A Arte é a mais alta expressão humana do pensamento de Deus. Nossa espécie desenvolveu - baseada em seus sentidos, sensibilidade e técnica - uma maneira de exprimir ideias e sonhos muito especial. Na verdade, apenas o Homo Sapiens possui essa capacidade: de ir além do que percebe objetivamente, pelos sentidos.
A mais recente (e última) das formas de expressão é o cinema, ou a sétima arte. Podemos dizer que se trata daquela mais tecnológica e massificável. Uma faca de dois gumes, que pode ser usada tanto para acelerar um processo de sensibilização do ser humano quanto mantê-lo num estado de ignorância e separatividade. Por esse motivo é muito importante estarmos atentos à nossa própria conduta (o vigiai, dos conselhos do Cristo "orai e vigiai").
É preciso usar as coisas. Nem abusar, nem recusar, mas usar - como dizia Huberto Rohden.
Abusar é usar mal e em excesso.
Recusar é não usar nada porque não se vê aspectos úteis de algo.
Usar é dar o devido valor a algo, tornando-a meio de ascensão.
Eu uso o cinema para despertar minha consciência. É a forma de arte com que mais convivo e que mais facilmente tenho acesso. Então nada melhor do que fazê-la orbitar em torno do eixo central, foco da minha vida: ascensão do espírito.
Nos últimos anos, com a pandemia, conheci as séries. Várias delas. Séries maravilhosas, de conteúdo e valor, que expressam a vida em seu aspecto mais substancial, através de histórias simples ou grandiosas - mas todas de valor intrínseco. Uma dessas séries (e por enquanto uma das cinco melhores que já assisti) se chama Call The Midwife.
Além de ser uma história envolvente, cujo ponto de partida é baseado em relatos reais da enfermeira Jennifer Worth (Jenny) na Londres de finais da década de 1950, ainda temos belíssimos casos de parteiras e freiras, que dia-a-dia realizam um trabalho aparentemente simples, porém de valor inestimável, que causa impacto na vida de quem recebe seus cuidados - e nelas mesmas, moldando as personagens à medida que a série se desenvolve.
A trilha sonora é uma jóia à parte. Do compositor italiano Maurizio Malagnini (a Itália 'gera' criaturas muito interessantes no campo da música e das artes em geral), sentimos fragmentos do infinito à medida que escutamos a trilha sonora que dá tom a cada momento do seriado. É algo que transmite um sentimento profundo, do íntimo, além do local e das aparências; além da época. É uma música que dá tom ao drama mais agudo de cada personagem; que dá vida àquilo que a simples narrativa (por melhor que seja) não é capaz de exprimir em sua plenitude; que traduz o ímpeto, a esperança, a tristeza, a alegria e o idealismo de cada personagem através de uma determinada combinação musical.
Vale a pena ouvir o álbum (abaixo).
O ponto de partida é o ano de 1957. O bairro é Poplar (East End), em Londres. Estamos na Nonnatus House.
"Nonnatus House, midwife speaking" (Casa Nonnatus, Parteira falando)
Essa recepção será repetida por toda série. A marca registada da casa e da série - que orbita em torno dessa casa em que convivem parteiras e freiras cuja meta é uma: trazer ao mundo da melhor forma possível as crianças que nascem no região. Cada parteira que atende o telefone já revela seu ponto e sua função, como que dando não apenas informação, mas segurança, a quem está do outro lado da linha.
Estamos numa Inglaterra em que o National Health Service (NHS, o SUS britânico) mal completou uma década. O primeiro sistema de saúde público, universal, gratuito e de qualidade do mundo. E a Casa Nonnatus se insere nesse contexto de transformação nacional. Mas apesar desse avanço histórico, vemos que o quotidiano das parteiras não é nada fácil.
Há desafios a cada passo. Cada dia novo, cada parto a ser feito, traz um risco, uma possibilidade, e como produto final uma experiência - que pode se arrastar por anos na mente e no coração das parteiras e das freiras, moldando lentamente a percepção de mundo.
Cada personagem traz uma personalidade muito especial. Não há nada idêntico. Cada tipo possui sua história de vida, seu modo de perceber as coisas, suas crenças e valores, suas virtudes e vícios, suas inclinações e repulsas. Mas todos estão relacionados profundamente, como uma grande família, por meio de um objetivo de profissão, que é justamente melhorar a qualidade de vida das pessoas através da medicina e da humanidade - os atos e gestos simples que fazem toda diferença.
Jenny Lee (Jessica Rayne) é a parteira principal durante as três primeiras temporadas. Junto a ela temos Trixie Franklin (Helen George) e Cynthia Miller (Bryony Hannah), atendendo as pacientes durante o dia e alternando plantões durante a noite. Trixie pode parecer fútil pela sua aparência, mas nela jaz um ser de sensibilidade e dedicado ao trabalho, com princípios. Ela é expansiva e tem facilidade em lidar com todos. Já Cynthia é mais reservada, miúda fisicamente porém enorme em sabedoria das coisas (como fica revelado numa conversa com a Irmã Evangeline numa temporada mais à frente).
Avançando um pouco (1° epsiódio) chega Chummy Browne (Miranda Hart), uma moça desajeitada e fisicamente grande, porém de enorme coração e doçura ao lidar com tudo e com todos. E também muito competente em seu serviço, como demonstram as primeiras cenas. Sua presença é reconfortante e ela é o elemento que busca animar quando tempestades psíquicas se avizinham.
Como o ambiente que alberga essas enfermeiras especiais é um convento, a presença de freiras é presumível. E elas (freiras) são igualmente interessantes e fantásticas em sua constituição psíquica e comportamentos. A maioria delas é senhoras, exceto por uma: a Irmã Bernadette. Comecemos por ela.
Após a Irmã Julienne (Jenny Agutter), a chefe, responsável pela direção da Casa Nonnatus, Bernadette é a mais calma. Ver-se-à que ambas possuem uma afinidade em certos pontos. Além de sua paciência, Bernadette é meticulosa e ponderada e jovem. Sua juventude, beleza e propósito de vida, a colocam em dúvida a respeito de sua vocação. Isso fará com que ela se transforme, revelando um aspecto central da natureza humana: a busca pela realização de sua missão no mundo.
Julienne é ponderada, mitiga conflitos e sempre está trabalhando árduamente. Ela é o modelo perfeito de chefe, que exerce autoridade sem ser autoritário. Que convive lado a lado com seus subordinados. Se diverte e se entristece junto aos dramas e alegrias de cada um. É a voz da razão e da sabedoria. É conservadora até o ponto em que não trava completamente o dinamismo progressista dos outros. É exemplo e equilíbrio.
A Irmã Evangeline (Pam Ferris) é muito competente, porém durona. Direta como uma flecha, ela sempre vai direto ao ponto, resolvendo questões - mesmo que às vezes com falta de delicadeza. Seu passado foi difícil e isso explica sua personalidade inalterável, porém muito segura. E essa segurança que gera confiança em suas pacientes, tornando-a um exemplo.
Por último, mas não menos importante, temos a querida Irmã Monica Joan (Judy Parfitt), a anciã da turma, que foi uma das primeiras parteiras qualificadas na Inglaterra. Seus mais de 80 anos não a impedem de proferir exclamações muito certeiras, ou afirmações muito profundas, ou mesmo perguntas muito importantes. Ela não atua como parteira devido à sua idade avançada. Considerada senil (ao menos em parte), ela se aposentou e ficou ao cuidado das irmãs. Muitos dos alívios cômicos da série vem através dela. Seus interesses por livros, por doces e temas filosóficos, caracterizam sua personalidade. Ela é excêntrica, fora do comum, fora do padrão. Mas é justamente isso o que a torna especial. Seu comportamento revela a beleza dessa fase avançada da vida, em que pode-se falar mais abertamente e ao mesmo tempo viver mais sinceramente.
Todos personagens estão centrados nos nascimentos. A vinda de seres ao mundo. A encarnação de almas que devem evoluir na matéria, através de experiências (às vezes muito árduas, como será visto em muitos episódios), para de alguma forma espiritualizar um pouquinho mais o mundo. Através de gestos, atos, contribuições e trabalho. Através de expansão de sua sensibilidade e aprofundamento de sua compreensão das coisas.
Mas a morte também faz parte da vida dessas profissionais. E é através das idas (para o 'outro lado') de certas pessoas que nos sentimos um com os personagens. Desenvolve-se o senso de empatia. A dor do outro é a nossa dor. E isso nos envolve com a série. É a vida real, sem idealismos ilusórios (=fantasia), mas guiada por um idealismo de profundidade, que se manifesta de modo muito discreto na superfície.
A partir de cada episódio o espectador é encorajado a fazer pequenas investigações a respeito de várias questões abordadas: a função da medicina, o aborto, a criação dos filhos, adoção, doenças, consequências da falta de conhecimento sobre coisas, nascimentos problemáticos, violência doméstica, aceitação, efeitos da guerra, formação de casais, convivência com o outro, culturas distintas, métodos distintos, influências do mundo da política, da economia e da tecnologia, entre muitos outros.
Adicionalmente a tudo isso, a série vai se dinamizando, mantendo seu ritmo com a entrada e saída de personagens - por motivos mais ou menos agradáveis. E as novidades são muito enriquecedoras. Personagens muito singelas, humanas e cheias de vida.
Comentemos brevemente sobre algumas delas.
A jovam Barbara (Charlotte Ritchie) tem os modos recatadas de filha de pároco. Mas muito determinada em seu ofício. Uma pessoa idealista na medida. Alguém que não chama a atenção mas cuja ausência seria sentida de forma muito forte pelos outros.
Patsy (Emerald Fennell), que chega com pouca experiência com partos, mas muito eficiente. Uma moça com inclinação sexual diferente, que ama de outra forma uma pessoa que não poderia ser amada (numa sociedade dos anos sessenta, fortemente conservadora).
Phyllis (Linda Bassett), mulher de certa idade, muito metódica e experiente. Solteira, passando uma impressão inicial de pessoa fria e distante. Robótica. Mas à medida que os acontecimentos se dão, a sua personalidade se revela e observamos uma pessoa muito próxima às suas colegas.
Há outras, maravilhosas, como as enfermeiras Lucille Anderson e Valerie Dyer. Deixo de falar para não me estender, mas a presença de ambas é de importância vital para a série.
Mas talvez o mais interessante (para mim ao menos) seja a gênese e a trajetória do casal dos Turners. Uma família que começa com um pai viúvo (Dr. Patrick) e seu filho (Timothy), que vai aumentando e se moldando à medida que a vida apresenta as circunstâncias adequadas. E o ponto de partida reside justamente em Shelagh, uma mulher que muda sua vida abruptamente porque sente que seu destino é criar uma família.
Os pacientes possuem igualmente seu valor. Alguns deles ficam presentes por um certo tempo, se relacionando com esse devenir dos personagens principais. Pessoas ricas em histórias e fortes em valores.
São almas que se influenciam e se reforçam. Almas em evolução, que revelam a essência da vida através das vindas (partos) e idas (mortes). Almas simples, sinceras e determinadas.
Abaixo, a trilha In the mirror, que revela a transformação de uma das personagens.
Referências:
[1] https://valkirias.com.br/call-the-midwife-e-o-olhar-multidimensional-sobre-as-mulheres/
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