sábado, 15 de dezembro de 2018

Hipatia: a mulher que afirmou o porvir

O progredir da humanidade é lento. Ele indica que existem coisas a serem melhoradas. Essa melhora implica em retificação. Esse processo de retificação é doloroso - deveras. Porque implica em plasmar o interior da própria substância. E esse processo é individual. Ninguém pode dar o passo substancial a não ser a própria pessoa que sofre esse mal (da ignorância). Mesmo que se recorra a estímulos externos: conhecimentos, experiências, informação, títulos, relacionamentos, bens, serviços, etc. Estes podem auxiliar - jamais resolver por definitivo.

A ignorância se manifesta como um câncer maligno. A taxa de difusão é exponencial. Ele cresce em todos sentidos, justamente por ser desordenado (desorientado). E tem uma facilidade muito grande de se consolidar. Por que? Justamente por agir na superfície. As aparências, se manipuladas conforme a natureza do público que as percebe, podem adquirir uma força que torna os próprios sujeitos que recebem a narrativa ferozes crentes de estar com a verdade absoluta - e assim trabalham em prol de planos, maquiavélicos e astutos ao último grau.

Rachel Weisz interpreta a grande
cientista. Seu jeito é adequado.
Fisionomia, discurso e gestos de
acordo.
É difícil para seres que atingiram uma maturação evolutiva inicial compreenderem o porquê de muitas barbaridades ocorrerem de forma tão fluída, sem resistência tremenda das pessoas. Mas se avançarmos um pouco mais (evolutivamente), estaremos diante de um rol de criaturas muito singulares, que não apenas imprimiram no mundo exemplos de heroísmo, genialidade ou vivência, mas que - por causa disso - transformaram-se em seres fora de série. 

Hipatia foi possivelmente a primeira filósofa, historiadora, matemática e professora de que se tem reconhecimento seguro e detalhado. Ela estava muito à frente de seu tempo em vários aspectos. E justamente por isso foi assassinada de forma cruel [1]. Essa contribuição teve talvez como causa inicial o seu pai, Teón de Alexandria, astrônomo e prolífico autor, que permitiu a iniciação de sua filha na área. Mas sua filha foi muito além.

Há indícios de que Hipatia era muito admirada pelos seus estudantes. Era uma pessoa muito equilibrada e avançada para seu tempo. Não tinha preconceitos. Aparecia na assembléia dos magistrados - pois devia crer que é preciso todos participarem da vida pública. Tinha uma habilidade ímpar para falar em público, além de uma sabedoria excepcional, segundo o historiador Sócrates Escolástico [1].

O filme interpretado por Rachel Weisz [2] dá uma ideia da situação caótica de Alexandria no final do século IV. O cristianismo, que até então se espalhara com ímpeto amoroso em meio a dores infindáveis, começava a se espalhar furiosamente. O reconhecimento da nova religião pelo Império Romano colocou o ideal à serviço das engrenagens telúricas. O mundo do poder se apropriava dessa nova visão de mundo para dela fazer o melhor uso possível. Era o fim de um tipo de dominação e o início de um novo, mais adaptadas aos novos tempos.

Um dos feitos mais impressionantes relatados no filme é a sua descoberta no campo da astronomia, poucos dias antes de sua morte cruel. Havia um movimento errante nos astros: estes tinham órbitas que, constatadas pelos sentidos das pessoas na época, não condiziam com as trajetórias perfeitas, circulares, mentalizadas pelos pensadores da época. Havia alguma coisa que não se encaixava. E para descobrir isso foi preciso uma pessoa muito inquieta e disposta a superar o senso comum (de que tudo criado obedecia a formas perfeitas, rigidamente, como o círculo). E foi uma mulher que deu o passo inicial para a consolidação dessa descoberta. Percebeu que a proximidade (engradecimento) e afastamento (diminuição) do Sol com a Terra se dava pelo fato da órbita ser elíptica. O que justificava as constatações sensórias.

Uma mentalidade avançada já sofre nesse mundo. Imagine
se a "dona" de tal mentalidade for uma mulher...
16 séculos antes...
Outro ponto: a filósofa percebeu que a Terra poderia estar em movimento ao redor do Sol - e não parada com todos astros orbitando ao redor. Um experimento num barco conduzido por ela evidencia que essa possibilidade era real, apesar de não constituir prova.

Se estamos nos movendo num trem a uma velocidade constante e lançamos uma bola para o alto, ela irá subir e descer na vertical (para nós). Mas igualmente, em relação ao solo (fora do vagão), ela estará em seu movimento retilíneo. Mas como o passageiro (nós) tem esse movimento em comum com a bola, ele não o perceberá. Hipatia intuiu isso e começou a esboçar a possibilidade de estarmos em movimento.

Foram necessários 12 séculos para que surgisse alguém para comprovar de forma a questão da órbita. Este alguém era Kepler, famoso astrônomo que estabeleceu as 3 leis com seu nome [3].

A dinâmica histórica é impressionante. A História é viva. Ela está em transformação perpétua - mesmo para quem a viveu, seja indivíduo ou corpo coletivo. À medida que nos distanciamos de um evento que nos causou abalo, vamos ganhando uma nova perspectiva do mesmo. Ela se refaz a cada período específico. Assim o que ocorreu, que afeta nosso agir indiretamente, vai se plasmando. E com isso nossos planos, nossa filosofia de vida, nossas metas, mudam discretamente. É uma questão de perspectiva.

Hipatia com o pai, debruçados sobre um problema.
Para um homem chegar a tal posição, era admirável.
Para uma mulher, incrível.
O passado nos influencia porque ele constitui o substrato de quem somos. O subconsciente está para o passado como o consciente está para o presente. Eles não são, mas implicam. Hipatia já era espírito altamente adiantado, em todos termos. Sua habilidade comunicativa, sua ousadia inteligente, seu equilíbrio e suas múltiplas capacidades intelectuais (filosofia, história, matemática, astronomia), aliadas à sua fisionomia bela e serena, lhe garantem um lugar de destaque no rol das grandes personalidades do mundo antigo. 

Mil anos à frente, sofrimento presente iminente. Devido a disputas de poder (político e religioso), a grande mulher foi vítima de morte cruel. Seus algozes foram varridos pela história e estão milênios atrás, a nível de minério. Ela, que viveu o tormento do gênio e teve a morte do santo, se encontra em planos evolutivos inimagináveis, mesmo para você e eu. 

Referências:
[1] https://www.bbc.com/portuguese/geral-46501897
[2] https://www.youtube.com/watch?v=OD2VWJ97Fxg
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Kepler

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