Quando
eu estava no primeiro ano de faculdade ocorreu uma feira do livro no
segundo semestre. Corria o ano de 2004. Eu já havia desenvolvido
razoavelmente a cultura de leitura, e o desconto de 50% em todos
títulos era atraente para o meu bolso árido. As condições para o
consumo consciente estavam presentes. E a vontade. Portanto decidi me
lançar às compras.
Um dos
primeiros autores que comecei a buscar foi Dostoiévski. Já tinha
ouvido falar de suas obras mais célebres como "Crime e Castigo"
- um marco na literatura mundial - e decidi me iniciar na leitura
desse louco e genial autor eslavo.
Eu tinha
consciência da minha futura (e até presente) falta de tempo.
Portanto, minha intuição me levou a selecionar obras relativamente
curtas, que não ultrapassassem 150 ou 200 páginas (com letras não
tão pequenas), ou, caso houvesse algo tremendamente interessante e
longo, que fosse realmente interessante, de modo que eu fosse capaz
de ler de ponta a ponta em uma ou duas semanas - no máximo.
Eis que
me vejo diante de um livreto curto que, além de seu tamanho prático,
tinha duas histórias embutidas. Eram Duas Narrativas Fantásticas:
"A Dócil" e "Sonho de um Homem Ridículo". A
segunda história me atraiu pelo título. Sempre senti uma atração
natural pela história de indivíduos considerados ridículos ou
fracos ou fracassados na vida - ou tudo isso junto. Talvez porque eu
me sentisse dessa forma a maioria do tempo com a maioria das pessoas.
Raros eram os ambientes em que eu me sentia em sintonia e portanto
livre e capaz de manifestar minhas idéias e revelar meus sonhos e
desejos. Raros.
Comprei
o livro (além de outros 12) e, algumas semanas depois, no escuro do
meu quarto, decidi começar a leitura. E foi uma leitura relâmpago.
A curiosidade me consumiu. Cada palavra do narrador me atraía cada
vez mais para o seu mundo.
Passados
vários anos assisti a um vídeo no YouTube em que o filósofo Luis
Felipe Pondé faz uma análise dessa história. Como havia se passado
quase uma década da minha primeira leitura - e já havia me
esquecido dos detalhes - decidi pegar o livro novamente e relê-lo.
Foi no sábado passado. Decidi ler numa daquelas cadeiras de tomar
banho de sol no SESC - não fazia sol.
Trata-se
de uma narrativa verdadeiramente fantástica, sobre um homem pobre,
relativamente jovem, que morava num quarto minúsculo com poucos
moveis em São Petersburgo. Segundo seus relatos, desde os primórdios
de sua infância ele sentia que era um homem ridículo. E para mim
isso significava que ele era visto como ridículo pelos seus colegas,
familiares e toda sociedade em geral. Seus costumes provavelmente
estavam em desacordo com aqueles seguidos pelo grosso da sociedade na
qual ele estava inserido. E sabe-se que tudo que é diferente é tido
como ridículo.
Eis que
numa noite ele relata que teve a idéia de se matar. Sim, se
suicidar. Tirar a vida. Deixar de existir por completo, segundo ele
mesmo e sua (não) crença. E assim acabar com o mundo ao mesmo
tempo. Pelo menos para ele, já que tudo que ele conhecia deixaria de
existir. Para sempre.
A grande
surpresa é que esse homem pega no sono justamente na noite fria,
úmida e cinzenta em que decide tirar sua vida. Já faziam meses que
ele era indiferente às questões do cotidiano. Não ligava para os
acontecimentos sociais, econômicos e políticos de seu país (e do
resto do mundo); tampouco da realidade dos vizinhos, da cultura, do
amor, da ciência, da filosofia, etc. Nada. Mas não se sabe
exatamente porque, mas naquela noite, duas horas antes de executar
sua ação final, esse homem se inquieta com diversas questões da
vida. Tudo graças a uma menininha que apareceu diante dele antes de
voltar pra casa. Uma criança que estava desesperada porque sua mãe
tinha desmaiado. Mas que ele, já decidido de sua atitude futura,
ignorou-a. Mas agora, sentado em sua poltrona velha e confortável
(voltariana segundo ele), o homem é incapaz de abandonar a imagem da
menininha. E vem à tona diversas coisas. E no meio dessas reflexões
profundas ele adormece. Puf!
O sonho
que se segue tem significados misteriosos. Após o impressionante
relato ficamos nos perguntando - assim como o homem - se tudo aquilo
foi real ou uma simples invenção de sua mente (será que foi real?
o que é real, afinal?). Mas os detalhes são tantos que parece de
fato haver alguma coisa misteriosa por trás de tudo aquilo. E
lógica.
É
interessante examinarmos a fundo as possíveis interpretações que
podemos ter para essa história aparentemente banal. Parece que Dostoiévski estava colocando na roda de discussão da sociedade da
época uma série de questões fundamentais, que sempre inquietaram a
mente dos seres humanos: existe vida após a morte? existem outros
mundos? se sim, como são? o que é ser ridículo? São perguntas que
levam a outras e assim por diante. Ad infinitum.
Por que
será que esses tipos de sonhos sempre sondam as mentes de pessoas
tidas como loucas ou ridículas? É uma observação muito
interessante. Será que essas pessoas tem uma espécie de
sensibilidade mais apurada? Uma espécie de sexto sentido?
"Sonho
de um Homem Ridículo" é um atestado da genialidade de Dostoiévski Uma conexão da Arte com a Religião, a Ciência e a
Filosofia. Um convite à reflexão.
É uma
narrativa verdadeiramente fantástica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário