quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Do artificialismo agradável ao realismo inexorável

A humanidade vem seguindo uma trajetória que está se consumindo a uma velocidade vertiginosa. Essa trajetória teve por princípio um tiro (=impulso) inicial. Um ato de grande determinação. Ou melhor: um pensamento. Esse pensamento nada mais foi (e é) do que um paradigma. Um sistema de crenças e valores, apoiado na razão, na objetividade, na sofisticação argumentativa, na busca pelo bem-estar. Um sistema apoiado numa forma mental que se traduz no modo de funcionamento de nossas instituições. E que alimenta elas, justificando sua existência através de desejos alinhados com a razão de existir dessas instituições - que são órgãos de um sistema.

 
Fig. 1: Quanto maior a renda (e patrimônio), maior a contribuição para o aquecimento global.
Pior ainda é saber que o grosso desse consumo-emissão não se traduz em despertar de consciência que gere 
atitudes mais sistêmicas, sínteses mais profundas e atos mais humanos. 

O mundo possui vários regimes. No campo político, eles variam entre uma débil democracia e um corrosivo autoritarismo; no campo econômico, eles oscilam entre um raso coletivismo distributivo e um cruel individualismo produtivo; no campo filosófico, eles se expressam como uma reforma íntima calma que não se intromete no mundo exterior e uma atuação sistêmica que não enxerga o espírito interior que deveria animá-la; no campo científico ele se expressa entre um dualismo que admite dois termos fundamentais e em perpétuo combate e um pseudo monismo que vê a essência numa forma particular - e não em algo que transcende todas as formas. 

Sem dúvida são tempos de perdição. De desorientação. De velocidade. De desempenho financeiro, sexual, acadêmico, social. E de reconhecimentos imediatos. De curtidas e likes e gozos. Tudo isso em combos, de preferência - como os serviços e bens. 

Não há tempo para se pensar no tempo. Não há espaço para admitir novas perspectivas, à fundo, que possam transformar a personalidade. Não há vontade de parar para pensar (de verdade). E muito menos, é inexistente a necessidade de contemplar. Isso (contemplar) virou um desperdício completo. Uma atitude apenas útil para tirar algum proveito momentâneo. Algo distante, sem significado mais profundo. Algo abstrato...

Apesar disso, eu prefiro uma definição mais profunda. Ela nos dá uma ideia mais precisa sobre o ato de contemplar:

Então eu percebo os outros de modo muito diferente. Vejo (sem arrogância alguma) pessoas perdidas - ao menos em sua grande maioria. Sinto a desorientação dos indivíduos. Sinto que o grau de consciência das pessoas só pode expressar esse desespero - de incorporar um aspecto mais profundo da vida - através de reações brutas, dizeres com conteúdo substancial muito diluído. Me preocupo com o próximo. Mas, ao mesmo tempo, pouco posso fazer. Sabe...é uma questão de quantidade, apesar disso ser fundamentalmente ilusório. 

Estamos no Anti-Sistema. O universo é trifásico: possui matéria, energia e espírito (que algumas correntes chamam de mundo físico, mental e espiritual). E todas fases são contíguas. Isto é, coexistem a todo momento, em todo lugar, se relacionando de modo muito especial a depender da consciência individual. E, sendo trifásico, devemos conviver com todos elementos e trabalhar com eles. Eis o porquê da quantidade ser importante para que a qualidade aumente sua importância.

Parece um paradoxo, mas não o é. Basta observar à fundo. Não com a lógica do intelecto, mas com a potência penetrante da intuição, na qual o indivíduo se sente como fenômeno dentro do fenômeno. O cosmos olhando par si mesmo. A humanidade se vendo sob uma perspectiva cósmica. O indivíduo conhecendo sua essência e a causa do transformismo que o anima. 

Vamos falar um pouco sobre economia, tecnologia e ecologia (o tema deste ensaio).

Da Revolução Científica - como consequência esperada - brotou uma outra revolução, seu subproduto: a Revolução Industrial. Ela foi caracterizada pelo quê? Pela transformação de matéria bruta e formas de energia estocadas no planeta através de conhecimentos científicos. A meta foi aumentar a velocidade, diminuir distâncias, comunicar de modo claro, trocando grande quantidade de informações. Trazer mais conforto material. A busca pela eficiência. 

Mesmo feito de modo desordenado e desigual, foi possível levar a muitas pessoas benefícios antes inimagináveis. Na medicina (medicamentos, tratamentos, equipamentos, medicamentos, conhecimentos), no lar (eletrodomésticos, eletroeletrônicos), nas cidades (transportes, saneamento, comunicações), na administração (distribuição, mapeamento, priorização) e por aí vai. Até mesmo surge uma nova arte, o cinema - a sétima arte. E com ele novas possibilidades. Tudo se espalha rapidamente, mesmo que de modo heterogêneo e trazendo germes de futuros problemas.

O problema disso tudo foi o seguinte: os custos de produção sempre foram externalizados. 

O que é isso? (externalização de custos)

O blog do Roberto Moraes, engenheiro e professor titular do IFF, tem uma definição que julgo muito clara:

"Este é o nome pomposo que se dá a todos os gastos que um empreendedor teria para montar seu negócio, e por vias diversas, ele consegue passar a responsabilidade para a gestão pública que reforma vias, desapropria áreas, dá isenção ou descontos de tributos, forma profissionais, etc. Os investidores absorvem custos até a fase de licenciamento, com as chamadas compensações/mitigações ambientais e/ou sociais, para além disso, tudo será sempre muito difícil. O gestor público tem que saber disto, até para compreender e administrar o processo de regulação e de demandas que tendem a surgir cada vez mais de parte a parte. O blog está se referindo ao Açu, mas as referências servem para qualquer grande empreendimento."

Fonte: [3]  (grifos meus)

Isso permite camuflar o preço real de um produto / serviço. Não é preciso dizer que essa camuflagem agrada muito ao consumidor, cujo salário é cada vez mais achatado e o 'preço' de obtê-lo, mais humilhante e tenso. Desse modo o capitalismo encontrou um modo de conseguir se perpetuar, enfrentando pouca resistência por parte da sociedade (que o sustenta).

Chegamos ao ponto em que não é mais possível manter as aparências. Os preços começam a aumentar absurdamente e não há artificialismo que consiga disfarçar. Esse artigo de Umair Haque explica melhor o fenômeno da externalização que se torna internalização de custos [1].

Agora o que vamos observar é a inserção desses custos de produção - acumulados ao longo de décadas e décadas...desde os primórdios da Rev. Industrial - serem passados para nós, consumidores, povo deste planeta. Porque a turma que possui as megacorporações não está disposto a pagar a conta. 

Jeff, Elon, Bill e Cia. não estão interessados num mundo verdadeiramente harmônico e sustentável. Eles querem fugir para Marte ou uma estação espacial enquanto nós nos digladiamos até a morte. Eles estão mais presos à ilusão. Estão presos à forma mental. Ao gozo em sua forma mais sofisticada. E nós, ao nos mantermos inertes e 'focados' em nossas pequenas ocupações, fazemos papel de idiotas. Precisamos agir rapidamente. Cada um precisa aceitar a realidade. Caso contrário, a conta será cada vez mais amarga. Preços subindo como um foguete. E com isso, manter um padrão e vida minimo será um luxo para uma parcela diminuta da humanidade. Sabe...essas coisas como plano médico, medicamentos, transporte, comida decente, energia, água potável, banhos quentes, moradia decente e coisas do tipo. Coisas que todo ser humano teria direito e poderia ser fornecido por um sistema político-econômico minimamente justo. 

As pessoas não conseguem frear toda essa loucura porque elas não compreendem o que está acontecendo de fato. O fenômeno é um mistério para praticamente todos. Mas isso não é o pior. O mais trágico é que ninguém está disposto a mergulhar à fundo nas causas dos males atuais. Porque isso demanda esforço, trabalho duro não reconhecido e - em casos extremos - sacrifício. Essa é a desgraça da espécie humana nos tempos presentes. 

Fig. 2: Lei da causa-efeito. O abuso de um lado gera a privação do outro. E vice-versa. Uma dança 
de desequilíbrio dinâmico é de superfície. É a dança da humanidade, que se desgasta para caminhar 
a passos lentos na direção evolutiva. Uma dança de equilíbrio dinâmico é de profundidade. Ela se move 
de outro modo, adentrando no mistério das coisas, para assim realizar verdadeiros feitos. Feitos eternos e 
unificadores...

E qual é a solução então?

Dou uma dica através de afirmativas que mapeiam o fenômeno:

1) As instituições se enquadram numa lógica sistêmica (todas elas);

2) Elas podem aparentemente funcionar contra essa lógica, mas no fim estão movendo palitos na superfície. A grande coordenação reside na lógica sistêmica;

3) Essa lógica tem metas: consumo, distrações, acumulação, aparências, ganhos efêmeros, forma, gozos e crescimento ilimitado;

4) E essa lógica tem temores: conscientização, simplicidade, síntese, intuição, unificação, significação;

5) A lógica por si só parece ter vida própria. Ela é coordenada pela ideologia dominante. Ideologia que expressa o nível de consciência do grosso da humanidade;

6) A humanidade, em seu baixo grau de consciência, - resultado de um descompasso entre intelecto e moral - sustenta inconscientemente essa lógica sistêmica (cuja estrutura é o sistema em si), sem conseguir relacionar seus males quotidianos com o que gera eles;

7) A forma mental baixa combate o sistema que a gerou. Como estão no mesmo nível (forma mental, causa intangível, e sistema, efeito concreto), eles se retroalimentam. Resultado: revoltas incipientes, revoluções usadas pelos poderes a seu favor, mudanças muito lentas, criação de bodes expiatórios em todos os campos, desde a política até a religião até os ramos do saber. Enquanto isso o ritmo de degradação segue a passos largos. Vamos perdendo o que mais tem importância: relações profundas, trabalhos significativos, simplicidade, capacidade de discernir, capacidade de pensar, autonomia, controle sobre nossas vidas...

Vocês estão vendo o quadro? Essa é a gênese dos males atuais. Uma causa (um pouco mais) profunda. 

Nos acostumamos a um mundo estático, em que o nível atingido é considerado o ideal a ser perpetuado - a todo custo. A ideologia do consumo, do bem-estar e dos gozos discretos, porém intensos. A ideologia da argumentação que se potencia pautada nos interesses individuais. Isso é individualismo. Separatividade. Utilitarismo de superfície. 

Precisamos de uma ciência econômica que esteja à altura dos desafios de nossos tempos. Uma economia radical (que vá à raíz dos fenômenos), sendo capaz de coordenar o processo evolutivo no plano concreto para que o ser tenha possibilidade de realizar as criações eternas, no espírito. 

Umair Haque explica um pouco sobre essa economia radical (acione as legendas em português):

Precisamos de ideais para nos movermos. Ideais que gerem ideias. Ideias que coordenadas entre si formam um quadro claro, tornando a ação da coletividade coordenada. Isso será a evolução da revolução. 

Escutemos palavras de Sua Voz:

"Vossa ciência econômica acredita justificar-se – como se partisse de um originário princípio de justiça – afirmando, com sua premissa hedonística, a presença de um tipo abstrato de homo economicus, como se, na realidade, um aspecto pudesse ser isolado do outro e cada fenômeno não estivesse vinculado a todos os fenômenos na lei universal."

AGS, Cap. 92 (grifos meus)

A ciência econômica hodierna (presente) se baseia num tipo humano puramente interesseiro. Como se não houvesse nada a mais. Nenhum interesse que escapasse dos fenômenos de trocas de bens e serviços visando o bem estar.

"Vossas ciências sociais se baseiam confortavelmente em qualquer mentira cômoda. Melhor seria enfrentardes a verdade, dizendo que, quase sempre, o homem, não apenas como uma hipótese econômica mas também na realidade, é um perfeito hedonista, como consequência da aplicação da sua natureza egoísta no campo dos negócios; que o do ut des não é um equilíbrio de direitos, mas sim uma avaliação de forças para um mútuo estrangulamento"

AGS, Cap. 92 (grifos meus)

A economia do do ut des (dou para que eu pegue algo de ti) visa o interesse imediato puro. Não se trata de um princípio que vise o bem estar de todas as partes, mas sim de uma lógica que faça uma mensuração de forças e deixe o conflito de exploração mais ordenado, mais revestido de civilidade e mais eficiente em sua extração. 

Essa lógica já passou da data de validade. As evidências abundam. É só uma questão de ver....

Ainda não está claro?Annie Leonard explica um pouco melhor:


Não é uma questão de opinião: é uma questão de pensar. De ver com clareza. De perceber o quadro todo - e não apenas fragmentos desse imenso mosaico planetário.

A privação é uma consequência do nosso abuso. Não estamos em equilíbrio dinâmico com o meio nem conosco. Do desequilíbrio interno chegamos ao desequilíbrio com os semelhantes, que em seu conjunto não conseguem se inserir como agentes responsáveis no grande equilíbrio planetário

A criação da noosfera é um fenômeno de despertar de consciência coletiva. Ela é a esfera que conseguirá coordenar as outras esferas (biosfera e geosfera). Ela se forma com a consciência global aumentando. Unificação é o passo. Mas para unificar é precisa que cada um se oriente. Faça isso por conta própria. 

Quem está mais desperto pode apenas mostrar o caminho.

Cabe à própria pessoa, presa na escuridão da ignorância, despertar e trilhar o caminho...

Referências:

[1] https://eand.co/why-everything-is-suddenly-getting-more-expensive-and-why-it-wont-stop-cbf5a091f403

[2] https://eand.co/do-americans-know-what-a-massive-ripoff-american-life-really-is-8804aa6b65fa

[3] http://www.robertomoraes.com.br/2011/03/externalizacao-de-custos.html

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