terça-feira, 29 de outubro de 2019

Quando a profundidade do Sistema toca a superfície do Anti-Sistema

O fenômeno da descida dos ideais é talvez o mais fantástico que ocorre em nosso mundo. Ele se dá de muitas formas, de tempos em tempos, através de personagens históricos que ecoam pela esteira do tempo devido a seus atos fora do comum. Verdadeiramente inesperados e poderosos. Quem já atingiu a devida maturidade interior é capaz de sentir de forma mais intensa (muito mais intensa!) certas coisas que ocorrem neste mundo.

A Arte que verdadeiramente faz jus ao nome é capaz de expressar uma determinada ideia - de modo sutil, por uma combinação de elementos do mundo, sonoros, musicais, de figurinos, gestos e...sobretudo, olhares de personagens - com força impressionante, capaz de levar o ser a outra dimensão, superando as míseras barreiras de tempo e espaço, de limitações e paradigmas.

Irmão Sol, Irmã Lua (1972).
Um filme que revela o profundo que governa a vida.
O Cinema, para mim, é verdadeiramente impressionante por representar uma experiência de imersão profunda em um mundo que já foi mas - ao mesmo tempo - ainda o é e será. Das sete Belas Artes [1], ele é a mais massificável, pois pode ser reproduzida ao mesmo tempo, em todo mundo, para todos públicos e em várias épocas, atingindo muitas pessoas em pouco tempo. A luz da película e os sons ordenadamente orquestrados pelo realizador (o grande cineasta) banharão todos os olhos e invadirão todos os ouvidos. Mas as almas tocadas devem estar num nível capaz de transformar esse conjunto harmônico de um relato numa orquestração divina que aponta para as regiões do espírito.

Franco Zeffirelli [2] decidiu fazer o filme Irmão Sol, Irmã Lua (1972) após passar por uma experiência que quase lhe tirou a vida. Esse abalo levou o diretor italiano a expressar em tela uma das mais fantásticas sagas interiores. O verdadeiro drama cósmico da ascensão. Trata-se da gênese daquele que talvez seja o Santo mais conhecido de todos os tempos: Giovanni di Pietro di Bernardone, mais conhecido como São Francisco de Assis.

O filme retrata de forma muito interessante como se deu o processo de despertar. Fica evidente que os maiores santos e gênios se forjam a partir de uma personalidade repleta de energia e paixão, que já contém dentro de si as potencialidades espirituais para sustentar aquilo que ele deseja se tornar.

Clara era meiga e certinha - Francisco Bernardone era bagunçado e brincalhão. Clara se preocupava com os leprosos desde tenra infância - Francisco Bernardone tinha pavor deles. Mas em Francisco estava o germe para uma mudança radical em sua personalidade. E sua grande energia, vontade e criatividade o levaram a se tornar o pai fundador da ecologia.

A cena final do filme, quando Francisco e seus discípulos chegam ao Vaticano para serem recebidos pelo Para Inocêncio III (interpretado pelo brilhante Alec Guiness), é uma exemplificação do fenômeno da descida dos ideais, quando o Sistema (S), que é a ideia pura, entra em contato com o Anti-Sistema (AS) que representa essa ideia no mundo.

S e AS trabalham conjuntamente, mas separados - o primeiro atuando silenciosamente, em profundidade, sem se preocupar com prazos e metas; o segundo impondo e fazendo barulho na superfície, buscando adquirir vantagens em nome de uma difusão do ideal. Quando os dois se tocam, seja num instante em que dois seres que personificam as forças S-AS, seja num confronto de ideias, ocorre um fenômeno impressionante. Um fenômeno que o subconsciente das massas baixas (povo) e das massas altas (aristocracia ou clero) capta de forma imediata. Cada um reage de acordo com o que aquilo significa para sua pessoa, seu grupo, seu partido, sua religião, sua ideologia, sua nação. Mas ninguém consegue ficar indiferente diante do que ocorre.

Quando Francisco, o poverello de Assis, entra na Igreja-Mor e se vê diante de tanta riqueza, percebe que a pobreza é pregada mas não praticada - com a desculpa de que é preciso ter poder para se difundir um ideal. E isso é verdade! A mecânica do processo evolutivo é assim. Doa a quem doer, é esse o fenômeno desfraldado pela brilhante arquitetura monista de Pietro Ubaldi, que explica toda a fenomenologia universal, coordenando todas as atitudes para uma meta central: a ascensão humana.

parte 1

Vê-se a riqueza. Vê-se o comportamento. A atitude de superioridade. Os ritos e a arquitetura (física e mental), cuja função é impressionar, mostrar a grandeza de Deus - e seus representantes, incumbidos da função divina de propagar o ideal. O Santo deve apenas ler um texto, não incomodar. Recitar belas palavras em latim. Ser obediente para a hierarquia do mundo - mas afogar os princípios que o impulsionam. Ele percebe isso e acaba por falar o que sente. Sua visão se espalha pelo ambiente como um relâmpago - que corta o íntimo de cada cardeal e subordinado. O Papa, num estado de morbidez, encastelado por uma série de mecanismos de poder, cheio de roupas e distante (infinitamente longe) de tudo e de todos, - como eles vêem a Deus - não parece estar plenamente consciente. Ele, como a Igreja, se engessou numa superestrutura que tudo domina. Mas a voz de Francisco corta os fios que o prendem.

Todos se ofendem com a verdade - mas o Papa, curioso, sente-se compelido a entrar em contato com criatura tão ousada...tão inteligente...Ousadamente inteligente - inteligentemente ousada.

parte 2

O Papa desce e escuta. O Santo e o Papa são vistos como iguais: criaturas provenientes da mesma Fonte, com tarefas específicas. Um tem a missão de renovar o tecido incrustado da Igreja - outro o de dirigir esse gigante, garantindo que a Igreja não seja esmagada por forças do mundo. Não são inimigos, mas seres com consciência de sua tarefa. 

O que inicialmente turvo para Francisco fica claro, ao perceber que o Papa não pode sair de sua posição - e ele, o Santo nascente, não pode abdicar de sua tarefa divina. 

O intercâmbio de ideias e sentimentos se desenvolve de forma a deixar cada membro do poder perplexo. Muita preocupação em manter a estrutura que os alimenta, permitindo diversas regalias e garantias. Direitos infindáveis por representarem o Alto. Assim, quando o Papa, num gesto de admiração sincero, beija os pés do Santo, abençoando-os, estabelece-se um clima de temor. O suspense dos últimos momentos se transmuda em perplexidade e desespero. Esse contato tão íntimo entre S e AS tende a "trocar demasiados fluídos" entre o imponderável e o ponderável. Entre o relativo e o absoluto. Entre o não-local e o local. Não pode ocorrer, pois afetaria a vida de todos - que ainda não atingiram a maturidade espiritual para viver uma forma de vida mais elevada. Povo, clero, aristocracia,...todos. 

Somos incapazes de viver o ideal. Apenas o professamos de tempos em tempos. De modos diversos. E à medida que o tempo corre, surgem seres que explicam de modo cada vez mais inteligente, avançando na ciência, na crença, na arte e no pensamento. Criando novas formas de viver e conduzir povos. Dilatando a visão à custa de sua imagem. Estamos na fronteira da racionalidade, pressionando os limites do saber e do crer para rasgar cortinas há muito tempo empoeiradas pelos eventos da História. É hora de revelar o significado mais profundo dos textos Sagrados e - por que não - dos filmes que apontam para o S.

Espero que essas breves palavras, brotadas num relampejo de paixão, possam deixar um pouco mais claro o que Zeffirelli quis dizer com esta cena. Cena sublime, que encarna o confronto entre S e AS.

Notas:
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Belas_artes
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Franco_Zeffirelli
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Assis

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