sábado, 15 de dezembro de 2018

El Cid: O mais Nobre dos Súditos

O Cinema possui uma função biológica importante. Dentro do rol das Artes, é a última a nascer. É a Sétima. Sétima Arte. É mercantilizável, massificável, plastificável além da conta. Não é, como o Teatro, a arte do ator, mas antes a do diretor. O cineasta é o centro nervoso que desenvolve uma obra cinematográfica, se articulando intimamente com o roteirista, aquele que gera a alma do filme, o compositor, que pincela a trilha sonora, dizendo o indizível, e edita o filme, dando-lhe a forma que mais próxima se encontra de sua imaginação. É como um escultor, que desbasta o mármore para obter seus anjos. 

Cineastas e elenco de grande envergadura sempre houveram. E graças a tecnologia cinematográfica, pôde-se criar e repassar ao mundo obras fantásticas. Filmes que versam sobre personalidades fora da curva, acima da normalidade. Casos de super-normalidade, como diria o místico da Umbria. Assim aqueles que anseiam por uma fonte de inspiração podem ter algum combustível espiritual à altura de seus anseios mais íntimos e fervorosos. Podem encontrar algo que lhes dê significado, e revele os aspectos mais substanciais daquelas grandes personalidades que pontuam nossa história multimilenar. 

Charlton Heston como El Cid.
Em poucos anos, inúmeros papéis
grandiosos. Moisés, Judah Ben-Hur,
El Cid,...O ator tinha jeito para
incorporar personagens sérios e
sinceros.
Nos anos 50 e 60 Hollywood produziu um conjunto de filmes épicos à altura de sinfonias de Beethoven, noturnos de Chopin, pietàs de Michelangelo, miseráveis de Victor Hugo e muitas outras beldades estéticas que apontam para potências metafísicas. Isso se deu graças à conjunção de diversos elementos, cuja particularidade que lhes era característica lhes imprimia um senso de dever - uma certa obrigação - de cumprir um destino e apresentar ao mundo, de forma espetacular e intensa, as personalidades mais fantásticas citadas pelos livros e estudadas por uns poucos. O Cinema assim se torna ferramenta de forças superiores, que vão além da compreensão dos realizadores, que  possuem um ímpeto de criação fora do comum. Nenhuma circunstância mundana impede a manifestação elegante do que deve ser impresso.

Anthony Mann (1906-1967) nos apresentou o cavaleiro Don Rodrigo Díaz de Bivar, que passou a ser conhecido como El Cid (O Senhor). O título que permeou a mente e coração de todos espanhóis, cristãos e muitos mouros (entre outros), é infinitamente maior do que sua linhagem nobre. 

O filme cria a atmosfera desde o princípio, com a típica Overture, acompanhada da trilha sonora impecável de Miklos Rozsa. O homem é apresentado. Seu caráter. Sua atitude. Sua determinação e seriedade são postas à mesa. E as provas são lançadas. Inicialmente pequenas, e portanto contornáveis pelos métodos do mundo - especialmente para os poderosos. E posteriormente, crescendo, ficam cada vez maiores, sem chance de desvios. Mas o personagem não se desvia dos altos princípios que regem um cavaleiro - no verdadeiro sentido da palavra. É uma exceção que sabe lidar com as podridões do mundo.

Charlton Heston interpreta o lendário cavaleiro. Sophia Loren, sua esposa. Os planos do herói, já determinados de antemão, acabam sendo desviados devido à sua determinação em seguir princípios dos quais não podia abdicar. E eram (são) princípios que ninguém deve de fato largar. Mas o mundo não o compreende - mesmo aqueles mais próximos, queridos, amados - e causa dores àquele que é destemido e persiste. Assim deve-se ter um trabalho dobrado, triplicado às vezes. As frentes se somam. A vontade se multiplica. A criatividade se exponencializa. E assim a glória é garantida desde o princípio.

Pronto para tomar Valencia. Início do processo de
expulsão dos mouros da Espanha - e todo continente. 
O resultado de algo está contido em germe na personalidade do ser. Explicitar a potencialidade, a partir de certo ponto (ou fase) não é mais esforço doloroso que visa recompensa, mas é alegria em si mesma, permeando todo o processo. Processo este glorioso, de ascensões vertiginosas cujas causas escapam à compreensão do tipo médio. 

El Cid é um homem que não teme enfrentar o que se apresenta diante de si. Não esquematiza confrontos pela glória de títulos, gratuitamente, mas desemboca neles por princípios de fé e senso de retidão. É o mais nobre dos nobres. O único nobre dentre os nobres! É um personagem que transmite segurança e seriedade. É isso o que sentimos com a atuação de Charlton Heston ao longo de todo filme. 

É emblemática a cena em que Afonso (por motivos muito ocultos) acaba se tornando rei de Leão, Astúrias e Castela. Pede que todos súditos se ajoelhem em sinal de lealdade. Todos se ajoelham, exceto Rodrigo, que não teima em pedir ao novo rei um juramento confirmando que não tomou parte de um complô objetivando a morte de seu irmão mais velho. O rei hesita, mas se vê diante do julgamento inconsciente das massas e dos poderes próximos. Teme sua imagem e seu reinado. Rodrigo não hesita, porque quer a resposta à sua inquietação. Resposta que muitos - se não todos - querem, mas tem medo de se manifestar. Faz o trabalho que todos deveriam fazer. Faz portanto o trabalho dos outros. Peso enorme em suas costas. Apenas um espírito de grande envergadura pode tomar essa atitude. 

Ao contrário do que possa parecer, o foco não é denegrir a imagem dos islâmicos, mas revelar um homem que unificou um povo, aceitando qualquer pessoa, de qualquer etnia e religião, disposta a lutar para a libertação. É uma história de determinação e desafios. De picos e vales. 

Será a história de todos nós - de outra forma, em outro tempo, em outro lugar...


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