É
fato que não existe um consenso entre o que é essencial e o que é
luxo entre os seres humanos. O necessário de alguns é o luxo de
outros. De pessoa para pessoa, as variações ocorrem. Mesmo para
indivíduos de uma mesma classe social, da mesma idade, com
escolaridade idêntica, existem divergências. Desse modo, se torna
muito difícil iniciar e desenvolver (saudavelmente) uma discussão
acerca de uma política para garantir o mínimo necessário para que
um ser humano possa viver dignamente.
Há
certo tempo participei de um bate-papo informal – e caloroso –
acerca desse tema. Para ser específico, o tema central girava em
torno da liberdade de escolha profissional.
Meu
opositor principal argumentava que uma pessoa que realmente goste de
sua ocupação não terá sua qualidade de vida impactada pelo seu
salário. Ou seja, independentemente da quantia que caia (ou não) em
sua conta, o indivíduo que realmente faz aquilo que lhe agrada não
se importará com seu padrão de vida material. Eu, por outro lado,
apesar de admirar pessoas que se orientam puramente por uma vontade
própria, espiritual, não ignoro que as variáveis materiais tenham
influência na escolha da pessoa por uma ocupação. E que essa
influência deve ser levada em consideração – explicarei o porquê
disso oportunamente.
Num
primeiro momento pode-se dizer que a opinião que defendo é mais
materialista ou interesseira. Mas a meu ver deve existir sim uma
consideração pelo retorno material. É claro que essa decisão não
deve ser 100% orientada pelo retorno financeiro, mas esse fator deve
ter um peso proporcional às necessidades mínimas do ser humano –
que como disse, são relativas. E defendo essa ponderação porque,
apesar de concordar que num mundo ideal – não-material – as
escolhas tendem e devem ser 100% espirituais, não se pode ignorar a
nossa constituição física e consequentes necessidades básicas
(habitação, saúde, higiene, alimentação, educação,...) quando
vivemos num mundo onde se depende da matéria ATÉ MESMO para se
obter mais condições para desenvolvimento espiritual (traduzindo,
fazermos o que gostamos). Além disso, se quisermos contribuir para o
progresso da sociedade, há a necessidade de estarmos numa posição
de segurança financeira que nos permita concentrarmos todas nossas
energias – e tempo – em nossos projetos.
Pirâmide de Maslow |
Meu
colega argumentou que se pode viver com cerca de 260 reais. Essa
quantia bastaria para qualquer pessoa fazer o que gosta. O número
foi baseado no seguinte raciocínio: existe uma merenda do governo
estadual que custa 1 real por refeição (duas vezes por dia, trinta
dias por mês dá 60 reais); e, para moradia, 200 reais seriam
suficientes para pagar um aluguel numa favela. E assim tem-se o
básico. No entanto, sempre que me deparo com um raciocínio simples,
e aparentemente tão eficiente, começo a esmiuçar. Porque sabe-se
muito bem (intuitivamente ou racionalmente) que tanto nas ciências
humanas quanto naturais a teoria é bem diferente da prática.
Vamos
supor essa pessoa que faça o que gosta e receba 260 reais por mês
por isso.
A
primeira pergunta que surgiu na minha cabeça foi: E sua saúde?
(porque um convênio médico é caro). E a resposta foi que eu estava
“criando hipóteses” e “desviando o problema”.
Não
compreendi, pois o que eu afirmava a princípio era de que a falta de
dinheiro afetava sua qualidade de vida (que, neste mundo, com nossa
constituição física, está intrinsecamente relacionada com os
recursos materiais que dispomos. pelo menos até certo ponto. um
ponto que, apesar de ninguém poder especificar direito, existe para
cada um e tem um valor considerável). E a saúde, a meu ver, é uma
vertente fundamental da vida para qualquer ser deste planeta.
“Como
necessitar saúde pode ser uma hipótese?”, eu me perguntava. E
para outros tipos de itens que eu julgo fundamental como: boa
alimentação, educação, criação de filhos, transporte, e um
mínimo de lazer e cultura populares, recebia a mesma resposta. No
entanto, para um ser humano poder fazer o que gosta, seu corpo e
mente físicos devem estar em bom funcionamento. E isso implica que
todas suas necessidades não-profissionais devam ser satisfeitas. Ou
seja, caso haja uma doença, deve-se dispor de recursos para se pagar
um tratamento ou cirurgia; caso essa pessoa deseje ter filhos e
criá-los, deve se ter recursos para sua alimentação, educação,
moradia e transporte, enquanto eles não atingem sua independência;
etc.
Num
ponto foi dito para mim que “Basta morar com os pais e não ter
filhos”. Nesse caso a pessoa queria dizer que não é preciso
ganhar nada e fazer o que gosta. De fato. No entanto, novamente
caiu-se no erro de tratar o problema como algo encerrado no
indivíduo. Ou seja, criou-se um volume de controle RESTRITO. Porque
essa pessoa está sim consumindo recursos. O dinheiro de seus pais,
pra ser mais exato, que estão SUBSIDIANDO as condições favoráveis
para que esse filho possa se dar ao luxo de não precisar de
dinheiro. Mas indiretamente ele está usando dinheiro. E muito.
Essa
discussão é complexa e portanto desejo deixar alguns pontos
fundamentais expostos aqui.
Uma
pessoa que se diz feliz ganhando um salário mínimo deve ter sua
opinião respeitada. Mas alguns pontos devem ser ressaltados. Eis os
dois que julgo mais importantes:
Primeiro:
Essa
pessoa, por carecer de uma educação formal e conversas e leituras e
oportunidades para abrir sua mente (na grande maioria dos casos),
pode ter adquirido uma visão estática do mundo, em que a estrutura
hierárquica deve ser respeitada e não existe nada a mais para
aspirar (quem aspira é “fresco”, “radical” ou “não tem o
que fazer”).
O
problema da pessoa se manter com essa visão restrita do mundo é que
esse tipo de pessoa é facilmente controlável por aqueles que detém
o poder e desejam manter as desigualdades. Inclusive, com um enfoque
midiático certo, é possível tornar a visão dessa pessoa a opinião
dominante de uma classe inteira, induzindo pessoas de outras classes
de que realmente não se deve “reclamar” das coisas e agradecer
pelo que se tem. Isto é, joga-se com um sentimento altruísta e
intrínseco de cada ser humano, manipulando esse sentimento com
objetivos escusos.
Segundo:
O
fato da pessoa se sentir confortável ganhando um salário mínimo
não significa que ela esteja tendo suas necessidades fisiológicas,
culturais e sentimentais satisfeitas. Significa – a meu ver – que
essas necessidades podem ter sido convertidas – mentalmente, ao
longo dos anos, através de um processo de conformação à realidade
– em coisas supérfluas.
O
que quero dizer com tudo isso é que é muito fácil nos sentirmos
satisfeitos quando não somos capazes de visualizar outras
possibilidades e o mecanismo de funcionamento do mundo. Portanto,
continuo defendendo a tese de que, pelo menos neste mundo, um certo
conforto material é sim importante para se ter uma qualidade de vida
– inclusive espiritual.
Devemos
reconhecer que, por mais orientada que uma pessoa esteja para o lado
espiritual, ela não pode ignorar suas necessidades fisiológicas.
Caso contrário existe uma grande probabilidade dessa pessoa ser
fortemente abatida por um imprevisto – que a vida comumente nos
apresenta.
Acredito
que vale a pena refletir sobre essas duas questões.
Eu
particularmente compreendo a DIVERSIDADE dos pontos de vista a
respeito do que é ou não necessário. Mas ao mesmo tempo tenho a
intuição de que ao longo dos anos e séculos e milênios essa
diversidade – de amplitude descomunal – vá CONVERGINDO.
Lentamente. Porque é o único meio de começarmos a chegar a um
acordo. Mas para isso é preciso que cada um se APROFUNDE nessas
questões, saindo do lugar-comum. Saindo da zona de conforto.
E
assim chegaremos um dia à Unidade*.
E
o necessário será o necessário, e existirá.
E
o supérfluo será o supérfluo, e não existirá.
Acredito
que será assim.
*
Ah...(só para esclarecer)...Unidade não significa padronização ou
massificação. Unidade significa um conjunto de seres com
características físicas, aptidões e gostos diferentes atuando em
prol de um conjunto de ideais comuns.
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