quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Horizonte: temporariamente perdido, ardentemente buscado

Todo ser sonha com uma vida melhor. Cada uma a seu nível, as individualidades no universo orbitam em torno de um eixo central. Princípio inteligente subjacente a todos acontecimentos. Sempre presente, jamais evidente. Sutil. Religiosamente científico quando revelado. Cientificamente religioso quando professado. Poeticamente orientado e harmonicamente plenificado. Nós não somos capazes de realizar uma busca integral - isso nos esfacelaria. A vida fala mais alto. Mas esta vida é ainda orgânica, fortemente calcada nos sentidos e com um senso de concreto ancorado na matéria. Consideramos vida em termos de manifestação externa porque nosso centro de gravidade está situado nesse nível. No entanto, esse é apenas um aspecto.

Shangri-la. Um núcleo de civilização bem longe de
nosso mundo. Um local inserido no seio do himalaia.
Inacessível à ganância humana. Impressionante pela
sua harmonia. 
Quem percebe mais à fundo sente vida na matéria e nas idéias. Percebe que vivemos um átimo do devenir evolutivo. E que o que agora é considerado uma verdade absoluta será tido como uma verdade relativa amanhã (que está logo aí). E à medida que caminhamos na senda evolutiva, essa ideia originariamente grande se apequena, adquirindo um aspecto cada vez mais próximo de sua essência. Mas esse fato não deve desanimar. Apenas aqueles que se prendem ferreamente a um conceito, modo de vida, pessoa, corrente filosófica, profissão ou posse estão condenados a uma corrida cansativa, cheia de fadiga e dores. Uma corrida que obriga o ser a trair a cada passo a sua natureza, desviando a atenção da criatura ao que realmente interessa. O que é isso que realmente interessa? O nada...Isto é, o que este mundo considera como inexistente, inútil, distante, imperceptível,...A essência. A origem e o fim. O pensamento diretor, único, que se manifesta através de tudo e de todos, assumindo uma multiplicidade estonteante. O não-lugar...

E...falando nisso...Há um não-lugar que foi transformado em lugar...Uma obra literária de James Hilton, lançada ao mundo em 1933 - época de obscuridade mental e intensificação tecnológica. Obra que idealiza o mito de Shangri-la. Núcleo de civilização pautada em nova mentalidade, na qual a ganância se vê encarcerada numa personalidade com virtudes sobrepujando vícios. Não um reino de anjos, mas uma comunidade que é verdadeiramente pautada por diretrizes angelicais. Shangri-la.

Rumo ao paraíso perdido. Mas nessa viagem, nada é por
acaso. Ao menos para Richard Conway.
Shangri-la, da criação literária do inglês James Hilton, Lost Horizon (Horizonte Perdido) de 1933, é descrito como um lugar paradisíaco situado nas montanhas dos Himalaias, sede de panoramas maravilhosos e onde o tempo parece deter-se em ambiente de felicidade e saúde, com a convivência harmoniosa entre pessoas das mais diversas procedências. [carece de fontes]
Shangri-la será sentido pelos visitantes ou como a promessa de um mundo novo possível, no qual alguns escolhem morar, ou como um lugar assustador e opressivo, do qual outros resolvem fugir. O romance inspira duas versões cinematográficas nas décadas seguintes (em 1937 e 1973).[carece de fontesWikipedia [1]

Foram realizadas duas versões desse filme. A primeira dela é de Frank Capra (1937). A segunda (1973) de Charles Jarrott, com trilha sonora de Burt Bacarach e com Peter Finch no papel de Richard Conway. O elenco é grandioso: Liv Ullmann (Catherine), Michael York (George Conway), Olivia Hussey (Maria) e o já experiente John Gielgud (Chang). Irei apoiar minha escrita no musical.

A trama se desenvolve lentamente. As cenas iniciais mostram uma revolta ocorrendo num país do sudeste asiático. O caos impera. Richard Conway está no local para apaziguar a situação. Vemos um homem maduro, com semblante ligeiramente desgastado pelo tempo. Olhar profundo e crítico. Ele conhece o mundo mas não opera totalmente de acordo com os métodos de sua época e de sua cultura. Mas não destoa do meio em que está inserido. Seu modo de agir é inteligente. E ele, juntamente com seu irmão e outros personagens (incluindo uma depressiva, um ator e um engenheiro), terão seus destinos entrelaçados por um acontecimento inesperado.

George e Maria. Aquele que vive o frêmito
sedutor do AS tenta convencer aquela que
nasceu na tranquilidade que prenuncia a
jornada final para o S. 
Um avião voa sem destino conhecido - ao menos para os passageiros. Momentos de suspense puro. Que se estendem infinitamente para os personagens - e quase tanto para o expectador. Tentamos ansiosamente compreender o porquê de tudo aquilo. Um sequestro? Um mal entendido? Um plano desconhecido?

O avião cai e imaginamos que os sobreviventes terão de se virar até seu fim, em meio a uma cadeia de montanhas inóspitas, isoladas e muito ameaçadoras.

Mas eis que surge um grupo de homens munidos de tochas e resgatam as pessoas. Chang (John Gielgud), o líder da expedição, conduz o grupo até o local de onde veio.

Após uma longa (e árdua) caminhada, chegam ao esperado local. Um lugar somente existente na imaginação de muitos, seja como sonho ou como colônia de férias. Como mundo ideal ou mundo a ser propagandeado. Mas é real. É o que é: Shangri-la.

O que é Shangri-la? Por que ela é miraculosamente isolada? Como ela veio a existir? Quais são seus princípios? É possível seus cidadãos permanecerem estáticos nas ambições materiais após terem atingido um patamar estabelecido por diretrizes universais? E trabalharem interiormente...em busca de realizações fora de nosso plano, em que as ideias sejam realmente vivenciadas, os sentimentos profundamente impactantes e a reflexão seja sempre moda e diretriz íntima? Aparentemente sim. Para aqueles(as) já prontos.

O filme é musical. Cada performance é feita visando trazer à tona a essência de um mundo com imperativos humanos, em equilíbrio com as leis naturais em todos os níveis. Respeito à capacidade regenerativa das formas vivas, cuidado no manuseio da fauna e flora, consumo essencial e saudável, relações de respeito, ritmo de vida moderado, com um trabalho desvinculado completamente da questão da sobrevivência, entre outras questões. O Dinheiro inexiste. Metais e pedras preciosas tem o devido valor: meros pedaços de matéria que não dizem respeito às grandes questões da vida e da evolução. Assim vamos percebendo ao longo da projeção de mais de 2 horas.

Maria e Sally cantam e dançam. Uma deseja (sem saber)
descer. A outra, sabendo como é o mundo, pretende
permanecer...
As letras, cuidadosamente escolhidas, visam transmitir uma ideia. Mais do que isso: é um desejo de realização muito profundo, cada vez mais forte no instinto coletivo. Os personagens entram nessa dança sonora, contribuindo para a expansão dessa consciência aos seus pares - que ainda não perceberam. Há o depressivo suicida (Sally, a mulher sofrida), os frio calculista (Sam, o engenheiro), o prático preso às aparências (George, o ambicioso vaidoso), o sonhador muito distante do concreto (Harry, o artista) e aquele sonhador conhecedor dos métodos do mundo (Richard, o homem escolhido pelo Lama-Mor para continuar a materialização do sonho).

Os diálogos, íntimos, intrigantes e inteligentes, - especialmente quando Chang está presente - temperam as falas. O intuito é colocar pitadas de intuição num mundo afogado em métodos superficiais, que só se preocupam em reagir aos efeitos, discriminar elementos, analisar friamente. Trata-se de uma forma de vida mais inteligente, que só pode ser percebida com a vivência - que de certo modo foi inicialmente forçada, mas depois, aceita por muitos. Assim o grupo que inicialmente estava preso às dores do mundo aceita adentrar num novo mundo. Perceberam que a "civilização" é apenas uma aparência. A verdadeira (civilização) está no local em que eles julgam não-civilizado (apesar de agradável).

O ser humano tem sua mentalidade desnudada através dos múltiplos personagens. Percebemos que o bom senso tende a imperar no fim, seja pelo bem ou pelo mal.

Enquanto todos vão, aos poucos, aderindo à nova forma de vida, George quer insistentemente sair do local. Não suporta a monotonia, a falta de barulho, de problemas, de possibilidade de ambicionar coisas. Não está preparado para o novo mundo porque seu subconsciente o drena para o velho mundo. Um mundo prestes a desmoronar. E nesse ímpeto de fuga, acaba por convencer uma jovem inocente (Maria) a sair do paraíso para viver num mundo de ilusões que se desfazem a cada instante...Ele pinta o quadro do mundo de acordo com sua percepção distorcida da (verdadeira) realidade. Ele não vê em profundidade mas fala com ardor. Porque ele adora tanto as misérias do mundo que elas se tornaram sua verdadeira riqueza. Riqueza perecível...

A busca pelo paraíso perdido é a mais elevada de todas. No fundo, é A Busca. O cinema torna essa epopeia do homo sapiens sapiens musical, sonora, colorida, com características comuns a todos nós. Uma jornada que só terminará quando aceitarmos o que somos e o que devemos nos tornar.


Referências
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Shangri-La
[2] Lost Horizon, 1973. Filme completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=23BcjBWd65I>

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