“Devido à total ausência de controle central sobre a produção, produzimos uma imensa quantidade de coisas de que não precisamos. Mantemos ociosa uma parcela considerável da população trabalhadora, que se torna dispensável justamente porque se impõe o sobretrabalho à outra parcela. Quando esse método se revela inadequado, fazemos a guerra: colocamos um monte de gente para fabricar explosivos e outro tanto para explodi-los, tal como crianças que acabaram de descobrir os fogos de artifício. Combinando todos esses mecanismos, somos capazes, ainda que que com alguma dificuldade de manter viva a noção de que uma grande quantidade de trabalho manual é o quinhão inevitável do homem comum.
Movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência não é, decididamente, um dos objetivos da vida humana. Se fosse, teríamos de considerar qualquer operador de britadeira superior a Shakespeare. Fomos enganados nessa questão por dois motivos. Um é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos a pregarem, durante milhares de anos, a dignidade do trabalho, enquanto tratavam de se manter indignos a respeito do mesmo assunto. O outro são os novos prazeres do maquinismo, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos produzir na superfície da Terra. Nenhum desses motivos exerce um especial fascínio sobre o verdadeiro trabalhador. Se lhe perguntarmos qual é a melhor parte de sua vida, ele dificilmente responderá: 'É o trabalho manual, que sinto como a realização da mais nobre das tarefas humanas, e também porque fico feliz em pensar na capacidade que tem o homem de transformar o planeta. É verdade que meu corpo precisa de horas de descanso, que procuro preencher da melhor forma, mas meu maior prazer é ver raiar o dia para poder voltar ao trabalho, que é a fonte da minha felicidade.' Nunca ouvi nada do gênero saindo da boca de nenhum trabalhador. Eles encaram o trabalho como deve ser encarado, uma forma de ganhar a vida, e é do lazer que retiram, aí sim, a felicidade que a vida lhes permite desfrutar.”
Interpretação
“Devido à total ausência de controle central sobre a produção, produzimos uma imensa quantidade de coisas de que não precisamos. Mantemos ociosa uma parcela considerável da população trabalhadora, que se torna dispensável justamente porque se impõe o sobretrabalho à outra parcela.”
Nunca se controlou tanto. Nunca tivemos tão pouco controle sobre nossos reais desejos. É cúmulo do paradoxo. Produto do exagero em monitorar cada atividade humana. Produto do vício dos “líderes” (não sei do quê) em atrelar toda atividade humana a um ganho econômico sem se preocupar com a aplicação desse ganho – a não ser gerar mais ganho econômico...ad infinitum.
O desemprego cresce porque a automatização cresce e a jornada permanece constante - e medieval, conforme V. Safatle já salientou num de seus artigos na Folha.
Russell exemplificou muito bem o que ocorreu e o que poderia ter ocorrido ao longo das décadas que se seguiram à mecanização:
Imaginemos uma fábrica de alfinetes composta de operárias. Vamos supor que essa fábrica, ou conjunto de fábricas sob mesma direção, seja capaz de suprir a demanda de alfinetes para o mundo inteiro – o que é plausível, dado que não se trata de um bem candidato a sofrer aumento vertiginoso de demanda.
Instalam-se máquinas capazes de aumentar o ritmo de produção, de modo que com o mesmo número de operárias – que, digamos, trabalhavam 8 horas por dia – sejam produzidos o dobro de alfinetes. Pois bem...o detalhe é que, já que a produção original (anterior), manual, já era capaz de suprir a demanda mundial de alfinetes, se o ritmo de trabalho for mantido com essas máquinas será gerado um EXCEDENTE de produção que a nada acrescentará para a qualidade de vida da humanidade.
E aí os industriais tem duas opções, segundo Bertrand Russell:
- Diminui-se a jornada de trabalho
para 4 horas diárias, mantendo a produção original (suficiente),
os lucros, e permitindo que as mulheres tenham a diferença de tempo
restante para cuidar de seus filhos, estudar, ter mais lazer, passar
mais tempo com o marido e etc, possibilitando o desenvolvimento – a
longo prazo – de novas habilidades.
- Mantêm-se a jornada de 8 horas, ocasionando numa super-produção de alfinetes, que INUNDARÁ o mercado mundial (resíduos) e gerará gastos da empresa devido a “falta de mercado para os alfinetes”. Logo a empresa se verá na necessidade imperiosa de IMPOR a “necessidade” de alfinetes para outros grupos humanos. E se não for capaz disso, se verá em crise – já que apenas metade do que produzem é vendido – e demitirá parte das funcionárias para diminuir as perdas, levando as funcionárias restantes a trabalharem MAIS. Isso ocasionará DESEMPREGO (e fome, com todas consequências nefastas) para as excluídas e DEGRADAÇÃO física, mental e moral para as “sortudas” que mantiveram seus postos.
Uma dessas alternativas é sensata. A outra, insensata.
A humanidade – pelo menos quem a comanda e consente com essa atitude – sempre optou pela alternativa insensata.
“Movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência não é, decididamente, um dos objetivos da vida humana.”
Não acredito que a vida se resume a criar tecnologia – por mais sofisticada que seja – pelo simples ato de nos autovangloriarmos. A simples existência não é suficiente. Essa não é uma afirmativa gananciosa. Muito pelo contrário. Ela revela que o ser humano aspira a uma ocupação, uma vivência, uma experiência, que vá além da matéria.
Apesar de Russell se declarar agnóstico e não crer em Leis divinas, essa frase demonstra um espiritualismo profundo, revelando um ser consciente de que a vida humanda tem objetivos mais elevados do que qualquer coisa que a maioria dos habitantes desse mundo possam imaginar ou aspirar no momento. Esses pensamentos são o carro-chefe que possibilitam que a Utopia de hoje seja a Realidade de amanhã.
“Um é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos a pregarem, durante milhares de anos, a dignidade do trabalho, enquanto tratavam de se manter indignos a respeito do mesmo assunto.”
A máxima de Jesus se encaixa perfeitamente: “Faça mais, fale menos.”
“O outro são os novos prazeres do maquinismo, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos produzir na superfície da Terra. Nenhum desses motivos exerce um especial fascínio sobre o verdadeiro trabalhador. Se lhe perguntarmos qual é a melhor parte de sua vida, ele dificilmente responderá: 'É o trabalho manual, que sinto como a realização da mais nobre das tarefas humanas, e também porque fico feliz em pensar na capacidade que tem o homem de transformar o planeta.”
Muitas pessoas oriundas de áreas distantes da realidade de um trabalhador braçal – RH de empresas, por exemplo – gostam de falar na “beleza” e “emoção” em executar um trabalho tão digno. O problema é que essas mesmas pessoas jamais se sujeitaram (ou se sujeitariam) a trabalhar – digamos – um semestre nas condições de um metalúrgico, com o ritmo, a vigilância, a ameaça de desemprego, as dores físicas pocasionadas pelas altas temperaturas e movimentos repetitivos e os salários que mal podem pagar uma refeição, uma escola, um plano de saúde e o aluguel para o mesmo e sua família – tudo em prol da produtividade, do bem da empresa, do bem da humanidade...que ironicamente inclui os metalúrgicos e bilhões de pessoas vivendo em condições semelhantes...
“Eles encaram o trabalho como deve ser encarado, uma forma de ganhar a vida, e é do lazer que retiram, aí sim, a felicidade que a vida lhes permite desfrutar.”
Isso resume tudo.
Não se trata de fazer apologia a “vagabundagem”. Apenas uma mente neolítica seria capaz de enxergar isso numa frase do tipo. A questão é “um pouco” mais profunda – e REAL.
A concepção de trabalho quem (ainda) grande parte da humanidade (supostamente) esclarecida tem, é aquela do século XIX. Ou seja: passar infindáveis horas por dia, por infindáveis anos, diante de uma máquina ou tela ou mesma EXECUTANDO uma atividade REPETITIVA, sem possibilidades de CRIAÇÃO. Isso não é, a meu ver, o significado de Trabalho.
Você trabalha quando executa qualquer atividade útil. Isso pode ser feito quando você está deitado numa rede pensando; ou vê um filme alternativo; ou estuda algo diferente daquilo que você se formou; ou faz um serviço comunitário; ou conversa com um colega sobre sociedade, espiritualidade, música, amor, relações, família, ciência, Deus, vida, envelhecimento, sentido das coisas, etc; ou vai no teatro; ou assiste um show ou concerto; ou escreve um texto; ou vivencia sua família; ou faz atividade física; ou conhece gente nova; ou faz amor; ou etc. Todas são atividades essenciais ao ser humano.
A maioria de nós não está preparada para dar o próximo passo rumo a um novo mundo. Temos pavor do que fazer com o tempo livre porque nunca tivemos ele de fato.
As classes abastadas, mesmo possuindo-o, fizeram uso inconsequente do mesmo, submentendo seus semelhantes a um regime cruel (até hoje). Claro, existem raras exceções (os sábios que eu tanto admiro e alguns outros que ainda desconheço). Mas são muito poucos.
O mundo menos cruel de hoje só foi realizável porque muitos se dedicaram a propagar a verdade e ir a fundo em questões essenciais.
Vamos continuar o trabalho dessas pessoas e construir um mundo melhor para todos.