domingo, 9 de dezembro de 2018

A Improdutividade da Vivência na Era da Produtividade das Sensações

Estou terminando de ler um livro muito interessante de um economista de 75 anos chamado Ladislau Dowbor: A Era do Capital Improdutivo. Não se trata de um livro contra o sistema financeiro - e sim a favor de fazê-lo operar em prol da economia, cujos fins devem ser o desenvolvimento social, com inclusão dos mais vulneráveis, para que todos possam contribuir para si mesmos e a sociedade - e a sustentabilidade ambiental, para a sobrevivência da espécie. Trata-se de uma obra informativa, que visa apresentar conceitos centrais da economia - e em particular das finanças e dos bancos: sua função e modo de funcionamento.

O primeiro capítulo destaca a dimensão dos desafios. Esses desafios são, de forma geral, econômicos, sociais e ambientais. O primeiro se relaciona às tecnologias, ao conhecimento (especialmente na forma científica) e aos processos produtivos; o segundo se relaciona à distribuição de recursos (tributação, investimentos públicos, filantropia, etc.), políticas de "gastos" sociais (saúde, educação, segurança, etc.), infraestrutura (estradas, saneamento, aeroportos, fontes de energia, etc.) e cultura; o terceiro se associa à questões infra-espécie (humana) e ao sistema-Terra: ciclos biogeoquímicos, atmosfera (gases estufa), acidez dos oceanos, equilíbrios das espécies, biodiversidade, recursos, poluição, fertilidade dos solos, entre outros.

A Figura 1 (extraída do livro) mostra a tendências dos últimos 250 anos.

Figura 1: Tendências demo-econômicas-ecológicas desde o
advento da Revolução Industrial (1750).
Fonte: DOWBOR (2017)
O que se percebe é o seguinte: tudo cresceu - e continua crescendo - vertiginosamente. Extinção de espécies, perda de de florestas, degradação da camada de ozônio, PIB,...O problema: vivemos num planeta finito. Logo, os recursos são finitos. Da mesma forma, a capacidade da atmosfera absorver certos gases e não responder (variações de temperatura) é limitada. Assim como a coexistência (cruel ou não) de espécies garante um equilíbrio natural, sudável que, se quisermos alterar, devemos ver um modo de contrabalanceá-lo com outras ações. É preciso perceber o funcionamento da Terra e da Vida para adequarmos nossos processos de uso a esse substrato vivo, que possui uma inteligência instintiva (plantas, animais) ou física (matéria e energia).

O PIB (Produto Interno Bruto) é a soma dos fluxos de riqueza produzida por um determinado país (ou região ou cidade). Ele quantifica o valor monetário das atividades econômicas. Tudo inserido no circuito econômico é considerado: fabricação de automóveis, construção de casas, aulas, experimentos, venda de comida, eletrodomésticos, pacotes de viagens, tratamentos e consultas médicas, prostituição, venda de armas, engarrafamentos, acidentes,...Como podemos perceber, não é possível dizer que quanto maior o PIB, mais desenvolvido um país é. Mesmo porque muitas atividades "boas" não o são necessariamente: um setor automotivo pujante pode ser responsável por um alto PIB - e seu crescimento. Mas isso pode estar ocorrendo às custas da sociedade, que perde qualidade de vida em engarrafamentos, poluição, acidentes e ineficiências inerentes ao modo de transporte individual motorizado. E só estamos começando.

Outra observação mais atenta revela que um PIB alto pode não significar que a sociedade seja rica (ou tenha condições de sê-lo). Um país como a Índia possui um PIB muito alto (9ª posição, [1]), mas há muitos pobres e miseráveis por lá - apesar de certos avanços. Isso porque, dentre outros fatores, a população é muito alta: dividindo toda essa riqueza pela população teremos o PIB per capita. Nesse a Índia está na 150ª posição [2]. Então podemos ter um país de PIB muito inferior ao indiano (ex: Portugal, 45ª) mas com mutio mais riqueza por cidadão (36ª). Essa é a segunda observação.

Outro aspecto relevante é a distribuição dessa riqueza. O PIB per capita só diz a média. Podemos ter um país de médio ou até alto PIB per capita, mas com muita desigualdade (isto é, muitos miseráveis e poucos riquíssimos). Essa distribuição de riqueza é um dos parâmetros (mas não o único) capturado pelo Coeficiente de Gini [3]. Um exemplo clássico é o Brasil, país com alta concentração de renda que vinha apresentando redução de desigualdade, e que passa a ter um aumento da mesma (2015 em diante) [4]. A Figura 2 retrata a ruptura da tendência de queda de desigualdade. Queda essa que vinha sendo feita de forma muito lenta, - muito aquém do necessário - mas no entanto de forma gradual e consistente.

Figura 2: Nível de desigualdade no Brasil de 2002 a 2017.
Fonte: Oxfam (2018).
Um pouco mais à frente, Dowbor esclarece que não há motivos para a miséria, inclusive no Brasil, país que cujo PIB per capita coincide com a média global:  "Não há nenhuma razão objetiva para os dramas sociais que vive o mundo. Se arredondarmos o PIB mundial para 80 trilhões de dólares, chegamos a um produto per capita médio de 11 mil dólares. Isto representa 3.600 dólares por mês por família de quatro pessoas, cerca de 11 mil reais por mês. É o caso também no Brasil, que está exatamente na média mundial em termos de renda. Não há razão objetiva para a gigantesca miséria em que vivem bilhões de pessoas, a não ser justamente o fato de que “nenhum quadro de referência emergiu para guiar as políticas e as práticas”: o sistema está desgovernado, ou melhor, mal governado e não há perspectivas no horizonte." [5] (grifos meus)

Através de dados objetivos o autor demonstra que a miséria não se deve à carência de ciência ou tecnologia, nem de processos. Ela é pura e simplesmente produto de uma (péssima) política pública, da falta de regulação do sistema financeiro e da - eu diria - falta de informação e consciência de ampla faixa de pessoas. Este último caso se torna grave para aqueles que possuem os recursos, o tempo, a formação - e nada fazem para alterar o estado das coisas. Portanto, o peso sobre minha cabeça é enorme. Mas não posso obrigar outros em situação semelhante ou mais alta de fazer o que devem: eles devem despertar por conta própria.

A porta da consciência se abre por dentro, não por fora - como já afirmou o sábio professor, escritor, filósofo e teólogo Huberto Rohden.


Figura 3: Pirâmide que mostra concentração de
riqueza na forma de patrimônio.
A pirâmide da Figura 3 foi extraído de fontes muito confiáveis, não vinculadas a partidos, religiões ou grupos. Ela dá uma ideia da situação. Se atentarmos para o topo, percebemos que 0,7% da população mundial possui aproximadamente 45% da riqueza do mundo. Aumentando esse 0,7% para 1%, englobando um pouco mais, chega-se a valores próximos a 50%. Traduzindo: o 1% mais rico do mundo possui mais dinheiro que os 99% restante. E essa concentração vem se tornando cada vez mais pronunciada. O que vemos por todos lugares - queiramos ou não admitir - é uma profunda falta de perspectiva contida em cada olhar. As pessoas deixaram de acreditar em grandes ideais, de incorporar grandes projetos, de crer no semelhante. Isso tem implicações profundas. Na verdade trata-se de algo muito grave.

Estamos num processo de realimentação positiva, na qual quanto mais restrito ficam as condições de plasmar o mundo, mais deixamo-nos conduzir pela lógica mórbida, velha, que nos (des)orienta. Compramos, fofocamos, fazemos piadas, direcionamos as responsabilidades para os outros, "nos garantimos" hoje, esquecendo do amanhã, que sempre se torna uma repetição do presente momento - só que cada vez mais restrito, absurdo e sufocante.

Os capítulos 2 e 3 explicam de forma cristalina o que é de fato o poder corporativo. Com esse livro, finalmente podemos dar uma forte sustentação empírica para o que Noam Chomsky vem falando há décadas: o poder corporativo global é a grande ameaça à espécie.

O mundo do poder, delirando com o fracasso de um modelo político-econômico, começa a intensificar a lógica neoliberal, que já estava desenvolvida em germe - e que não fora aplicada com toda intensidade devido a uma força que, apesar de inúmeras incoerências, levantava a bandeira da igualdade social. Assim começa a grande ilusão do capitalismo.

"Em 1989, a queda do muro de Berlim foi vista como o triunfo do capitalismo sobre a economia estatizada. Parecia, assim, que a doutrina liberal era a mais adequada para impulsionar a economia e até mesmo para produzir bem estar social para a população, uma vez que os resultados do chamado “socialismo real” nos países da Europa Oriental foram desastrosos. Em 1999, o então Presidente dos EUA, Bill Clinton, membro do Partido Democrata, sancionou a revogação do Glass-Steagall Act, aprovada pelo Congresso, no qual o Partido Republicano detinha maioria apenas no Senado. Os EUA e o Reino Unido começaram uma “disputa” de quem regulamenta menos (HUTTON, 2008, p. 8). Tratava-se de aplicar, no campo jurídico, a ideologia neoliberal: o Estado deveria intervir o mínimo possível na economia, seja como regulador, seja como fiscalizador." [6] (grifos meus)

Esses movimentos provavelmente foram uma das principais causas da crise financeira de 2008. O fato do mundo financeiro operar com base num PIB virtual que excede em quase dez vezes o PIB real leva a distorções imensas na economia. Não é sustentável sob nenhum ponto de vista operar como intermediador financeiro - isto é, não se trata sequer de intermediar operações comerciais de bens e serviços, e sim operações de transmissão de títulos, na forma de dados eletromagnéticos.

Um filme que entra em nuances sobre a cultura corporativa - em particular, a financeira - e revela como se comporta o poder quando se apercebe da gênese dos monstros (criados por eles mesmos) que demandam um acerto de contas com a economia real, é Margin Call [7].



É particularmente esclarecedor uma das cenas, quando o chefe dos chefes (Jeremy Irons) está conversando com um dos grandes gerentes (Kevin Spacey) de uma dessas corporações. São listadas todas as grandes crises pelas quais o capitalismo passou. Desde meados do século XVII até a última do século XX. De modo que ele está dizendo: "Não se preocupe, o sistema sempre vai existir e nós continuaremos por cima, sem ninguém nos incomodar. Só precisaremos fazer um papel de preocupados, repassar os custos (demissões), a responsabilidade (governos, povo) e garantir que a ideologia dominante permaneça intacta no imaginário das pessoas (neoliberalismo)." E de fato, o que se viu desde 2008 foi a continuidade desse modelo econômico, com essa lógica financeira ainda no domínio.

Começa a se preparar uma nova crise financeira? Pelo que percebo, sim. É natural desse sistema entrar em crises constantes. E sair delas. Mas cada vez pior - ao menos nos últimas décadas. Com uma sociedade cada vez mais pobre, limitada, raivosa; e um planeta cada vez mais reativo, gerando desequilíbrios muito sentido pelas pessoas - especialmente as mais vulneráveis.


O livro de Dowbor explica e explicita os paraísos fiscais, os inúmeros juros extorsivos praticados no Brasil: do comércio, do crédito consignado, do cheque especial, do cartão de crédito, etc. Todos muito além dos limites da civilidade. E demonstra, por meio de dados, que é possível banco ter lucro com taxas de juros extremamente baixas, como em países europeus.

Não é que a o mundo desenvolvido - e em especial a Europa Ocidental - seja um reino de paz e justiça social. Mas ao menos existem diversos mecanismos jurídicos, uma regulação estatal que funciona em certo grau, uma tributação eficiente, progressiva, que taxa o capital improdutivo, e uma proteção social que impede a geração exponencial da pobreza miséria.

No Brasil, toda tentativa de se construir um Estado de Bem-Estar mínimo, inclusivo; e Políticas Públicas de infraestrutura aliadas a uma visão desenvolvimentista, foram rechaçadas rapidamente: Getúlio Vargas suicidado, João Goulart golpeado, Ernesto Geisel retirado (sim, até ele, mas de forma muito suave...imperceptível*), Lula preso e Dilma afastada. Não se trata de pregar santidade de todos, mas de revelar o elo comum entre cada qual desses governos, que era estabelecer um país minimamente soberano, com potencial de inclusão sem romper com a lógica econômica dominante.

Diversas armadilhas são arquitetadas pelos bancos. Quando se trata de empréstimo, destaca-se os juros mensais. Juros que são compostos! Imagine um juro mensal de 2% ao mês e outro de 6% ao mês, rodando ao longo de (digamos) 24 meses. A diferença não é 1:3. Está mais para 1:5 (60,8% versus 304%). Mas o pobre (a maioria do povo, que foi sabotada educacionalmente, dentre outras coisas...) não faz a menor ideia desse mecanismo de juros compostos. E o banco, sabendo disso, ganha vantagem.
Tabela 1: Taxa de juros para pessoa física em 2016.
Fonte: DOWBOR (2017).

Não apenas temos um sistema educacional capturado pela lógica de escravização humana, como muitas instituições omitem informações e não explicam como as coisas se dão. Isso não é apenas antiético. É anti-cristão. Não se trata aqui novamente de roubar para garantir sua sobrevivência. Se trata de espoliar uma massa de indivíduos para garantir margens de lucros crescentes. Dinheiro que não volta para o governo (porque é sonegado), que não gera empregos (devido a automação), que não é investido produtivamente (porque isso demanda tempo e esforço). É dinheiro por dinheiro. Na sua pior versão. A Tabela 1 mostra a desproporção entre ver juros em seu formato mensal e seu formato anual.

Muito mais há de se falar em termos de especificidades. Basta lembrar que o montante desviado em sonegação ultrapassa dezenas de vezes a receita anual da ONU para implementar seus programas de erradicação de pobreza em suas várias vertentes:

"As 28 corporações financeiras classificadas no SIFI (Systemically Important Financial Institutions) trabalham cada uma com um capital consolidado médio (consolidated assets) da ordem de 1.82 trilhões de dólares para os bancos e 0,61 trilhão de dólares para as seguradoras analisadas (p.11). Para efeitos de comparação, lembremos que o PIB norte-americano é da ordem de 15 trilhões de dólares; o PIB do Brasil, 7ª potência mundial, da ordem de $1,6 trilhões. Mais explícito ainda é lembrar que, de acordo com os dados de Jens Martens, o sistema das Nações Unidas dispõe de 40 bilhões dólares anuais para o conjunto das suas atividades. (GPF, 2015)". Fonte: [8]  (grifos meus)

Não à toa a miséria persiste em nosso planeta.

Enquanto as pessoas não enxergarem que o cerne da questão está mais próximo dessas questões - e não de prender fulano, remover beltrano ou destruir ideologias praticamente inexistentes no mundo concreto - a mudança não virá. É mister gerar uma massa crítica.

Quem sabe de tudo isso tem o dever de iniciar algo, independente dos resultados. É preciso trabalhar em prol da salvação da espécie, da forma que se puder.

Vivemos num mundo de pseudo-ciência e pseudo-lógica. Isto é, a partir do momento em que a ciência e a racionalidade entram em confronto com instintos fortíssimos, passamos a moldar os fatos ao invés de aceitá-los. Praticamos de forma primária e precária o que a grande mídia faz de forma pervasiva e inteligente: manipular as massas em prol da lógica financeira. Não à toa a sociedade (os 99%) é impotente para transubstanciar efetivamente o mundo. É mister antes fazê-lo em sua mente.

Muito mais há a se dizer - mas prefiro deixar isso para o Ladislau Dowbor. Assim fica registrada aqui a dica de uma obra que visa explicar como o mundo está funcionando e quais as alternativas (sim, ele dá uma série de caminhos para sairmos do buraco).

Para quem desejar se aventurar, boa leitura, bons estudos e...boa mudança!

Referências:
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal_per_capita
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Coeficiente_de_Gini
[4] OXFAM: País Estagnado. Vários autores. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/relatorio_desigualdade_2018_pais_estagnado_digital.pdf. 
[5] DOWBOR, L.; A Era do Capital Improdutivo, p.22.
[6] SILVA, B.M. A Desregulamentação dos Mercados Financeiros e a Crise Global: Lições e Perspectivas. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/191800/desregulamentacaodosmercados.pdf
[7] MARGIN CALL: O Dia Antes do Fim, 2011. Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8gYR2-ktvxg. Acesso em: 09.12.2018.
[8] DOWBOR, L.; A Era do Capital Improdutivo, p.59.

Observações:
*Para mais detalhes sobre essa questão recomendo assistir a seguinte entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=e-api3qALbY

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