terça-feira, 3 de setembro de 2019

Quando solidão é sinal de glória

Nunca parei para fazer as contas (mas já pensei muito a respeito):  me parece que 95 a 99% de tudo que nós falamos é dedicado à construção de um verniz, que reveste nossos verdadeiros interesses. Falamos e falamos através de movimentos de revoluteio para chegarmos ao que realmente interessa. 'Sociabilidade!', muitos responderão, justificando inúmeras horas de piadas, discursos vazios (para preencher o vazio existencial) e rituais comportamentais. No entanto nunca se parou para pensar no (real) custo de tudo isso.

Aqueles que perceberam começam a mudar os métodos. Porque refletem e interiorizam grandes verdades. Se dão conta do seguinte: de que não estão neste mundo para gozar a vida. Se há um gozo ele deve se situar em 'outras regiões'. Deve ser infinito e eterno. Deve ser sustentável, absoluto e produtivo a tudo e a todos. E que portanto a vida neste orbe é batalha incessante. Uma luta interior que exige se ver a partir de outros olhos, escutar a si mesmo e perceber a sua imperfeição. Uma verdadeira guerra que consiste em inúmeras batalhas no campo dos sentimentos, da melhoria cognitiva, na aquisição e uso consciente de conhecimentos - e na coragem de avançar quando os tempos demandam.

Quando apenas uma pessoa se recusa a seguir o rebanho,
ela é condenada. Ela se destrói no presente porque sabe
que o futuro é radiante. Cena de A Hidden Life (2019),
de Terrence Malick.
Há tempos escrevi sobre condições que permitem a qualquer um avaliar se o afastamento da sociedade é justificável. Fica mais fácil quando essa análise é de si próprio (autoanálise). Ao menos teoricamente. Aplica-se um filtro de três camadas. Três perguntas que devem ser respondidas com toda sinceridade para avaliar se o isolamento de um indivíduo é algo benéfico, construtivo - ou algo segregador, que tende a isolá-lo da corrente da Lei.

1) Existe algum sentimento de ódio em relação a alguém?
2) Há medo de alguém, um grupo ou uma ideia?
3) Há sentimento de arrogância eme relação a alguém ou uma forma de vida?

Se existe uma tendência natural do ser se afastar do mundo sem que esses três sentimentos sejam os fios condutores do fenômeno, não há um problema a ser sanado. Ao contrário, isso pode indicar que o indivíduo está iniciando um processo de ascensão consciencial.

Apesar de raríssimo, existem indivíduos que não sentem ódio, medo ou arrogância em relação a nada e ninguém. E minha intuição diz que quando esses três sentimentos inexistem, o ser começa a viver uma vida mais segregada da sociedade, se associando apenas aqueles mais próximos (família nuclear, poucos amigos, namorado(a)). Parece um paradoxo, mas se observarmos mais à fundo começamos a perceber certas coerências nessa visão.

Imagine a conversa entre dois indivíduos. Se estiverem falando (trabalhando) em um assunto profundo, que exige total seriedade e sinceridade, estará sendo formado um núcleo de consciência e fraternidade de nível atômico (em termos sociais). Quando chega um colega próximo a um dos dois (ou de ambos), o fenômeno que ocorre é conhecido: existe um nivelamento por baixo da conversa com o intuito de tornar o ambiente receptivo ao terceiro. Estamos considerando uma pessoa muito próxima a eles, considerada e estimada, mas que não é capaz de entrar na mesma sintonia em relação ao assunto tratado, de forma que sua contribuição será uma constante interferência e rebaixamento da ideia central. 

O que se nota é uma interrupção desse campo. Cessam os fluxos de ideias - iniciam-se as forças integrativas, num plano mais baixo, para o bem-estar do outro. Os dois se conformam em continuar o assunto mais tarde - não se sabe quando nem como, pois as oportunidades são muito raras.

Quando a linha horizontal do mundo cruza a linha vertical
dos princípios, gera-se uma explosão. O AS não suporta
conviver com um cidadão que está em marcha acelerada rumo
ao S. A Hidden Life (2019)
Quanto maior o número de indivíduos, maior o nivelamento. Existe uma quantidade limite que irá estabelecer uma assíntota inferior que é definida pelo tipo biológico do grupo presente. Assim se dão as associações humanas: via nivelamentos por baixo. A intenção é das melhores: manter o nível de receptividade, de integração (ao menos daqueles mais próximos). No entanto perde-se (sempre) algo com isso. Esse algo é uma ideia à espera de germinação. Um conceito a ser forjado e desenvolvido. Conceito que anseia por se tornar forma, e assim inspirar outras almas. 

O desenvolvimento natural do ser, via maturação interior (experiências dolorosas) tornam a criatura cada vez mais obediente e regrada nas tarefas do mundo. Ao mesmo tempo, sente-se uma atração cada vez mais forte rumo a questões situadas fora dos circuitos sociais, que estão longe de qualquer ritual e se prende apenas às convenções realmente necessárias para apoio do edifício conceptual a ser erigido. Essa maturação tem um ritmo e é pautada por acontecimentos. Depende da vontade do ser e de seu subconsciente. Depende do que ele vislumbra. De forma que trata-se de uma análise complexa, em que um jogo de forças se coloca em choque e forma uma personalidade tempestuosa por dentro, cheia de anseios por conquistar um mundo (aparentemente) perdido. Essas tempestades interiores parecem muitas vezes transbordar em falta de paciência. Assim compreende-se melhor as atitudes desconexas de Van Gogh, a fúria de Beethoven, a distração de Einstein, a determinação de Giordano Bruno, entre muitos outros. Nesse caso o isolamento é amor. Amor por uma perfeição perdida, que deve ser reconquistada a todo custo.

Estamos diante de questões que exigem muito cuidado para serem analisadas. Muitos acreditarão que o autor tenta justificar seu modo de vida (e de outros que admira) criando uma teoria. Mas não se trata disso, e sim de observar os fatos e dialogar com as intenções.

Para haver integração é preciso haver pontos de contato. Pré-requisitos. 

Quando alguém começa a se diferenciar a uma taxa muito alta, mudando velozmente a sua personalidade, - que passa a se fechar num circuito mais intenso, com menos locais para ir e falando apenas o necessário - nota-se o início de rupturas. Elas são pacíficas porque não existem nenhum dos três motivos citados (Ódio Medo Arrogância). Simplesmente quem outrora era próximo torna-se cada vez mais distante. As pessoas percebem que os pontos de contato que poderiam gerar encontros interessantes estão desaparecendo. As possibilidades se reduzem e torna-se uma tarefa deveras árdua tentar continuar com determinados rituais cotidianos, mensais, anuais ou mesmo esporádicos.

A pressão sobre gradativamente até desunir as almas em
sintonia. Quando os atrativos e a força não mais resolve,
o AS destrói a forma. Mas o ideal que se encarnou
ecoa na história. 
Esse fenômeno vem sendo percebido por aquele que aqui vos escreve. Apenas a partir de efeitos mais visíveis é possível começar a perceber o tipo de fenômeno profundo que existe.

Os últimos 4 anos trouxeram uma mudança de vida muito profunda. De 2015 até o presente momento o autor muda o modo como encara a vida. Se fecha em si mesmo. Não perambula mais como outrora, em busca de conversas, contatos e amizades. Não se apoia na aprovação ou reprovação de grupos - mas na afirmação de um ideal que sente palpitar em sua alma. Um ideal a ser encarnado de várias formas. Assim gera-se um compromisso sem as formalidades conhecidas. Uma vontade irresistível de fazer certas coisas toma conta de sua pessoa, tornando o fluir do tempo curto quando vê esse universo de fora - e de longo enquanto vive mergulhado nesse mundo desconhecido. Em suma: o tempo se arrasta quando se está no nível que o mundo tanto vê como diversão - e se esvai rapidamente quando se está imerso no turbilhão de pensamentos e sentimentos que criam artigos, cursos, ideias e reflexões. Sendo assim é imperioso fazer uma escolha.

Opta-se pelo caminho que mais está de acordo com a sua natureza.

Um filme de Terrence Malick que mostra esse conflito entre seguir sua individualidade (eu espiritual, consciência) em detrimento de sua personalidade (ego, forma) é o belo Uma Vida Escondida (2019).


Esse filme tem a última atuação do formidável Bruno Ganz e Michael Nyqvist.

Referências:
[1] https://leonardoleiteoliva.blogspot.com/2017/03/nulidades-raras-raridades-nulas.html
[2] https://www.imdb.com/title/tt5827916/

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