segunda-feira, 15 de março de 2021

Sobre genialidade, aceitação e assimilação

"Em vosso mundo impera a mediocridade, muito distante dos cimos; ela é a medida das coisas, ela faz sua ética e sua tábua de valores. Só uma verdade medíocre, próxima da natureza animal, pode ter rápido sucesso, porque é acessível."

AGS, Cap. 83 (grifos meus)

Às vezes, nessas longas noites de pandemia, num país desolado, repleto de inconsciência manifesta e potencialidade submersa, encontro coisas curiosas no YouTube. Algumas delas, realmente intrigantes, me levam a fazer uma breve pesquisa. Fico conhecendo história de pessoas fantásticas: seres realmente formidáveis, fora do comum, capazes de alçar a humanidade a um novo patamar. Mas desconhecidas até hoje, e que tiveram uma existência sofrida. Seres incompreendidos, muito (mas muito) acima da média. Basta nos lembrarmos de Blaise Pascal, gênio e santo. E com essas biografias - verdadeiros incêndios de luz, ímpeto de evolução! - acabo por conhecer um pouco melhor grandes almas. Mas também, a estrutura retrógrada de nossa sociedade, em seu atual nível evolutivo. E penso: é preciso evoluirmos...

"Em vosso mundo o triunfo parte do pressuposto da compreensão; cada êxito, para ser rápido, tem que conter afirmações medíocres: o aplauso das multidões é amplo e rápido em razão inversa do valor."

Idem (grifos meus)

Métodos superficiais obtêm resultados rápidos. Prazer e contentamento. Estímulo. No entanto, esses resultados (rápidos) clamam por um esforço perpétuo. Caso contrário a queda será dolorosa e o gosto da vitória passada ficará cada vez mais amargo. Esse esforço aponta numa direção: cada vez mais quantidade, menos qualidade; não pensar nos porquês; refletir o mínimo possível; buscar mais parecer do que ser. É como um chicote interno que bate sempre que a pessoa não atinge o desempenho exterior requisitado. 

Nosso mundo é baseado no número (quantidades). Mesmo pessoas bem intencionadas, que batalham pela sociedade, valorizam o ser humano e apontam caminhos, estão presas às quantidades. Buscam evitar colocar - a todo custo -  no banco dos réus o ser humano e a sociedade. E assim acabam deixando de explicar para aqueles que deseja ajudar a causa mais profunda do problema de todos nós: o (ainda) baixo grau de consciência da imensa maioria da humanidade.

Fig.1: O órgão deve ser capaz de expressar a potencialidade do espírito.

O sistema deve ser capaz de albergar a potencialidade dos gênios.

Aprendi com a vida que não podemos temer seguir nossa consciência. Mesmo que isso vá colocar todos contra você. Mesmo que você perca a saúde, o emprego, as amizades (falsas no fundo), o status social e até a vida. Experiências concretas me levam a uma visão de mundo cada vez mais certa nesse sentido: é preciso sempre ir à fundo, buscando uma explicação mais completa e coerente

Mas eu não estou aqui para falar de mim.

"Por isso, é da Lei que o caminho do gênio seja de solidão e de martírio e não haja compensação humana alguma, para quem realiza os maiores trabalhos da vida."

Idem (grifos meus)

é triste imaginar a vida de pobreza, desprezo, dificuldades e sofrimentos de dezenas de pessoas geniais - e às vezes, além disso, santas. William Wilberforce, Blaise Pascal, Hipatia, Spinoza, Galileu, Sócrates, Beethoven, Van Gogh, Arquimedes, Mozart, Galois,...há muitos outros e outras. Todos tiveram sofrimento de algum tipo. O mundo, como era (e ainda é) não poderia dar sossego. Não poderia permitir que essas almas desabrochassem, regando o mundo com nova luz. Cristo é o exemplo máximo. Exemplo nos dois sentidos: como devemos ser e como o mundo desvaloriza mensagens do Alto.

Nos últimos dias posso colocar mais um desses gênios na lista. Só que esse gênio não pôde, como todos outros acima, produzir à todo vapor o que tinha para produzir. Um mundo excessivamente fissurado com o utilitarismo da genialidade acabou por afugentá-la. Se você já assistiu o filme Energia Pura (Powder, 1995), é possível ter uma ideia do que irei apresentar.

O homem da figura abaixo é William Sidis. Ele viveu de 1898 a 1944, uma breve vida de 46 anos. Essa vida não foi adequadamente aproveitada (no bom sentido) pelo mundo, e com isso a humanidade retarda seu passo evolutivo rumo a uma superhumanidade. 

Um gênio entre nós: a triste história de William James 

Fig.2: William James Sidi. Um homem genial e (mais importante) corajoso.

A partir dos sentimentos desse homem podemos ter uma ideia como as hodiernas relações sociais, em sua esmagadora maioria, mais atrapalha do que viabiliza a construção do progresso. 

“Quero viver uma vida perfeita.  A única maneira de fazer isso é através do isolamento, da solidão. Sempre odiei multidões.”
-William James Sidis-

A sociabilidade é útil apenas entre aqueles situados num mesmo plano evolutivo - ou próximos a ele, com uma margem de tolerância. A partir do momento em que há uma distância evolutiva muito grande (entenda-se sensibilidade, tensão psíquica, percepção, visão), esse contato tende a anular aquele que está à frente dos tempos, forçando uma adequação sem sentido. Não se respeita a genialidade por não se perceber sua função evolutiva.

Perceba: uma conversa que possibilita nova compreensão, troca de afetos, um aprofundamento em certos temas, envolve poucos elementos. Isso é um fato, não minha vontade. São verdadeiras trocas de ideias, experiências e sentimentos entre casais, amigos, familiares. Quando começam a surgir outros conhecidos, inicia-se o desmonte daquela corrente de pensamentos mais elevada, com reflexões profundas. E daí perde-se toda a potencialidade do contato. Nivela-se por baixo. 

Quanto maior o número, menor a possibilidade de se sair daí algo verdadeiramente diferente. Um pequeno delta substancial. Um conceito, uma ideia, um modo de vida, um atitude, que pode mudar o mundo. Porque muitos ainda não são capazes de tratar de modo contínuo, de forma séria, esses tipos de questões. Questões envolvendo nossas origens e destino; tratando da natureza das coisas; questões envolvendo sínteses e resolução efetiva de problemas. 

Para a imensa maioria da humanidade, assuntos mais elevados - que quase todos reconhecem como importantíssimos para o progresso humano e do planeta - são tratados, no melhor dos casos, como uma conversa gostosa. Um momento cultural, interessante, raro e portanto especial. Mas assim que surgem as "coisas importantes", as obrigações e boletos e burocracias e empregos destituídos de sentidos e as emergências (causadas pela inconsciência humana), larga-se tudo. De modo que jamais é possível iniciar e sustentar por tempo suficiente uma interação que vise a transformação do ser humano e do mundo.  

Esses assuntos na verdade deveriam ter prioridade máxima em nossas vidas. Antes de tudo, a orientação suprema, as causas profundas e a sinceridade de intenções. Depois, aplicar os princípios na vida cotidiana. Em cada gesto. Não fazemos isso. E não o fazendo, vacilamos. E isso coloca em risco o nosso progresso. Progresso que poderia se dar em poucas décadas - mas que pode demorar milênios...

Dá para ter uma ideia do mal que estamos causando em nós mesmos quando começamos a levar a sério essas questões.

Bom...eu falei tudo isso porque essa visão se relaciona profundamente com o fenômeno de descida dos ideais descrito magistralmente por Ubaldi em sua obra. Dentre um dos aspectos desse fenômenos, temos a vida de James Sidi.

Como toda luz que passa por este mundo de expiações e provas, a vida de Sidi deve ser analisada com cuidado, pois muita ficção foi misturada à realidade. É nossa incapacidade de compreender que gera exageros onde não se deve e se suprime preciosidades. A vida desse homem foi bastante cruel e, ao mesmo tempo, interessantíssima do ponto de vista psicológico. Através desse ser genial, inclinado para o bem e dotado de uma mente fantástica, acabamos por conhecer muito mais a nossa miséria intelectual, afetiva e espiritual do que propriamente o gênio cujo QI superava os 250 pontos.

Vamos a alguns fatos de sua infância:

1) William nunca teve uma infância. Desde o início, devido à sua genialidade, nunca pôde experimentar o mundo no ritmo que lhe era conveniente: os pais, percebendo que aos 18 meses o filho já era capaz de ler o New York Times, começaram um processo de enquadramento visando extrair o máximo possível da criança. Ou seja, fazer ele ser o máximo que poderia, segundo o ponto de vista humano. Presos ao tempo, eles não poderiam perder tempo. E com isso alteraram o ritmo natural do desenvolvimento fenomênico de um gênio de boa índole;

2) Falava nove idiomas aos 8 anos. Tinha imensa facilidade em absorvê-los. AO longo da vida aprendeu outros. Era fluente em todos, dominando detalhes e nuances, se expressando de forma elegante e clara. Tanto ansiava por buscar uma ponte de comunicação com seus semelhantes que criou um idioma próprio (o Vendergood), elogiado pela comunidade acadêmica;

3) Aceito em Harvard aos 11 anos, logo começou a dar aulas aos seus professores. Com 12 anos deu sua primeira palestra sobre a quarta dimensão frente à comunidade científica e imprensa.

Dá para ter uma ideia do sujeito.

Vamos ao ambiente em que ele veio.

Seus pais queriam um gênio e seguiram um roteiro para que isso se concretizasse. Só se esqueceram de educar a mente de William para o coração e as emoções. Daí se percebe que haveria um desenvolvimento verdadeiramente efetivo.

Sua biógrafa, Amy Wallace, nos revela que Sidis foi provocado e humilhado por sua honestidade. Ele declarou que não acreditava em Deus, que admirava a forma de governo socialista e que muitos dos problemas do mundo poderiam ser rastreados até ao capitalismo.

Gostaria de me deter um pouco no último parágrafo:

É fato que Sidis, tendo vivido até 1944, não pôde conhecer a obra de Ubaldi, com uma visão inédita sobre Deus e o Universo. De modo que esse Deus que ele negava provavelmente era o Deus que lhe foi apresentado: um Deus diminuído em sua onipotência; invisível em sua onipresença e limitado em sua onisciência. Era um Deus monoteísta, antropomórfico. Para uma mente elevadíssima, seria necessário apresentar um conceito mais avançado de Deus. Um conceito fidedigno da mente que deseja subir ao Alto.

Sua visão sistêmica do mundo antecede em muito as análises de muitos pensadores. Sua conclusões (o capitalismo é fonte de muitos dos problemas do mundo) se tornam mais visíveis à medida que adentramos no século XXI. É evidente que esse modo de produção, distribuição e consumo não atende mais os anseios humanos. Não basta desenvolver vacinas - é mister eliminar as causas dos vírus; não basta distribuir bens e serviços - é necessário igualmente distribuir conhecimento e tempo.

É muito interessante perceber que o homem mais inteligente do mundo, dotado de senso moral acima da média, simpatizava com o socialismo.

Muitos podem argumentar que ele poderia ter outra visão baseado nas experiências posteriores (stalinismo, maoísmo, etc.). Mas o fato é que as implementações subsequentes no século XX não fizeram jus ao princípio. E o que importa é o princípio (socialista). Já discorri de forma extensa sobre essa questão, em outros ensaios. Esse não é o foco presente. Aqueles que desejarem saber mais à fundo encontrarão explicações em textos passados e sobretudo no grande jurista Alysson Mascaro

Voltemos ao William..

Ele foi preso por perceber os princípios que, não fosse o egoísmo humano, poderiam revolucionar a organização sistêmica do modo de produção, distribuição e consumo; ele escreveu sobre os mais variados temas, como astrofísica, geologia, economia, engenharia civil e veicular, psicologia, política, história, entre outros. Suas produções eram anônimas, pois a fama lhe impunha uma pressão insana por parte do mundo.

O mundo, reino do AS, anseia por enquadrar o formidável rol de gênios, heróis, santos e místicos em suas caixas especiais. Enquadrar pode estragar. E quem perde (humanidade) "produto" valioso (Sidis) pode estar se matando a si mesmo - pois o "produto" está muito mais vivo no reino do eterno e infinito, reino do espírito e da compreensão, do amor e da graça.

Ocupando empregos medíocres e mal remunerados, Sidi teve de se esconder para não sofrer humilhações. O mundo queria um gênio em seus moldes - não queria um gênio que transformasse o íntimo do homem. E graças a isso matou o que poderia ajudar em sua ascensão. 

Mas como todo gênio e homem bom, Sidis continuou suas produções, escrevendo no recanto de seus minúsculos cômodos ou na prisão (quando esteve preso por 18 meses). Só queria transbordar um pouco do infinito que carregava dentro de si para. Era sua natureza e condição. 

William não queria ser exposto, queria gerar valores e conceitos.

O mundo tem uma sociabilidade doentia que degenera em insensibilidade social. A maioria dos seres humanos deseja estar rodeado de gente, ir para as multidões, intercambiar superficialmente; deseja barulhos e novidades; criticar e gritar; dar cliques e receber likes; desejam várias coisas com um verniz de virtude. Mas nas essência não há interesse pela essência dos fenômenos. Isso irá mudar à medida que evolvermos.

A biógrafa de Sidi afirmava que ele tinha aversão a relações sexuais e nunca iria se casar. Será que isso simplesmente não apontava para o fato de que a imensa maioria dos relacionamentos neste planeta estão presos a interesses? Mesmo que esses interesses sejam elevados (sáttvicos), que foquem numa característica virtuosa, não deixam de ser interesse - e com isso tratar a relação como intercâmbio ou possessão de objetos. É preciso saber o porquê de uma pessoa como W.J. Sidi adotar posturas tão fortes em relação às coisas mais naturais do mundo. 

Essas almas polímatas geniais, ardentes, com ímpeto por criações verdadeiras, descobertas na ciência, no pensamento, em todos campos, não são compreendidas por nós, criaturas ainda muito abaixo delas. A sociedade tenta enquadrá-las num espaço de atuação que julga imenso - mas que no fundo é restrito, sufocando pessoas como Sidis. Não compreendemos, por mais que raciocinemos, pois a compreensão vem de outra região...

 

 Fig. 3: A patologia pode ser sinal de grandeza espiritual.

"A compreensão não é obra de cultura ou de raciocínio, mas sim um amadurecimento que se alcança por evolução" 

AGS, Cap.83

No final das contas, William queria dar uma contribuição além daquela que o mundo esperava. E isso o matou. Nosso baixo grau evolutivo o matou. Sua família, sua sociedade, nossa sociedade, nossa forma mental..

Assim como Cristo se lançou como um raio de luz rumo ao S assim que cumpriu sua missão suprema, as grandes almas, nessa esteira evolutiva que culmina no cristo cósmico, deixam este mundo com muita alegria. Nós demoramos séculos ou milênios ou mais para assimilar suas visões e formas de vida. Mas isso não é grave. O que nos coloca em dívida é o modo como tratamos gente desse tipo. 


"O gênio está sozinho em seus amplíssimos horizontes. Suas relações sociais não são de compreensão, mas sim de fadiga e, muitas vezes, de perseguição. Interiormente, ele já alcançou seu propósito e sabe disso. Seu olhar penetra a íntima causalidade fenomênica, ultrapassando o fracionamento da realidade entre as barreiras de espaço e de tempo, na estase suprema do espírito, que repousa na visão global do todo."

AGS, Cap. 83 

 

Referências:

[1] https://amenteemaravilhosa.com.br/william-james-sidis/

[2] Ubaldi, Pietro. A Grande Síntese 

[3] https://universoracionalista.org/um-genio-entre-nos-a-triste-historia-de-william-james/

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