domingo, 22 de setembro de 2019

A progressão da oração

Orar é abrir a alma para Deus.

Da mesma forma que os passarinhos, quando chega a mãe, abrem sua boca por completo para receber o alimento advindo de outras regiões, nós devemos abrir a alma para vibrações mais elevadas, sintonizando-nos com Deus e sua criação, em todos os níveis, locais e momentos.

A oração é uma prática humana. Como todas práticas, ela progride à medida que a consciência expande. É preciso tempo (experiências) para adquirirmos novas perspectivas e agirmos de formas diferentes. Logo, o tempo é o fator externo que viabiliza a experiência íntima humana, de evolução. Sendo assim o fenômeno se faz com os meios compatíveis com a natureza do ser. Eis a consciência monista de tudo que existe - e além.

Quando nos abrimos não tememos. Tudo adentra em nós.
Tudo se conecta em nós e por nós. A identidade desaparece
(em importância). A universalidade domina a vida. Esta
coordena todo o resto. 
Faz algum tempo desenvolvi um ensaio sobre a progressão das escalas [1]. Aqui pretendo expor um outro tipo de progressão: o ato de orar. Trata-se sobretudo de uma ação que se torna atitude e acaba por adentrar no imo do ser, tornando-o integralmente sintonizado com fenômenos imperceptíveis. 

Quando passamos a perceber como se dá a mecânica da Lei de Deus, tudo passa a ter um significado - até nos momentos mais difíceis. Os gestos alheios, os limites de cada um, o tom de voz, as expectativas, as reações,...tudo passa a ser mais previsível. O determinismo passa a ser captado em mais fenômenos, restando assim 'espaço' para a mente perscrutar outras regiões. Com o auxílio do sentimento, caminhará rumo a novas descobertas. A experiência é fundamental.

Gilson Freire, em seu curso Deus e Universo [2], destaca a necessidade de incorporarmos em nossa vivência diária e (sobretudo) no método de pesquisa da ciência as três abordagens humanas:

1) Através da visão interior, direta, do fenômeno - intuição, inspiração.
2) Através do pensamento analítico e sistemático, por partes - razão, intelecto.
3) Através da experiência sensória, via sentidos - impressões externas, método empírico.

É preciso operar em todos os níveis, na proporção adequada. Esse tipo de trabalho aumenta ao máximo a eficiência do fenômeno evolutivo. Quando estamos no nível de descoberta inicial, procuramos nos avizinhar do fenômeno mediúnico via purificação interior. Elevar o nível moral acaba sendo tarefa titânica, cujo avanço exige um estofo espiritual fora do comum. Às vezes é preciso passar por experiências extremamente extenuantes para nossa mente, nossas habilidades e nosso comportamento (gestual, verbal, simbólico, motor, interpessoal, etc.) ganhar uma orientação sem igual. 

No início temos um fenômeno de captação que se torna um processo de transcrição. Esse é o fenômeno inspirativo, que Ubaldi soube controlar magistralmente, transcrevendo o processo vivenciado ao escrever o volume AGS [3]. Segundo o autor, - e isso sinto ser quase certeza - o processo inspirativo, que ainda nos tempos atuais chega de modo esporádico e se desenvolve desordenadamente, fora do controle, tornar-se-á fenômeno comum. O ser humano será capaz de adentrar conscientemente nesse estado, se colocando no fluxo do turbilhão de pensamentos puros, ordenados e sublimes, sentindo uma expansão de consciência paralela à expansão das possibilidades. Nos séculos futuros olharemos para trás e diremos: "Eis o grande ser que lançou as bases de tudo!". E choraremos de emoção ao agradecermos por ter pairado nesse mundo árduo de expiações criatura tão adiantada com missão de deixar registrado - através de sua vida reta e teorização sublime - as vias da evolução. Sou eternamente grato a Pietro Ubaldi por ter realizado essa tarefa sem igual.

Mas voltemos à progressão da oração.

Para falar dela antes devo dizer algo sobre felicidade. Pois é ela a meta de todos nós, assumindo diversas formas, e sempre temporária. Ela é o estado de alguém num determinado momento de sua vida. Pode ser vista como o contrário do sucesso, que é a interpretação de um indivíduo de suas realizações baseada nos valores da maioria. 

O sucesso se apóia nas transitoriedades do mundo e é dependente de um jogo de forças que se pautam em interesses e aparências.

A felicidade é uma conquista de estado interior que dura tanto mais quanto maior a consciência do que ela de fato é.

Felicidade está para ser.
Sucesso está para aparecer.

O nosso fazer (obras concretas) deve ser um transbordamento do nosso ser (essência). Assim (e só assim), ter-se-á uma atividade concreta com a força do espírito. Cada gesto no mundo da técnica, da retórica, da relação social, do desabrochar das teorias e das manifestações artísticas ganha um poder que não é possível de ser descrito - apenas admirado. Aquele que vive em outra dimensão anseia pela superação do estado de animalidade atual. Sangra, sua e chora. Sofre por formas de vida mais ordenadas e harmônicas. Mais esforçadas e ousadas. Mais inteligentes e sérias. Uma vida que sabe brincar construtivamente, sem jamais retardar as ações e iludir os outros. Chora mas se alegra com os atos simples dos outros e os fenômenos do universo. Sangra mas constrói sua consciência. Eleva-se através da busca infinita nesse mundo finito [4].

Quem é guiado pela inspiração não deixa de orar a seu modo. Pode ser sentindo uma simples sensação que arrebata a alma, extraindo lágrimas por descobrir algo muito profundo, se libertando de um pensamento nocivo. 

Podemos elencar a oração em três classes:

a) para pedir;
b) para agradecer;
c) para louvar.

Pedir está para um ato mais individualista, focado no curto prazo. Ou seja, em interesses que não trarão uma satisfação substancial e efetiva. É o modo de prece que recorremos quando estamos diante de uma dificuldade. Pedimos para que aquilo acabe logo. Ou suplicamos por algo que satisfaça nosso ego, dando um número incontável de justificativas para termos nossos pedidos satisfeitos. Nesse nível de consciência a oração é um pedido de satisfação pessoal. Ela dificilmente será atendida porque está desalinhada da Lei.

Feitos fantásticos na arte (como em outros campos) apontam
para o ato de louvar. A gratidão se expandiu a tal ponto que
deixa de existir, assumindo sua forma mais elevada.
A admiração pela Divindade invade o ser...
Agradecer revela um estado mais sublimado. A pessoa observa sua vida com certa delicadeza, observando à fundo o que ela possui, se tornou e está se tornando - no sentido positivo. Ela deixa de ligar para as mazelas momentâneas e sente a construção de sua personalidade, percebendo que as conquistas se consolidam na profundidade de suas relações e na potência de sua sensibilidade. Sente-se uma paz inigualável quando esse sentimento de gratidão, às vezes executado em forma de reverenciamento íntimo, transmudando o olhar, a voz, o ânimo, em executar as atividades do dia-a-dia com vontade renovada e criatividade ímpar. 

Louvar é a transcendência da barreira da gratidão. Ser grato ainda implica em olhar para sua própria vida e ver num nível intangível, no longo prazo, com sensibilidade refinada, o que você possui de realmente benéfico. Mas a partir do momento em que louvamos (as leis do universo, um princípio diretor universal, a unidade na diversidade,...), rasgamos as barreiras do ego para adentrar no oceano universal que irmana todos fenômenos e dá tom à evolução - em todos os níveis (de complexidade) e escala (espacial, temporal, consciencial, intuitiva,...). O ser não se identifica mais com o nome, título, memória ou história. Ele é o próprio fenômeno, o universo, o devenir incessante da forma. Sua vida pode estar destroçada sob todas as perspectivas humanas - mas sua unidade com o Todo lhe dá uma tranquilidade que atordoa as mentes rajásicas. Torna-se misterioso e irresistível. Um misto de temor e fascinação toma conta de quem observa de longe, numa distância espacial pequena - mas a anos-luz em termos de espírito...

As três formas de orar, interagindo com o Alto, são válidas. É preciso que cada um inicie no nível mais compatível com sua natureza. 

Se só se sabe pedir, que se peça com um mínimo de bom senso e apenas o necessário;
Se já se aprendeu a agradecer, agradeça as coisas realmente valorosas, que são imperecívei e fulcro de novas virtudes;

Quando se atinge a habilidade de louvar, percebe-se (finalmente) que nada mais é importante - exceto estar conectado ao princípio universal. Logo, tudo é importante...Mas com um novo olhar. O modo de agir é discreto e profundo. Potente e orientado. Lento mas certo. 

Nesse ponto Deus deixa de ser palavra e se torna sensação.

Nesse mundo, quem chega nesse estágio, certamente irá fracassar. 
Mas essa é a maior glória perante a eternidade e o infinito - o destino final da evolução.

De modo que:
Quem quiser se salvar na eternidade, deve fracassar no mundo.

Mas o fracasso é sublime e percebido pelo mundo, que treme e preserva aquele que é eliminado. Cristo nos deu o exemplo disso, ao nos mostrar os passos finais para 'sair' do AS e 'adentrar' no S. 
Um dia será a nossa vez...

Referências:
[3] UBALDI, Pietro.As Noúres: Técnicas e Recepção das Correntes de Pensamento.

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