quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Refundar as bases da humanidade

Nossas escolas estão com currículos completamente inadequados para que seus alunos, ao se formarem, tenham um mínimo de pensamento crítico orientado e uma criatividade para abordar problemas emergentes. Elas estão presas a conteúdos compartimentados que conservam entre si de modo muito pobre. Pior: essa relação (se há) entre disciplinas só se dará se, à primeira vista, o contato tende a ser benéfico para ambas as partes. Isso significa que qualquer tipo de abordagem que inicialmente exija um grande esforço das partes tende a ser descartada. Eis o motivo de muitos escaparem de projetos interdisciplinares.

Eu particularmente acho muito sério as escolas contemporâneas não terem uma disciplina de Educação Ambiental. Essa disciplina deveria ser elaborada de forma a se adaptar a todos os níveis (ensino básico ou superior, sendo este licenciaturas, bacharelados ou tecnólogos), modalidades (à distância, presencial, semi-presencial) e tipos (ciências humanas, naturais, tecnológicos, da saúde, artes). Para isso a transmissão do conteúdo deveria ser a mais didática possível, com uso de uma terminologia comum a todas as áreas, evitando uso frequente de jargões - e, se necessário, relacioná-los sempre às palavras cotidianas. O uso de mapas conceituais poderia dar uma ideia das relações existentes entre variáveis relacionadas a temáticas ambientais. Estas são variadas e podem envolver diversos campos como: aquecimento global, biodiversidade, matriz energética, políticas públicas, mobilidade, habitação, urbanismo, demografia, alimentação e agricultura, recursos hídricos, saúde, etc. O tema é vasto e de importância crescente, não podendo ficar restrito a alguns cursos ou dado a partir de um enfoque pontual - apenas pra cumprir carga horária.

Todas nossas atitudes, reflexões e atos devem ter a finalidade
única de levar tudo e todos à salvação.
A Ed. Ambiental deve permear todos os cursos, de modo a se tornar uma disciplina - se é que poderíamos enquadrá-la nessa categoria - contínua, relacionada a cada especificidade, servindo como um alerta a todos estudantes (e professores). Sim, um alerta. Que sinaliza a importância de estarmos sempre nos lembrando que um processo industrial tem implicações para a saúde dos funcionários; que o descarte de resíduos impactam o solo, a atmosfera, a água, e consequentemente as formas de vida e mesmo a agricultura e comunidades. Da mesma forma é imprescindível apresentar aos estudantes a trajetória histórica que leva as coisas a serem como são. Por quê a Revolução Industrial ocorreu? Como se deu o processo? Qual a finalidade do crescimento econômico? Ele pode ser sustentado indefinidamente? O que significa 'desenvolvimento'? Quais as variáveis envolvidas no processo de geração de riqueza? O que é riqueza? É renda (apenas)? Ou serviços públicos uso eficiente dos recursos (incluindo tempo) disponíveis? Etc.

Como se vê, temos um modelo educacional que explora muito pouco o senso crítico das pessoas. Temos cargas horárias orientadas para serem cumpridas à risca. Diversos processos burocráticos que demandam vigilância constante e cuidados extenuantes - a título de evitar possíveis agressões jurídicas de terceiros. Os avanços são muito tímidos. Incipientes. Carentes de verdadeiro efeito transformador. Os temas críticos são pouco abordados. Se são, há pouco ânimo, vontade escassa em desenvolver determinadas questões. As pessoas tem medo (de se mostrarem ignorantes ou incapazes de lidar com questões mais profundas) e acabam criando um sistema de fuga eficaz, apoiado no senso comum e na relativização de acontecimentos. Criam narrativas e com isso formam bolhas. Recorrem a um trabalho burocrático, alienado, afastado da fonte da vida e do telefinalismo. Se afogam no consumo conspícuo, armazenando memórias desnecessárias, bens custosos e toxinas que refletirão em males futuros. Não veem Deus nos fenômenos - ou observam a Divindade apartada do universo. Somos mancos ou cegos que não se ajudam. 

Foi necessário dizer tudo isso porque existem temáticas que dificilmente poderão ser abordadas de forma oficial e eficiente sem uma conscientização das pessoas. Conscientização que levará todos a fazerem um  a pressão e esforço para a implementação da Ed. Ambiental. Assim podemos criar o ambiente no qual nossos alunos (e nós) poderão desenvolver as bases para uma futura civilização. O New Deal Verde [1] seria um dos pilares dessas bases.

Baseado nas políticas de Franklin D. Roosevelt, que lançou o New Deal na década de 30, sua versão verde incorpora as complexidades do século XXI, incluindo a perspectiva política, demográfica, sócio-tecnológica e (especialmente) ecológica. Busca-se explicitar os pontos nevrálgicos que possibilitariam uma sobrevivência da espécie, de forma decente. Leia-se: como estruturar o mundo de tal forma que todos consigam ter uma vida humana digna, sem necessidade de dar todo seu tempo e energia (vida) a um punhado que se interessa na reprodução de um modelo que não satisfaz as diretrizes da vida e da evolução.

O impacto da crise de 1929 foi tão brutal que o próprio sistema financeiro-corporativo global permitiu a implementação de uma política de cunho socialista, com geração de empregos via redução da jornada de trabalho, com valorização real dos salários, com investimentos em infra-estrutura e ampliação dos 'gastos' sociais (saúde, educação, previdência, segurança, habitação, etc.). Foi assim que os EUA, maior economia do mundo, saiu da crise. Em 1940 o nível de vida do norte-americano era dos mais altos do mundo. Após a guerra (1945), o país torna-se a maior potência mundial, tanto em termos econômicos quanto militares. Socialmente o país estava próximo ao modelo nascente de bem-estar europeu (iniciado com o Plano Marshall [2]), tornando-se um lugar onde o indivíduo poderia mais se desenvolver ao longo da vida. É claro, isso se aplica a brancos que, além de partir desse patamar inicial, deveria ter consciência para adquiri uma vida realmente de valor. Mas isso é outra questão...O ponto é que nunca na história do mundo se viu uma sociedade (Europa Ocidental, EUA e Canadá) que teve tantas oportunidades, crescimento econômico e inclusão social. Apesar disso, para aqueles que vislumbravam os limites de tais modelos, - e a que custo esse desenvolvimento se dava - era claro que cedo ou tarde haveria uma reviravolta social. Somado a isso a questão energética e ambiental, estava preparada a situação para o definhamento de um modo de vida.

1973 brinda o mundo com a segunda Crise do Petróleo [3], trazendo um abalo para o mundo ocidental - tão dependente desse recurso. Uma refiguração do sistema mundial se inicia. Esse exercício de reengenharia ganharia ímpeto a partir da década de 80, quando a baluarte do sistema capitalista foi chefiada pela dupla Reagan-Thatcher [4]. A desregulamentação do setor financeiro se dá, com um grande pontapé inicial. Essa tendência segue até os dias atuais, adquirindo impeto extremamente agressivo após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Para saber mais, uma palestra do Prof. Safatle esclarece o fenômeno:


A pegada ecológica do planeta vêm aumentando. A biocapacidade, por outro lado, decai a cada ano.

Pegada ecológica é o impacto humano causado no ambiente terrestre, que considera área de florestas, de pastagens (animal), agrícolas, habitada (construções), peixes e combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás).

Biocapacidade é a capacidade do planeta em regenerar as necessidades dos seres vivos (isto é, humanas, já que as outras espécies não causam limitações).

A relação entre pegada ecológica e biocapacidade dá uma ideia dos países/comunidades vivendo de acordo com os serviços ecossistêmicos de nossa Terra.

O fato é o seguinte: desde o início da década de 70 consumimos anualmente mais recursos do que a Terra pode repor (ver figura abaixo).

Relação entre pegada ecológica e biocapacidade.
Fonte: [7]
Isso significa que estamos acabando com o nosso estoque biofísico e mineral-energético. Há mais de 40 anos. Até o momento buscamos compensar essa tendência inexorável (leia-se natural) descobrindo novas jazidas de petróleo e gás natural. Ou aumentando a eficiência dos processos. Mas a concentração de renda sem dúvida dá a ilusão - para os poucos beneficiados com esse sistema econômico - de que as coisas estão relativamente bem (10% mais afortunados) ou cada vez melhor (1% ou 0,1% do mundo...a elite).

A desigualdade (de renda, de patrimônio, de oportunidades, de representatividade, de acesso a bens básicos, de direitos, de deveres, etc.) aumenta a degradação do sistema-Vida e sistema-Terra. Paradoxalmente, mais miséria existe para mais pessoas no mundo. Porque uma elite cada vez mais afastada do bom-senso, da via natural, cria cada vez mais superestruturas artificiais. Verdadeiras bolhas fechadas, com serviços tão desnecessários quanto ilusórios, feitos para drenar dinheiro de quem deseje esse (des)padrão de vida. E enriquecer alguns oportunistas, que ganham dinheiro em cima de serviços que a sociedade abominaria - se conhecesse a verdadeira intenção e fim dos mesmos.

Há fortes indícios de que o tempo está acabando. E os impactos causados por um aumento de temperatura superior a 2°C são irreversíveis, segundo os maiores especialistas na área (ver vídeo abaixo).


A partir desse alarme alguns ativistas começaram a se mexer (de fato), e como resultado criaram um plano para reverter essa tendência. Esse plano se chama Green New Deal. Sua resolução é simples, curta e grossa. Direta. Com apenas 14 páginas. É um pontapé inicial verdadeiramente norteador. O ponto certo para sistematizarmos, implementarmos, monitorarmos e reforçarmos nossas políticas. Com força de voz do local até o global - com impactos convincentes do global ao local. Bidirecional que permeia todas esferas da vida, com potencial de reorientar o quadro demográfico, de cultura (consumo), de matriz energética (fontes) e de criação de igualdade (justiça social).

Talvez por força de hábito o tema não seja devidamente abordado, mas o fato é que não basta trocarmos transporte individualizado de combustão interna por veículos elétricos. É preciso coletivizar o transporte para aumentar drasticamente a eficiência nesse setor. De quebra, maior integração entre os estratos sociais aliado a melhoria da saúde de todos. Além disso, poupa-se mais dinheiro (calcule impostos, estacionamentos, lavagens, manutenção, seguro, combustível, etc.). E nem falamos da abolição de sonhos pueris que só causam inveja, ódio e ilusão entre pessoas...

A transição necessária é abrupta. Logo, causaria dor. Para evitar isso - ou mitigar ao máximo - é preciso criar uma rede de proteção sólida e eficiente, que evite o caos social. Entre essas garantias: saúde universal de alta qualidade, educação, treinamento e acesso a alimentos. Oportunidades devem ser iguais - por mérito verdadeiro.

É preciso mexer em todas estruturas. A começar pela forma mental humana. A criação de necessidades artificiais tem drenado tempo e energia em níveis fantásticos. Precisamos nos submeter a empregos cada vez mais sem sentido para garantir uma renda que mal atende necessidades básicas - que poderiam estar garantidas por direito. Sonho? Utopia? Não. Apenas associação inteligente de sistemas, de pessoas e mudança de mentalidade.

São Francisco é mais visionário nesse aspecto. O poverello di Assisi planta as bases para uma Nova Civilização. O que ele diz é que precisamos, do fundo de nossa alma, dizer "NÃO!" a tudo isso que ocorre diariamente. Inclusive nossa neutralidade medíocre, que busca todo tipo de subterfúgio para trabalhar verdadeiramente (leia-se: tornar todo esforço útil para acabar com o velho homem e gerar o novo homem). Essa é a transformação que anseio e que todos, no imo, anseiam.

Alguns estão um pouco mais à frente nessa empreitada cósmica. Mas esse pouco, se visto do ponto de vista do mundo, parece uma aberração, em que certas personalidades explodem de paixão e vontade, se lançando a empreitadas aparentemente insanas. E chispas de criatividade nunca vistas (ou esperadas) se dão. É admirável para quem para um momento e se concentra no fenômeno, se envolvendo no processo de catarse. A cena abaixo, extraída do belo filme de Franco Zefirelli, nos dá uma ideia - para alguns, até sensação.



A transição planetária envolve uma nova relação com os objetos e com os semelhantes. Mas sobretudo, com as ideias e o ideal.

Apenas a mudança da forma mental irá dar força ao que precisa ser feito.

Brotemos do árido e fétido terreno terrestre, como o Lótus, florindo toda a superfície do planeta com uma nova forma de sentir.

Vamos nascer em consciência.

Referências:
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crises_do_petr%C3%B3leo
[4] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-o-mundo-moderno-se-tornou-tao-desigual/
[5] https://theintercept.com/2019/09/20/apenas-um-new-deal-verde-pode-conter-o-eco-fascismo/

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