domingo, 8 de setembro de 2019

A doença que cura

A patologia é o estudo da doença (pathos, do grego sofrimento). É a compreensão de seus mecanismos e de como ela afeta o organismo. Os filósofos gregos foram os primeiros a se debruçar  de forma sistematizada e plenamente racional sobre as causas e prevenção de doenças. Estava aí o germe para a moderna medicina. No entanto, quando incorporamos os princípios gregos - nosso apoio - às mais modernas práticas médicas, parece que algo se perdeu.  

A nação agoniza por ter sido capturada por um pensamento
satânico. Mas aqueles que estão orientados não irão deixar de
irradiar a luz divina. Luz que passa através de alguns seres.
Eles são os canais. Os espíritos que já inconscientemente se
alinharam à Vontade de Deus.
A especialização médica se ramificou em vários campos. Desde a etiologia até a patogenia. Das alterações morfológicas à fisiopatologia. Cada ramo foca num determinado aspecto da anormalidade fisiológica humana. Pode-se desejar conhecer as causas gerais das doenças; ou como se dão as alterações estruturais das células; ou os distúrbios funcionais causados por esse abalo, com um significado clínico. Sempre se busca uma abordagem que possa melhor explicar um tipo de trabalho sendo feito. Deseja-se implantar uma política pública profilática? Ou ver como retardar a manifestação de algo já inserido no organismo? Está sendo pesquisado um possível agente químico para inibir a degradação de um determinado tipo celular? As possibilidades são inúmeras. A associação entre a química orgânica, a genética, a engenharia biomédica e a psicanálise nos dá um meio poderoso para ficarmos mais íntimos das doenças.

O câncer tem sua gênese numa semente imaterial situada no campo do mistério. A razão não consegue identificar com precisão matemática qual é sua verdadeira causa. Apenas temos modelos que estabelecem associações entre mudança de variáveis. Uma quantidade de dados sobre questões relacionadas a um imenso catálogo de possibilidades. Mas esses modelos consideram como influentes a fisiologia, a genética, em larga medida. Alguns médicos já compreendem que existe uma entidade chamada mente (que não é o cérebro e todo o sistema nervoso, central e periférico). Ela faz uso do sistema nervoso para conseguir imprimir tom aos pensamentos, atitudes e ações humanos. 

O sistema nervoso é coordenador central do organismo físico humano. Sua vertente central (SNC) se preocupa com as atividades do consciente, com o cérebro; e também de equilíbrio (térmico, mecânico, metabólico, químico, etc.), com o cerebelo; e por sensações táteis, através do tronco encefálico, servindo de sensores e atuadores; e da medula espinhal, que transporta os impulsos através da coluna vertebral. 

A vertente periférica (SNP) conecta o restante do corpo até o SNC. Esse sistema se subdivide em autônomo, que estão fora do controle, ou seja, possui um automatismo cujo tom é ditado pelo subconsciente humano (praticamente idêntico para todos nós), e somático, que pode ser controlado pela mente. 

O sistema nervoso autônomo ainda se subdivide em suas vertentes: o simpático e parassimpático, que estimula e desestimula o funcionamento dos órgãos, respectivamente. Aí percebemos com clareza o aspecto da Lei de Equilíbrio transcrita por Pietro Ubaldi, na qual uma função sempre tem a sua complementar em sentido inverso, de modo a criar uma progressão oscilatória na execução de cada atividade, que para ser efetuada deve percorrer um ciclo, seja ele longo, médio ou curto.

Buda fez uma loucura. E graças a isso lançou um clarão
orientador para a humanidade. Um clarão que lançou as bases
da evolução interior e as diretrizes da vida equilibrada.
Toda essa superestrutura revela uma profunda sabedoria na construção do corpo humano, que graças a suas particularidades pode exprimir pensamentos que outras espécies não são capazes. É necessário possuir um meio à altura do patamar evolutivo atingido para que o trabalho ascensional possa ser realizado.

A presença do polegar opositor é o primeiro indício de refinamento manual: permite-nos manusear objetos de forma mais precisa. Viabiliza toda espécie de trabalho manual. Valorizando os membros superiores deixamos a tarefa de deslocamento para os inferiores. A especialização se dá com o uso adequado daquilo que nos foi disponibilizado por forças desconhecidas, que orquestram o desenrolar da vida maravilhosamente bem. De acordo com a maturação, o ser conquista o direito de vestir corpos mais sofisticados. E chegamos ao ponto em que a evolução orgânica atinge uma assíntota. O próximo passo dar-se-à num outro nível.

O maior volume da caixa craniana permitiu um cérebro maior. O aumento do número de neurônios levou à sofisticação. A psique humana dependia fortemente do substrato biológico, isto é, da correta assimilação de nutrientes, para poder se manifestar. A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da UFRJ, confirma através de modelos e fortes evidências que "se o Homo erectus não tivesse modificado sua dieta, nós não estaríamos aqui, seríamos inviáveis" [3]. Trata-se de uma questão de assimilação acelerada.

Cozinhar o alimento torna-o apto a ser assimilado, desde a mastigação até a absorção celular e excreção, com grande velocidade. Dessa forma vê-se um caráter dúplice na cocção: ao mesmo tempo que libera tempo para fazermos outras coisas (ao invés de mastigarmos durante horas), permite-nos ingerir mais calorias.

"Com o alimento cozido, economiza-se tempo para a mastigação e pode-se consumir com mais facilidade e em maior quantidade opções mais calóricas, como a carne. O Homo erectus começou a usar o fogo na alimentação entre 600 mil e um milhão de anos atrás. Análise de fósseis mostrou que ao longo das gerações houve uma redução dos dentes e sua musculatura facial, indicadores de que a força para a mastigação igualmente diminuiu." [3] 

Isso se relaciona diretamente com o desenvolvimento de neurônios. 

"Além de consumir alimentos mais calóricos em menos tempo, o ancestral do homem teve ainda a possibilidade de empregar o tempo livre (em que não precisava comer para atender às necessidades calóricas) em outras atividades, o que também pode ter colaborado para o desenvolvimento cerebral, com o aumento do número total de neurônios." [3]

Tudo isso foi dito para que o leitor possa ter noção da relação entre possibilidades fisiológicas do órgão e sua função. O órgão se desenvolve à medida que as funções que desempenham vão se sofisticando. As funções, ao se tornarem mais potentes, estimulam o órgão ou o conjunto deles a buscarem uma espécie de sublimação fisiológica fundamental. Assim vemos o íntimo fenômeno universal de complementaridade em ação. Além dessas entidades (órgão e função), em outro nível, se situa uma inteligência diretora que dá ritmo ao processo, abrindo um campo de possibilidades outrora inexistentes. 


O idealista sofre mas persiste. Ele acredita e deseja
ir até o fim na descoberta da verdade. Verdadeiro
catalisador social, aprende rápido as coisas do
mundo para dar tom dinâmico ao progresso.
Cena de Mr. Smith goes to Washington (1939),
de Frank Capra.
As alterações de uma condição a outra, de um estado a outro, quando em seu estágio inicial, podem assumir característica de anormalidade. E o ser humano, acomodado à sua fisiologia e psiquismo atuais, - aquela já consolidada, este habituado às práticas conservadoras mas evolutivamente lentas - classifica como patologia as anormalidades cuja causa ainda desconhece, classificando alguns indivíduos como doentes, quando na verdade são criaturas em vias de superação biológica. Isso ocorreu com Pietro Ubaldi durante sua fase de maturação interior (1911-1931), quando aquele homem jovem, rico, forte, inteligente e culto se viu perturbado por uma doença que a medicina não conseguiu classificar nem tratar.  O volume História de um Homem descreve de maneira muito clara a sensação do missionário de Cristo:

"Mas seu organismo era de ferro e resistiu durante vinte anos. Um médico o tratou com lavagens gástricas e, para sofrer menos, ele acabou fazendo-as sozinho, engolindo um comprido tubo de borracha. Outro, considerando vários sinais descobertos na radioscopia, havia diagnosticado uma doença no peito. O diagnóstico dependia muito da especialização do médico. Um homeopata aplicou-lhe, naturalmente, a homeopatia. Uma vez, recorreu a um famoso doutor de doenças nervosas e foi tratado como neurastênico. Não deixou escapar, durante a visita, o aspecto nervoso e agitado do médico, não compreendendo como tal sumidade não soubera curar-se a si mesmo. Escapou por pouco de cair em uma clínica onde já se projetavam tão sábias complicações, que não lhe seria fácil sair dali vivo e são" [4] (grifos meus)

"Todo o nosso tempo – também nos outros ramos da ciência, como na música, na pintura e na literatura – é uma hipertrofia de cerebralismo, de virtuosismo técnico, de mecanização, onde a luz do espírito intuitivo, sintético e criador é sufocada e extinta." [idem]

Logo, num tempo de normalização do cerebralismo, com foco no plano racional-analítico, é natural que indivíduos que estejam buscando uma forma mais profunda de se manifestar entrem em choque com o mundo e seus métodos. Existem coisas que são inexprimíveis pelo modo convencional. Adentra-se no terreno do afeto. É preciso tensionar ao máximo os modelos simbólicos, a título de fazê-los exprimirem um pensamento tão profundo que não pode ser classificado como tal, mas sim como sensação. No fundo trata-se de uma abordagem preliminar de um sentimento de tipo sublime. O indivíduo está transbordando de conceitos e ideias inacessíveis ao mundo. A mídia - nem mesmo a alternativa - trata o ponto com a devida atenção. As pessoas desconhecem o problema do conhecimento. As instituições não valorizam quem as busca. O indivíduo se vê desesperado, e é nesse desespero que será revelada sua verdadeira criatividade. Os gênios e os santos explodem com uma revolução interior, criando novos conceitos de vida, relacionando e depois fundindo. O trabalho é incessante e a mente é incapaz de acompanhar o espírito.

A sensação de ter descoberto uma realidade
d vida deixa a pessoa num estado de
tranquilidade. A luz que banha seu ser é
mais bem aproveitada. Isso se traduz em
gratidão e, em seu vértice, louvação.
Imagem de Xan Griffin, Unsplash.
Quando a intuição é fortemente sentida e a razão é incapaz de dar-lhe corpo, a patologia se dá. Infelicidade por não ter ainda uma combinação harmônica de membros (espirituais, mentais e biofísicos) que possibilitem uma ascensão orientada rumo a uma apropriação de uma verdade mais vasta. Isso é infelicidade para aquele que já se encontra na senda da evolução.

A doença do santo é a bênção de Deus.
O tormento do gênio é comprovação da imanência divina.

Gênio e neurose andam lado a lado [5], conforme diz Sua Voz:

"O gênio, porém, em sua monstruosa hipertrofia de psiquismo, está situado numa posição biológica supernormal, encontrando-se defasado em tudo e por tudo, razão pela qual é impossível estabelecer uma correspondência entre seu instinto, que normaliza o supernormal, e o ambiente, que exprime outra fase e oferece outros choques. Tal diferença de nível produz uma imensa desproporção, não permitindo nem ao menos esboçar-se uma compreensão; o desequilíbrio entre sua alma e o mundo é insanável, tornando impossível a conciliação entre sua natureza e a vida."
AGS, Cap. LXXXVII - Gênio e Neurose

Assim pode-se dizer que existem doenças de dois tipos:

1) aquelas que servem para fortalecer pontos fracos de indivíduos;
2) aquelas que revelam o descompasso entre evoluído e involuído.

Ambos tipos são salutares.  Mas enquanto a solução da primeira tem efeitos de perda de baixa intensidade, a segunda, se 'sanada', será a animalização de um ser que se encontra em vias de gloriosas conquistas. Resolver seus tormentos via medicina moderna é cessar o impulso ascensional em marcha. Deve-se fortalecer essa 'doença', tornando a pessoa apta a gerar uma reação como nunca se viu antes a partir dela, transformando-a em meio de purificação da alma, que irá gerar coisas inéditas, seja qual campo for.

Eis a doença que cura.


Referências: 
[4] UBALDI, P. História de um Homem. Disponível em: <http://www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/ubaldi_05.pdf>
[5] UBALDI, P.; A Grande Síntese.
[6]ASSAGIOLI,.R.Auto-realização e distúrbios psicológicos. Disponível em: <http://quintaldouniverso.blogspot.com/2010/09/auto-realizacao-e-disturbios.html>

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