vida em todos sentidos. Abster-se de conduta sexual imprópria. Não tomar o que não foi dado.
  • Meio de vida correto - Profissão e carreira em harmonia com os princípio de Buda. Sempre visar um trabalho construtivo, em prol da vida e evolução, seja qual meio usar.
  • Esforço correto - Abandonar estados (de mente) prejudiciais. Cultivar a serenidade da mente.
  • Consciência correta - percepção apurada do corpo, dos pensamentos, da fala. Se observar a partir dos outros.
  • Concentração correta - Foco mental. Não se abalar com as agitações da superfície. 
Usá-los irá nos redirecionar na vida. Precisamos estar sempre nos relembrando de tudo isso. Isso nos levará a ter uma aceitação melhor da realidade - por mais cruel que seja. E com isso poderemos agir de modo mais orientado, sem nos deixar abalar pelas inquietações adjacentes, pelas ameaças e pelas ofertas de recompensas. Estaremos trabalhando na profundidade do oceano, deixando o mundo perceber por si só a grande verdade: que desesperar-se na superfície das ondas durante as tempestades - e festejar a ausência das mesmas - é pura perda de tempo que drena energias para o que realmente interessa. Isso venho percebendo com a vida - e experimentando através de minha existência [5].

Meditar é um meio poderoso para seguir o caminho do meio.
Mas novamente: é preciso de dedicar a atividade.
Dedicar-se a algo implica em reconhecer seu valor.
Quando a pessoa começa a perquirir e experimentar esses preceitos sagrados, de forma séria, - como fazemos com nossas obrigações mundanas - os resultados começam a ficar evidentes. Cria-se um ciclo de realimentação positiva, que tende a nos dar uma segurança crescente no caminho seguido, oferecendo simultaneamente conselhos (implícitos) para redirecionarmos nossa busca, para que ela fique menos dolorosa. Mas não para por aí. Há outras vantagens interessantes no pacote oferecido por Buda.

Existem muitas personalidades brasileiras que admiro. Cito algumas elas com certa regularidade aqui neste espaço: V. Safatle, R. Requião, M. Tiburi, L. Boff, E. Marinho, J. Souza, E. Moreira, L. Dowbor, G. Boulos, G. Duvivier, J.P. Stédile,...Mas é importante nunca nos prendermos de forma absoluta a uma ou algumas delas. Concordar com 100% das visões, ideias e métodos de alguém pode indicar que atingimos um limite de discernimento. Por melhor que alguém seja, por mais incrível que seja seu esforço em melhorar o mundo e a si mesmo; por mais criatividade e ousadia inteligente que alguém transborde, é imprescindível percebermos as limitações dos mesmos para que o progresso jamais cesse. Porque aí reside a gênese dos cultos e rituais e repetições. 

Alguém como (por exemplo) Eduardo Marinho é um ser formidável em vários aspectos, cuja contribuição para a difusão de verdades (pouco exemplificadas e ditas diretamente) é dificilmente igualável. Trata-se sem dúvida de um ser que teve a sinceridade e seriedade de iniciar e manter sua busca pelo significado da vida. Me sintonizo com a maioria das ideias dele e admiro sua coragem em enfrentar a realidade a partir de uma posição que lhe seja mais sincera - consigo mesmo. No entanto existem pontos sensíveis em que não compartilho de sua visão. 

Vejamos alguns aspectos baseados numa síntese de sua trajetória íntima, apresentada numa bela entrevista (que recomendo a todos(as)!) [6], disponível logo abaixo.



Suas atitudes e percepções estão plenamente de acordo com o que sinto a respeito do mundo. No entanto, não concordo plenamente com ele quanto a se desvincular de todos os valores sociais, que seria condição sine qua non para atingir uma plena libertação de ser e agir.

Num trecho da entrevista ele relata a alegria dele e de sua companheira ao saberem da gravidez da mesma. Ambos saíram nas ruas para festejar, pulando de alegria. Não tinham moradia, nem plano de saúde, nem emprego fixo, nem reservas financeiras, nem nada. Ele admite a irresponsabilidade - mas justifica-se (afirmando o que eu explicitei no parágrafo anterior, entre aspas).

R. Requião é (era) senador da república. Tem posses, é bem remunerado, se veste e se alimenta decentemente. Estudou. No entanto, não o vejo como alguém que cedeu ao mundo e em troca acabou perdendo a sua capacidade de ser e agir de acordo com sua consciência - como demonstram seus discursos e seu exemplo de vida pública (e privada), de forma cristalina [7]. É claro que existem normas a serem seguidas. Ter de conviver mais perto de pessoas com intenções espúrias. Mas o seu poder de alcance é muito maior do que de E.Marinho. Tanto em termos de legislar em prol do desenvolvimento econômico, da justiça social e da cultura, quanto em fazer frente a políticas de retrocesso. Não podemos ignorar esse outro aspecto a vida.


Todas pessoas que sentem um ímpeto evolutivo realizam um trabalho edificante - seja qual seja sua forma. Essas pessoas podem ter vidas muito diferentes em termos de posses, renda, alimentação, raça, escolaridade, especialização, discurso, etc. Mas nenhuma dessas características são gritantes, isto é, constituem uma ofensa à humanidade. Requião tem quase 80 anos e não para de trabalhar. Ele faz jus a seu salário. E tem uma visão integradora. Assim como L. Dowbor, operando na frente acadêmica. E Florestan Fernandes Jr., no jornalismo. 

Boulos tem uma ação "pé no barro", combinando ideias coerentes entre si, ação social construtiva e engajada, e vivência sintonizada com o que fala. Podemos afirmar o mesmo de J.P. Stédile. E muitas outras lideranças quilombolas, indígenas, ecológicas, espiritualistas, etc. De modo que todo ser humano com envergadura espiritual realiza seu trabalho em prol do infinito, cada qual de modo adaptado à sua personalidade.

Isso é exatamente o que significa o Caminho do Meio. É reconhecer as potencialidades construtivas das múltiplas finitudes e relativos. Pessoas são diferentes na superfície. Mas se elas estiverem operando em prol de um princípio superior, que muitos às vezes nem reconhecem e (portanto nem) sabem descrever, precisamos valorizá-las e aprender com elas - mas ao mesmo tempo nos capacitar a discernir suas limitações, expô-las e procurar apresentar uma alternativa que supere essa limitação.

Não se trata aqui de limitar grandes personalidades, e sim de entrar no mesmo nível vibratória que as fizeram ser o que são: grandes almas a serviço da ascensão. 

Discernimento é a chave para atingirmos esse equilíbrio, que nos posicionará no seio do vórtice evolutivo, nos alçando a patamares inimagináveis - e assim nos capacitando a entrar na primeira fileira de operários do progresso.

Buda nos brindou com esse grandioso conceito de vida há mais de 25 séculos. 
É hora de assimilá-lo com toda intensidade. 
Os tempos exigem isso!

Referências:
[1] https://aframramatis.org/artigos/maya-a-grange-ilusao-mantida-pela-danca-de-shiva/
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Sidarta_Gautama#Partida_e_vida_asc%C3%A9tica
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Caminho_do_Meio
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nobre_Caminho_%C3%93ctuplo
[5] http://leonardoleiteoliva.blogspot.com/2018/12/um-salto-de-fe.html
[6] https://www.youtube.com/watch?v=iqFOmq_9TR8
[7] https://www.youtube.com/watch?v=e8WNXYeQnSY

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